O que é racismo religioso e quais as suas origens? Por que os religiosos de matriz africana são as suas principais vítimas? Como é o cotidiano desses religiosos no Brasil e quais desafios eles enfrentam? Quais medidas são possíveis para enfrentá-lo? Qual o papel das instituições públicas na superação deste tipo de racismo?

Para se tratar este conceito é preciso registrar que, no período colonial, era expressamente proibido professar outra religião que não fosse a da Igreja Católica Apostólica Romana. E mais do que isso, a cultura douta europeia cristã — com seus códigos, ritos, práticas e formas de construção de pensamento, entendimento e conhecimento — colocou-se como parâmetro único de civilidade e humanidade. Enquanto território colonizado, o Brasil herdou essa sentença. 

Durante o Império, o catolicismo continuou a vigorar como a religião oficial no país; assim, o artigo 176 do código criminal de 1830, por exemplo, punia a celebração, a propaganda e o culto de outras religiões. O código penal de 1890 também criou mecanismos legais para combater os chamados “feiticeiros”. Só a primeira Constituição da República, em 1891, torna o Estado laico e prevê a separação entre religião e poder político. A partir daí a liberdade religiosa passou a ser defendida por lei, mas isso não impediu, na prática, a perseguição às religiões afro-brasileiras durante todo século XX e até os dias atuais. Elas foram — e ainda são — alvo da Igreja Católica e do Estado, que procurou estigmatizar seus ritos e seus símbolos, ligando-os à criminalidade e ao Diabo. Na contemporaneidade, as igrejas neopentecostais são acusadas de preconceito, de violência, de fundamentalismo e de intolerância, pois sua teologia tem levado até as últimas consequências discursos e ações de ódio e de demonização. 

O antropólogo Kabengele Munanga (2005-6), grande referência nos estudos sobre raça, racismo e identidade no Brasil, faz um apanhado histórico de como esses conceitos foram se operando dentro da civilização ocidental. Diante das invasões do século XV e do contato frequente com outros povos, os europeus colocaram em xeque o conceito de humanidade que até então conheciam: os “outros” são bestas ou seres humanos como nós? Assim, Munanga diz que, até o século 17, essas explicações buscavam fundamentações em bases teológicas. Em seus textos e em suas conferências, o mestre quilombola Antônio Bispo faz sempre uma observação interessante: mostra que em grande parte dos escritos e dos documentos produzidos pela Igreja colonial o que aparece não são as definições de “eu” e dos “outros” baseadas em critérios de cor de pele ou de raça, mas por meio do binômio “cristãos” e “pagãos”. 

É importante ressaltar que, embora essa distinção faça muito sentido, a primeira origem de racismo tem como explicação uma história bíblica, derivada do mito de Cam, presente no nono capítulo da Gênese, na qual Noé, irritado com os comentários irônicos dos seus filhos em relação à posição em que estava deitado, descansando após muito trabalho na condução da sua arca no dilúvio, amaldiçoou seu filho Cam, dedurado pelos irmãos, e todos os seus descendentes, condenando-os à escravidão. 

De todo modo, cronistas e eclesiásticos europeus descreveram as práticas mágico-religiosas-culturais de origem indígena e africana, ou afro-pindorâmicas, como Antônio Bispo dos Santos (2015) registra, em perspectiva decolonial, utilizando como parâmetro as concepções e as terminologias cristãs e demonológicas que lhes eram familiares. 

Consequentemente, os/as responsáveis pelo espaço sagrado foram quase sempre chamados e perseguidos como bruxos/bruxas e feiticeiros/feiticeiras. Dessa forma, os rituais heterodoxos das mais diversas populações que existiram na chamada América Portuguesa foram reduzidos ao seu potencial para o mal, sendo demonizados e criminalizados. Foram colocados diabos, que não pertenciam ao imaginário desses povos, em quase todas as representações e descrições sobre a colônia. O próprio nome da terra — “Brasil” — remetia, para os religiosos da época, ao Diabo, pois advinha da árvore infernal de pau vermelho que roubou o antigo e santo nome: “Terra de Santa Cruz”. 

O que os povos ocidentais cristãos classificaram como religião diz respeito não só ao espaço de vivências da espiritualidade, da ritualística e das devoções dos povos afro-pindorâmicos, mas à sua identidade coletiva, aos seus valores socioculturais, ao seu entendimento de mundo, de humanidade, de natureza, de comunidade e de vida, que eram/são distintos. A negação e o aniquilamento do “outro” foram recursos usados para a afirmação de si. 

A partir do século 18, com o questionamento dos filósofos iluministas sobre o monopólio de conhecimento produzido no interior das igrejas, associado aos poderes dos reis, os europeus começaram a traçar uma explicação para as diferenças baseada na racionalidade universal e em uma história cumulativa e linear. Assim, começaram a operar o conceito de raça, já existente, na época, nas ciências naturais. O problema maior não foi classificar os seres humanos em raças, afinal, a própria história mostra que essa é uma necessidade humana constante, mas hierarquizá-las. Primeiro, a cor da pele foi o elemento fundamental para operacionalizar essa construção; depois, no século 18, agrega-se a esse modelo outras características, ligadas à morfologia, tais como as formas do nariz, da boca, do queixo e do crânio. 

No século 21, com o desenvolvimento da genética, a ideia de raça, do ponto de vista biológico, é refutada, pois descobre-se que não há no sangue humano componentes químicos capazes de estabelecer distinções e hierarquias. Tornou-se, portanto, um conceito carregado de ideologia, muitas vezes escamoteada por relações de poder e de dominação, expressando uma realidade social e política. 

Embora a ciência ocidental tenha provado que, do ponto de vista biológico, raça não existe, essa constatação é insuficiente para fazer desaparecerem as categorias mentais, alterar os comportamentos sociais e transformar o cerne das instituições, projetos e dinâmicas nutridas por essa lógica. 

O conceito de raça se opera, hoje, como uma construção sociológica e uma categoria social. Algumas vertentes têm defendido a extinção do termo e se recusado a fazer um debate sobre racismo, sob alegação de que ele não é operante, ignorando, de forma intencional, o quanto está arraigado no imaginário social e se recusando, portanto, a admitir um grave problema. No Brasil, as construções teóricas, intelectuais e políticas em torno do mito da democracia racial adiaram bastante um debate sólido e honesto sobre a implementação das políticas de “ação afirmativa” e a necessidade de um sistema educacional que esteja comprometido com uma história diversa e múltipla. 

Observa-se muitas pessoas nos tempos atuais dizendo que algumas declarações sustentadas por igrejas e por fiéis neopentecostais são frutos da “ignorância”, principalmente os discursos que responsabilizam o Diabo — e suas/seus intermediárias/os — pelos males do mundo. Essa é uma inverdade, pois tal construção é fruto de racionalidade, ainda que esteja a serviço de uma ideologia, com vertente religiosa. Da mesma forma que o racismo, muitas vezes também visto como “ignorância”, é resultado de uma construção filosófica e científica. Por isso, para Silvio Almeida (2019), não existe racismo sem uma teoria racista.  Nesse caso, a situação é ainda mais emblemática, porque o racismo foi/é uma teoria elaborada pela ciência, que possui autoridade, status de incontestabilidade. 

Em relação à tentativa de solucionar ou de amenizar desafios contemporâneos como o racismo e a intolerância religiosa, há um argumento muito comum, amplamente mobilizado, que passa pela ideia de que o problema é a falta de educação, entretanto, como Sílvio de Almeida alerta: “No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade” (p. 71). Afinal, todas as teorias mencionadas anteriormente faziam parte do programa educacional religioso e laico de várias épocas. 

As construções históricas de formação da sociedade brasileira tornam perceptível que o racismo é um dos fios condutores para que possamos compreender as articulações e as ações de intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas. Existem alguns conceitos que vêm norteando os debates sobre os casos de violência religiosa a terreiros: intolerância religiosa, racismo religioso, terrorismo e fundamentalismo. Importa aqui reafirmar “racismo religioso” e “intolerância religiosa” como elementos intimamente entrelaçados dentro dos contextos social e político aos quais são vinculados. A classificação dos atos de violência religiosa como “intolerância religiosa” ou “racismo religioso” alimentam mudanças significativas nas metodologias e nas epistemologias de análises dentro e fora dos espaços acadêmicos. 

Intolerância religiosa e racismo religioso

Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. 

O termo “racismo religioso” e suas implicações epistemológicas, apesar de defendido por algumas/alguns autoras/es, ainda está em construção. De forma geral, o termo “racismo religioso” tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. Grada Kilomba destaca que “o racismo, por sua vez, inclui a dimensão do poder e é revelado através de diferenças globais na partilha e no acesso a recursos valorizados, tais como representação política, ações políticas, mídias, emprego, educação, habitação, saúde […]” (2019, p. 76). 

Para alguns, contudo, esse termo é limitado, pois enfatiza o condicionamento religioso com base na cor da pele dos indivíduos. Nesse caso caberia o questionamento: como dizer que uma pessoa não negra, adepta das religiosidades afro-brasileiras, sofre “racismo religioso”, uma vez que as práticas de racismo estão ligadas às estruturas de poder, dimensões políticas e sociais? 

Quem defende o termo argumenta que, no caso das violências que atingem as religiões de origem africana no Brasil, o componente nuclear é o racismo. Nesse caso, parte-se do entendimento de que o objeto do racismo não é uma pessoa em particular, mas certa forma de existir. Um racismo que está, portanto, incidindo além do genótipo ou do fenótipo, mas na própria cultura (tradições de origem negro-africana). Para essa vertente, como pontua Sidnei Nogueira (2020), chamar o processo sistemático de perseguição às Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro) de “intolerância religiosa”, comparando-o à hostilidade sofrida, por exemplo, por outros grupos religiosos, como os cristãos, é diminuir e invisibilizar a gravidade e a complexidade do fenômeno, que ultrapassa as dimensões meramente espirituais/devocionais/ritualísticas.  

O que a maioria desses autores ressalta é que existe um amplo histórico de perseguição à cultura afro-brasileira no Brasil, do período colonial até os dias atuais. O ataque aos terreiros não é um resquício da escravidão, assim como pontua Silvio de Almeida; o racismo também não, mas é uma engrenagem própria do capitalismo e da racionalidade moderna, constantemente reajustada por novos motivadores, repertórios e agentes. 

Seja no período colonial, no Império, na República ou nos dias atuais, a criminalização continua, “ou seja, ‘o mal’ fora localizado nas populações negras, nas atividades provenientes de religiões de matrizes africanas que continuariam criminalizadas e perseguidas ao longo da história do nosso país” (MOTA, 2018, p. 29). 

Toda essa criminalização e perseguição são frutos de um sistema capitalista, produtor de uma ordem social eurocentrada, que está legitimada em diversas esferas. Assim, fiéis da religião cristã estão mais protegidas/os da violência por motivações religiosas, por serem adeptos de uma fé hegemônica, que não sofre opressão histórica em virtude do racismo e da colonização como as religiões de matriz africana. Entretanto, antes de falarem em nome de Deus, nas periferias e nas favelas das grandes cidades urbanas deste país, esses corpos têm cor, são em maioria negros. Ainda que frequentar igrejas, sair “bem vestido” e carregar uma bíblia debaixo do braço, contrariando o estereótipo padrão ligado aos jovens negros favelados, “confundidos” com “bandidos” usando bermuda, boné e chinelo, garanta a essas pessoas algum status de respeitabilidade, elas continuam sendo alvo. Como diz Frantz Fanon (2008), “pele negra, máscaras brancas”. A máscara branca da religião cristã confere proteção limitada. Na dinâmica da “guerra”, são os corpos suspeitos, massivamente assassinados em um genocídio deflagrado. 

Silvio Almeida lembra que a metáfora da guerra é uma produção colonial e dos estados escravistas, que instauram uma nova configuração do terror nas dinâmicas humanas que a norma jurídica não alcança. É o que o filósofo Achille Mbembe (2018) chama de necropolítica, ou seja, uma política de morte nas tecnologias de controle social.

Carolina Rocha é Doutora em Sociologia, historiadora, escritora e pesquisadora.

Foto: Roger Cipó.

Referências 

ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo : Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.  

KILOMBA, G. Memorias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019a.

MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018. 

MOTA, E. G. Diálogos Sobre Religiões de Matrizes Africanas: Racismo Religioso e História. Revista Calundu, 2018. 

MUNANGA, K. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006. 

NOGUEIRA, S. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2020. 

SANTOS, A. B. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília: INCTI/UnB, 2015.