A partir dos anos 1990, essas religiões começaram a se expandir para além das fronteiras brasileiras, atraindo seguidores em diversas partes do mundo e adaptando-se a novos contextos culturais. Entenda conceitos centrais deste campo.

Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 28 ago 2024


Embora em vários países da América do Sul, tais como Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela e Equador, haja uma tradição de consumo de ayahuasca, curiosamente é somente no Brasil que se desenvolvem religiões de populações não indígenas que fazem uso desta bebida. As religiões ayahuasqueiras são movimentos religiosos que utilizam a ayahuasca, uma bebida psicoativa, como sacramento central em seus rituais. Essas religiões combinam elementos de tradições indígenas, afro-brasileiras e cristãs. Originárias principalmente da região amazônica, uso ritual da ayahuasca é visto como uma prática sagrada, destinada a facilitar a conexão com o sagrado, promover o autoconhecimento e tratar questões físicas, emocionais e espirituais 

As principais religiões ayahuasqueiras incluem o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha, cada uma com suas particularidades, mas compartilhando o uso da ayahuasca como elemento central. A partir dos anos 1990, essas religiões começaram a se expandir para além das fronteiras brasileiras, atraindo seguidores em diversas partes do mundo e adaptando-se a novos contextos culturais.

Ayahuasca


A palavra ayahuasca pertence à língua quéchua. De acordo com Luna (1986), “aya” quer dizer pessoa morta, alma, ou espírito, e “waska” significa corda, liana ou cipó. Dessa forma, ayahuasca pode ser traduzida para o português como “corda dos mortos”. Após a popularização do seu consumo nos anos de 1970, esse termo passou ser utilizado para denominar uma bebida psicoativa tradicionalmente usada por comunidades indígenas da Amazônia. A ayahuasca é preparada através da fervura por várias horas das videiras de Banisteriopsis caapi e as folhas de Psychotria viridis. Essa cocção amazônica é conhecida por seus efeitos psicoativos que são considerados visionários e enteógenos, promovendo experiências profundas de autoconhecimento e conexão espiritual.

De um ponto de vista antropológico, a ayahuasca é concebida como um elemento cultural central, servindo não apenas como uma ferramenta medicinal e espiritual, mas também como um meio de transmissão de conhecimento e fortalecimento das tradições locais. Segundo Labate, a popularização global da ayahuasca trouxe novos desafios, como questões de apropriação cultural, legalidade e sustentabilidade, que antropólogos e outros estudiosos têm investigado para compreender melhor as complexas dinâmicas entre tradição, modernidade e identidade cultural.

Miração


A “miração” é um termo cunhado na tradição do Santo Daime pelo Mestre Irineu (1892-1971) para designar o estado visionário que a ayahuasca produz. O verbo “mirar” corresponde a olhar, contemplar, e dele deriva-se o substantivo “mirante”, que se refere a um lugar alto e isolado, de onde se pode avistar uma vasta paisagem. De acordo com Mercante (2012), as mirações são “as imagens mentais espontâneas experienciadas durante o transe induzido pela ingestão ritual de Ayahuasca”. Essas imagens são centrais nas experiências psicoativas com a bebida, sendo valorizadas tanto pela introspecção pessoal quanto pelo potencial de cura espiritual e emocional que oferecem. 

Santo Daime

O movimento religioso do Santo Daime começou nas primeiras décadas do século XX, no interior da Floresta Amazônica, com Raimundo Irineu Serra, um neto de escravos natural do Maranhão. Conhecido posteriormente como Mestre Irineu, ele recebeu uma revelação que originou uma doutrina de cunho cristão e eclético. Essa doutrina integra tradições católicas, espíritas, esotéricas, caboclas e indígenas, e centra-se no uso ritual do chá milenar conhecido pelos povos incas como ayahuasca (vinho das almas), que Mestre Irineu denominou Santo Daime.

No início do século XX, o Santo Daime atraiu muitos seringueiros oriundos do nordeste brasileiro. Esses seguidores encontraram nas palavras de Mestre Irineu uma alternativa religiosa ao catolicismo solidário e ao sistema de semi-escravidão ao qual eram submetidos durante a extração da borracha no estado do Acre (Desheyes, 2003). Nas décadas seguintes, o movimento religioso se espalhou por todo o território nacional e, no final dos anos 1980, começou a se expandir para o exterior.

Barquinha

A Barquinha foi fundada por Daniel Ferreira Mattos, que procurou Mestre Irineu para se curar de seus vícios e residiu no Alto Santo por mais de um ano. Frei Daniel desenvolveu a linha ayahuasqueira mais eclética das três religiões brasileiras (Labate, 2004), a qual recebe maior influência da umbanda. A imagem da barca é uma metáfora da missão deixada por Daniel, simbolizando a viagem de cada um dentro desta grande viagem que é a vida. Por esse motivo, seus adeptos são tidos como os marinheiros do mar sagrado (Araújo, 1999).

União do Vegetal

A UDV (União do Vegetal) foi fundada pelo baiano José Gabriel da Costa, conhecido como Mestre Gabriel. Ele criou um rito sem nenhum tipo de símbolo religioso popular, como velas, imagens de santos ou roupas cerimoniais. Em vez de elementos rituais, a UDV desenvolve uma narrativa mítica que fundamenta seus ensinamentos nos princípios da reencarnação. De acordo com essa crença, o espírito evolui através de sucessivas encarnações, desenvolvendo gradual fidelidade à prática do bem até alcançar a purificação – a santidade, para as tradições ocidentais Mais do que devoção, hinos ou preces, o foco do trabalho está na concentração mental e na evolução espiritual (Luna, 1995). A UDV possui uma forte relação com o espiritismo Kardecista, incorporando noções como evolução espiritual, reencarnação e cientificismo. 

Patrimonialização da Ayahuasca


O processo de patrimonialização da ayahuasca teve início no Brasil, onde a bebida tem uma longa história de uso tradicional entre diversos grupos indígenas e, mais recentemente, em contextos religiosos urbanos. A partir dos anos 1980, as religiões ayahuasqueiras, como o Santo Daime e a União do Vegetal, começaram a se expandir pelo mundo, aumentando sua visibilidade e número de seguidores. Esse crescimento trouxe a necessidade de proteger e reconhecer a ayahuasca como parte importante do patrimônio cultural imaterial brasileiro. 

A crescente aceitação social e as práticas ritualísticas associada à ayahuasca chamaram a atenção das autoridades culturais do país. Em 2008, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) incluiu as práticas associadas ao uso ritualístico da ayahuasca no Livro das Formas de Expressão do Patrimônio Cultural do Brasil. Este reconhecimento oficializou a importância cultural das práticas e tradições envolvendo a ayahuasca, tanto para os povos indígenas quanto para as religiões ayahuasqueiras. O processo de patrimonialização envolveu uma série de estudos, debates e consultas com praticantes e especialistas, visando documentar e valorizar as práticas e conhecimentos tradicionais relacionados à ayahuasca, promovendo assim a proteção e a transmissão desse patrimônio cultural para as futuras gerações.


Internacionalização do uso da ayahuasca


A internacionalização do consumo ritual da ayahuasca tem provocado diversas interpretações e regulamentações ao redor do mundo, influenciadas pelas percepções locais sobre suas potencialidades religiosas, terapêuticas e culturais. Cada país enfrenta dilemas legais distintos em relação ao seu status. Alguns reconhecendo-a como patrimônio cultural, como ocorre no Peru, enquanto outros a consideram uma substância controlada devido à presença de DMT  (Dimetiltriptamina), listado na convenção de drogas da ONU. Nos Estados Unidos e na Holanda, decisões judiciais protegeram seu uso ritual sob o direito à liberdade religiosa, contrastando com a proibição em países como a França, onde o DMT é classificado como uma droga ilegal.

No Brasil, onde a ayahuasca se expandiu significativamente além da Amazônia, seu uso ritualístico foi regulamentado através de uma resolução que reconhece sua importância religiosa. Contudo, a discussão sobre seus potenciais terapêuticos permanece em aberto, sujeita a investigações científicas para validar seus efeitos além dos aspectos espirituais e rituais. Essa complexidade jurídica e cultural reflete a posição fronteiriça da ayahuasca entre droga, sacramento religioso e medicina tradicional, moldando seu status legal e impactando sua integração nas sociedades onde é praticada.

Tiago Coutinho é doutor em ciências humanas com concentração em sociologia e antropologia pela UFRJ, especializado em aspectos socioculturais do consumo de substâncias psicoativas. Atualmente, é professor substituto de saúde coletiva no IESC-UFRJ.


Saiba mais:


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