Os temas relativos ao pluralismo religioso ganharam destaque no debate acadêmico atual e em diferentes campos da sociedade. Em parte, tal ênfase se dá como resposta à realidade sociocultural na qual encontramos nas últimas décadas maior visibilidade da diferença religiosa, no Brasil e no mundo, maior intensidade no debate sobre religião e democracia, especialmente os assuntos ligados à laicidade do Estado, mas também a ambiguidade de termos, ao mesmo tempo, situações conflitivas e busca de diálogo entre grupos religiosos distintos em diferentes áreas da vida social.

A vivência religiosa, em diferentes partes do globo, sofreu fortes mudanças nas últimas décadas. No Brasil, alguns aspectos do novo perfil se devem, sobretudo: (i) à afirmação religiosa indígena e afro-brasileira em suas diversas matrizes, especialmente as formas de Umbandas, Candomblés e Encantarias, e uma série de expressões culturais regionais, em sua maioria híbridas e recompostas; (ii) à multiplicação e maior visibilidade dos grupos orientais, em toda a sua diversidade étnica e cultural, tanto as diferentes expressões de Budismo, de Xintoísmo e de Confucionismo como as religiões recém-chegadas ao Brasil tais como Seicho-no-Ie, Perfect Liberty e Igreja Messiânica, e outras como Fé Bahaí, Hare Krishna e Osho; (iii) à presença pública, embora minoritária, das diferentes expressões do Judaísmo e do Islã; (iv) à força popular do Espiritismo Kardecista e às expressões espiritualistas e mágicas que se configuram em torno da chamada Nova Era e outras formas em ascensão como Wicca e Rosa Cruz; (v) a expressões religiosas caracterizadas pelo ritual de consumo de ayahuasca, como o Santo-Daime, Barquinha e União Vegetal; (vi) ao esforço nucleador dos Mórmons e Testemunhas de Jeová; (vii) ao fortalecimento institucional dos movimentos católicos de Renovação Carismática, que reforçam a pluralidade católica constituída por dezenas de ordens, grupos e tendências doutrinárias e teológicas; (viii) ao crescimento evangélico, em especial o das igrejas e movimentos pentecostais, ao lado da visibilidade pública e midiática desses grupos, somada à presença e atividade das igrejas evangélicas chamadas ‘tradicionais’; e (ix) à maior atenção à intensificação das experiências de trânsito religioso e de múltiplas participações (ou pertenças) religiosas. 

Todas essas expressões, além de outras, formam um cenário complexo e de matizes as mais diferenciadas, ainda mais se forem acrescentadas as formas religiosas seculares e culturais, como as terapêuticas, de autoajuda, econômicas, midiáticas e de entretenimento. Não se pode esquecer o número crescente de pessoas que se declaram sem religião, que no Brasil estão atrás apenas dos grupos católicos e evangélicos. 

Ao se olhar mais detidamente para o quadro religioso brasileiro, é possível verificar que há um crescente número de pessoas que desejam a experiência da fé sem a necessidade de submissão às instituições religiosas ou mesmo sem adesão forte à vivência religiosa comunitária. Na fé privatizada, cada pessoa escolhe o que deseja crer, onde e como exercer a experiência religiosa, não obstante os instrumentos e mecanismos ideológicos e massificantes que marcam esse cenário. No entanto, tais expressões quase sempre são acompanhadas por dimensões públicas e articuladas com aspectos políticos. 

Tais características estão presentes no quadro religioso brasileiro e se reforçam a partir de vários elementos. Um deles são as formas de trânsito religioso. Ele se dá não apenas na migração de uma religião para outra, mas também na recomposição simbólico-cultural de diferentes sistemas de crenças, intensificando o pluralismo religioso. Isso ocorre em distintos tipos de expressão religiosa: (i) o que afirma determinada pertença e admite experimentar outras expressões religiosas; (ii) o que, por motivos pessoais nem sempre confessáveis, declara uma religião, mas exerce outra; (iii) o que harmoniza e integra relativamente bem mais de uma tradição religiosa; (iv) o que não adere a uma religião específica, mas transita por mais de uma; e (v) aquele que, mesmo mantendo a sua pertença religiosa, articula elementos simbólico-rituais de outras religiões.

Outro elemento de destaque na diversidade religiosa brasileira é o fato de se terem simultaneamente um agravamento e recrudescimento das práticas fundamentalistas e um florescimento de visões religiosas mais arejadas, abertas ao diálogo e valorizadoras do pluralismo. Não obstante o fortalecimento institucional e popular de propostas religiosas com acentos mais verticalistas, em geral conflitivas, fechadas ao diálogo, marcadas por violência simbólica e de caráter fundamentalista, o campo religioso tem experimentado também formas ecumênicas de diálogo entre grupos religiosos distintos. Pressupomos um tipo de fundamentalismo, mais associado a certa refutação religiosa das perspectivas antropológicas que levam em conta as formas de evolução do universo e da vida humana e as explicações mais racionais da vida e a possibilidade de visões plurais. Tais concepções são recompostas com novas ênfases, mas mantêm resguardada certa oposição às formas de autonomia humana. No campo cristão, tanto católico-romano como evangélico, por exemplo, são visíveis as reações contra posturas mais abertas no campo da sexualidade, especialmente no que se refere ao direito das mulheres ao próprio corpo e ao prazer e também à homoafetividade e contra o pluralismo em geral. 

Outro aspecto de destaque no quadro de pluralismo religioso é como se dá o exercício da autoridade religiosa nos diferentes contextos. Há uma considerável diversidade de práticas e compreensões do que seja uma autoridade religiosa, e tal pluralidade envolve as diferentes instituições e movimentos religiosos. 

Em geral, essas múltiplas compreensões estão intimamente articuladas com as formas pelas quais o poder é exercido internamente, tanto em nível macro (que pode abarcar, por exemplo, uma religião com inserção mundial) quanto em níveis do cotidiano e das relações internas de uma pequena comunidade religiosa. A compreensão relativa às autoridades religiosas também se diversifica na medida em que estas podem ser vistas pelos setores externos por diferentes ângulos.

A concepção e a forma do exercício da autoridade em uma comunidade ou instituição religiosa podem variar dependendo de certos fatores. Em geral, os grupos externos a determinada comunidade religiosa (as mídias, outros grupos religiosos, os poderes públicos etc.) olham-na sob perspectivas mais formais e institucionalizadas. Nem sempre estão atentos aos movimentos internos de maior ou menor legitimação das autoridades, à heterogeneidade dos grupos e das confissões religiosas, tanto em níveis mais gerais (mundiais, nacionais ou regionais) quanto no âmbito de uma comunidade ou grupo local.

Historicamente, ainda que haja uma variação de religião para religião, tanto os fatores internos que configuram as relações de poder quanto as visões externas tendem a concentrar o foco de autoridade em homens brancos e de poder econômico e escolaridade mais elevados. No entanto, em quase todos os ramos religiosos há movimentos e situações que contradizem essa constatação; isso desafia especialmente os setores externos – incluindo as mídias e variados campos da sociedade civil – a perceberem as ambiguidades e pluralidades internas de cada grupo e a criarem canais de visibilidade e expressão para eles. 

No Brasil, é considerável, por exemplo, o papel de mulheres no campo cristão-evangélico, com a presença de pastoras e bispas, e também no universo afro-brasileiro, com as mães de santo. Além disso, é possível destacar o exercício da autoridade religiosa de pessoas com escolaridade básica, pouco letradas e pobres, especialmente no campo pentecostal, com pastores que atuam em áreas periféricas, e pais de santo, no campo das religiões afro-brasileiras. Esses grupos nem sempre são bem analisados pelos círculos acadêmicos e praticamente ficam ausentes dos espaços das mídias convencionais. Elas costumam olhar a realidade religiosa sob um prisma de homogeneidade, formalidade e institucionalidade hegemônica, não valorizando as diversidades internas de cada religião e as do quadro religioso em geral nem dando voz aos grupos dissidentes, alternativos e contra-hegemônicos.

Claudio Ribeiro. Doutor em Teologia pela PUC-Rio e coordenador para pós-graduação profissional da Área Ciências da Religião e Teologia, na Capes.

Saiba mais!

RIBEIRO, Claudio de Oliveira; CATENACI, Giovanni. O pluralismo religioso em debate. São Paulo: Reflexão, 2017.

RIBEIRO, Claudio de Oliveira; ARAGÃO, Gilbráz; PANASIEWICZ, Roberlei (orgs.). Dicionário do pluralismo religioso. São Paulo: Recriar, 2020.

TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (org.). Religiões em movimento: o censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013.