Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 13 ago 2024

Memória, verdade e justiça são expressões que marcam a herança cruel deixada à população do Brasil, pelo Estado de exceção imposto pelo golpe militar de 1964, que, em 2024, completa 60 anos. O aparelho ditatorial assentou-se no silenciamento e no apagamento de memórias, na censura e na propagação de mentiras e, especialmente, na perpetração de horrores contra quem a ele manifestasse críticas ou oposição: prisões arbitrárias, sequestros, tortura, execuções sumárias, expulsões, demissões, banimentos, exílio.

Entre as vítimas, estavam lideranças e participantes de movimentos e articulações da sociedade civil, como partidos de esquerda, sindicatos, associações profissionais e estudantis, artistas e grupos sociais, os mais diversos, entre eles, religiosos.

Nas muitas produções culturais e nos trabalhos acadêmicos, entre as ciências humanas e sociais, é significativo e crescente o número de obras que recuperam a memória e analisam o lugar dos grupos religiosos no apoio e na oposição à ditadura militar no Brasil. Estas produções ganharam mais visibilidade na última década, pois foram base para as pesquisas da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), que se fixou no papel das igrejas no período, a partir do reconhecimento da hegemonia do Cristianismo no País e do protagonismo deste segmento religioso no espaço político à época.

O levantamento bibliográfico sobre o tema “religiões e ditadura” indica um predomínio de abordagens sobre o Cristianismo, poucos trabalhos sobre grupos de tradição africana e quase nenhum sobre outras expressões religiosas. As cinco obras aqui indicadas se baseiam em trabalhos relevantes, entre dissertações e teses, livros e artigos, de, pelo menos, cinco décadas. Elas foram selecionadas com a intenção de expor o espaço para estudos de uma memória plural, com análises que tomam por base o que há de mais denso na bibliografia produzida sobre cristãos na ditadura, e que buscam avançar sobre o lugar de diferentes grupos religiosos nesse momento nefasto da história do Brasil.

O objetivo desta seleção é oferecer estímulo para novas pesquisas neste instigante campo de estudos, uma vez que a ditadura sobrevive em várias expressões sociopolíticas e culturais no presente.

Dossiê Religião e Ditadura: 60 anos do golpe de 1964

Adroaldo Almeida e Paulo Cesar Gomes (orgs.) (Revista Brasileira de História das Religiões, 2024)

A propósito dos 60 anos do golpe militar de 1964, o dossiê reúne artigos de pesquisadores que, ao longo das últimas décadas, têm produzido investigações e análises das relações e do comportamento de instituições cristãs e seus integrantes frente ao regime ditatorial, bem como dos desdobramentos para a configuração dos atuais cenários político e religioso do Brasil.

O conjunto de artigos recorre a obras de referência e atualiza o debate acerca da relação de católicos e evangélicos com a ditadura militar, além de contribuir para estudos sobre as relações entre religião e política no país.

As igrejas evangélicas na ditadura militar: dos abusos de poder à resistência cristã

Anivaldo Padilha, Jorge Atílio Iullianeli (in memoriam), Luci Buff, Magali Cunha (Alameda, 2022)

A obra oferece conteúdo resultante das apurações realizadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), no contexto de um dos 13 Grupos de Trabalho, “O papel das igrejas durante a ditadura”, onde os quatro autores contribuíram em diligências, coletas de testemunhos e investigação de vasto corpus documental (em especial o acervo Brasil Nunca Mais) e bibliográfico (livros, artigos, teses e dissertações) sobre cristãos e o período da ditadura.

O livro oferece amplo conteúdo, específico sobre evangélicos, que não foi inserido no texto 4 do relatório final da Comissão, intitulado “Violações de direitos humanos nas igrejas cristãs”, restrito às práticas repressivas. A obra coletiva traz outros dados referentes à repressão sobre evangélicos de oposição, trata dos abusos do poder de lideranças durante a ditadura e inclui pesquisas sobre a resistência de fiéis e grupos organizados neste segmento religioso. Além do livro físico, há uma versão on line com livre acesso.

Umbanda e ditadura civil-militar: relações, legitimação e reconhecimento

Fabíola Amaral Tomé de Souza (Revista Angelus Novus, 2016)

O artigo é parte da dissertação de Mestrado defendida pela autora, intitulada “Do Congá ao Peji: A ascensão afro religiosa (sic) na cidade de Barra Mansa na metade do século 20” (Mestrado em História, Universidade de Vassouras, 2014). A pesquisa destaca as relações de poder entre religiões afrobrasileiras e a ditadura civil-militar, de 1964 a 1979, na região do Vale do Paraíba (RJ), com destaque para as políticas de incentivo, legitimação e reconhecimento da Umbanda pelo poder político nas esferas estadual e federal. O texto traz categorias como consenso e consentimento, para superar simplificações na compreensão desta memória, que, frequentemente, coloca de um lado um Estado opressor e de outro uma sociedade vitimizada.

Abordagens de cunho ensaístico na mesma direção, que explicitam a diferença de tratamento e de posturas relacionadas a grupos e lideranças da Umbanda e do Candomblé, também podem ser encontradas em “Candomblé, Umbanda e Ditadura: reconhecimento e perseguição”, da jornalista Nadine Nascimento (Nós, Portal Terra, 2022), e “Terreiros e ditadura civil-militar: apontamentos para violências ainda fora da história oficial”, dos pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (Antropologia, UFF) Ana Paula Mendes de Miranda e Leonardo Vieira Silva (BVPS, Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, 2024).

Nem bandidos, nem heróis: os militantes judeus de esquerda mortos sob tortura no Brasil [1969/1975]

Beatriz Kushnir (capítulo de “Perfis cruzados: Trajetórias e militância política no Brasil”) (Imago, 2002)

O capítulo é parte de uma coletânea de dez ensaios, organizada pela autora, que apresenta relatos e pesquisas sobre atores da resistência à ditadura militar, suas formas de ação e as atrocidades que sofreram em nome delas. No texto, Beatriz Kushnir recupera a memória de dez militantes de esquerda, de ascendência judaico-brasileira, mortos sob tortura nos porões da ditadura militar, entre novembro de 1969 – nos primeiros dias do governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-74) – e outubro de 1975, entre eles, o jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog, caso historicamente mais destacado, pela repercussão política que provocou.

Além de buscar mapear a participação de judeus na luta armada contra esse regime, a autora oferece discussão acerca do conceito de identidade judaica na época contemporânea, à luz da experiência desses militantes políticos. O capítulo também pode ser encontrado na forma de trabalho apresentado ao Programa Interuniversitário de História Política (2015) e como parte da coletânea, disponível no SciELO Books, “Identidade e cidadania: como se expressa o judaísmo brasileiro”, de Helena Lewin (Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009).

Conservadores x progressistas no espiritismo brasileiro: tentativa de interpretação histórico-hermenêutica

Marcelo Camurça (Plural – Revista de Ciências Sociais, 2021)

Ao estudar o cenário político recente no Brasil, que potencializou a divisão entre conservadoras e progressistas no interior do Espiritismo Kardecista, o antropólogo Marcelo Camurça oferece este artigo científico com importante contextualização da relação Espiritismo-política. Na parte intitulada “As bases e desenvolvimento do conservadorismo espírita no Brasil”, Camurça recorre a estudos e registros que tratam da expansão e da consolidação do conservadorismo espírita nos anos 1930.

O texto mostra como esta corrente conservadora religiosa se alinhou a regimes autoritários, como a ditadura do Estado Novo, e, mais tarde, a ditadura militar (1964-1985), com o apoio de lideranças na estatura de Chico Xavier. O artigo registra ainda a ação destacada de progressistas durante os chamados “anos de chumbo”, como o deputado federal Freitas Nobre, do grupo dos “autênticos” do MDB, “como uma voz em defesa dos direitos humanos, da luta contra a tortura, a censura e pela anistia”, nos anos 1970.

Magali Cunha é doutora em ciências da comunicação com estágio pós-doutoral em comunicação e política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Pesquisadora do ISER.