Desde 2023, quando o Monitoramento de Projetos de Lei foi iniciado pelo ISER, tornou-se evidente a interseção entre a atividade legislativa e as pautas midiáticas. Isto porque foi possível observar que temas de grande repercussão acabam ocupando espaço no cenário parlamentar na forma de Projetos de Lei. Em 2024, a mesma tendência se observa. 

Neste primeiro boletim do ano, com o monitoramento do mês de fevereiro, período de retorno do recesso parlamentar, temas que permearam o noticiário e postagens em mídias sociais, como epidemia de dengue, abusos sexuais na região de Marajó, saídas temporárias de pessoas que cumprem medidas prisionais (por conta do período de Natal), tornaram-se objeto de PLs. Outros temas já identificados no monitoramento seguem com destaque e outros são intensificados.

Saúde Pública: a ameaça da dengue

O Brasil registrou mais de um milhão de casos de dengue  nas primeiras semanas de 2024. O tema se tornou foco do PL 351/2024,  de autoria da deputada afrorreligiosa Dandara (PT/MG). O projeto dispõe sobre medidas de enfrentamento às consequências sociais da emergência de saúde pública causada pelo vírus da Dengue.  

O caso Marajó

As redes digitais foram tomadas, na última semana de fevereiro de 2024, por postagens em torno da exploração sexual infantil na Ilha de Marajó (PA). Os debates emergiram após a viralização de um extrato de vídeo que apresentava uma canção interpretada em um reality show gospel, transmitido em canal de YouTube.  A cantora e compositora citou a região de Marajó, ao cantar “Ah, enquanto isso, no Marajó, o João desapareceu esperando os ceifeiros da grande seara”. A frase abriu caminho para que os jurados do reality falassem sobre problemas sociais do local. De imediato, antigas declarações da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) sobre abuso sexual na região, fossem retomadas nas publicações nas redes digitais. 

Deputados com identidade religiosa, com destaque para Nikolas Ferreira (PL) e Carlos Jordy (PL), fizeram contundentes publicações sobre exploração sexual de crianças no Marajó. Nessa linha o deputado evangélico Raimundo Santos (PSD/PA) apresentou o PL 452/2024, que cria o Fundo de Prevenção ao Tráfico Humano e Exploração Sexual Infantil na região do Marajó, doravante denominado “Fundo Marajó Sem Exploração” e dá outras providências.

 Ainda que o caso Marajó tenha provocado a proposição específica do deputado do Pará, a categoria que engloba Direitos da Criança e do Adolescente, neste monitoramento do ISER, é uma pauta forte de proposições parlamentares na Câmara, com destaque para o tema da exploração sexual. A categoria reúne, desde o início desta legislatura, há pouco mais de um ano, 161 PLs. 

Retirada e redução de direitos de presos e acusados 

Um significativo número de PLs protocolados, em fevereiro de 2024, com intensidade expressiva de parlamentares de partidos da direita, teve como alvo a retirada ou redução de direitos de presos e acusados referentes à saída temporária de detentos do sistema prisional brasileiro e à audiência de custódia

A saída temporária é um direito garantido na Lei nº 7210/1984, a Lei de Execuções Penais (LEP), que contribui para reduzir os danos produzidos pelo encarceramento, como a quebra de vínculos familiares e comunitários. Campanhas de desinformação buscam criar pânicos sociais e estimular o punitivismo, por este motivo o ISER publicou recentemente alguns conteúdos com o objetivo de ajudar na compreensão de como funciona essa prerrogativa. O pesquisador da casa Erivelto Melchiades gravou um vídeo com respostas às dúvidas mais frequentes sobre o assunto.

“As datas comemorativas, como feriados nacionais, normalmente são as datas preferidas pelos juízes para concessão do famoso “saidão” temporário. Esse saidão nada mais é que um benefício concedido aos presidiários em regime semiaberto e, que, segundo noticiado na grande mídia, o número de evasão e de crimes nesse período aclama mais discussão sobre a necessidade de extinção desse tipo de concessão.” 

O trecho acima faz referência à justificativa apresentada no  PL 72/2024,  de autoria do deputado cristão  Sargento Portugal (PODE/RJ), que restringe o benefício de saída temporária para presos que cometeram crimes graves ou que possuam vínculos com organizações criminosas, com o objetivo de aumentar a segurança pública e evitar possíveis riscos à sociedade.

O deputado evangélico Junio Amaral (PL/MG) é autor do PL 471/2024, que busca  aperfeiçoar a aplicação de sanções nos casos de violação dos deveres envolvendo o monitoramento eletrônico.  Na mesma direção, o  PL 44/2024, de autoria dos deputados de confessionalidade não identificada  Marcelo Queiroz (PP/RJ) e  Delegado Matheus Laiola (União/PR),  institui a “Política Nacional De Olho Nas Ruas”, que consiste na implementação gradativa de aparelhos de videomonitoramento pelos órgãos de segurança pública municipais, estaduais e federais, objetivando a diminuição da criminalidade em todo o território nacional. 

Alterações na  Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execuções Penais, foram foco de três PLs: 

  • o PL 142/2024 , de autoria do parlamentar católica  Félix Mendonça Júnior (PDT/BA), para vedar a saída temporária aos condenados por crimes praticados com violência ou grave ameaça.
  • o PL  69/2024, de autoria do deputado cristão  Sargento Portugal (PODE/RJ), a para tornar mais rígidos os critérios de concessão da saída temporária.
  • PL 63/2024,  de autoria do deputado católico Delegado Marcelo Freitas (União/MG), acrescenta a alínea a, ao inciso IV do artigo 66, e altera o parágrafo 2º do artigo 122 da lei, para determinar que não será concedido benefício de saída temporária a presos condenados por crimes cometidos com violência ou grave ameaça.

Lançada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2015, e validada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no mesmo ano, a Audiência de Custódia busca evitar prisões desnecessárias, abusivas ou ilegais, atenuando-se os problemas de superlotação carcerária como demonstra pesquisa da área de Sistema de Justiça e Direitos do ISER. O assunto foi destacado na Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2024, nos seguintes projetos:

  • O PL 71/2024,  de autoria do deputado cristão  Sargento Portugal (PODE/RJ). O texto prevê que não terá direito a audiência de custódia o agente recapturado pela prática de qualquer crime no lapso temporal de 6 (seis) meses, a contar da primeira captura ou se o agente for reincidente pela prática de mesmo crime. 

  • “A audiência de custódia, fundamentalmente concebida como um mecanismo para otimizar a eficiência do sistema de Justiça criminal, tem sido, no entanto, suscetível a erros”.  Esta é a justificativa apresentada no PL 152/2024, de autoria do deputado cristão Coronel Assis (União /MT). Para o deputado cristão,  o juiz deve se abster sob qualquer circunstância, de realizar audiência de custódia para agentes reincidentes.  Nesses casos, o deputado sugere que a  concessão de liberdade provisória deve ser negada, sendo indicada a manutenção da prisão até o julgamento definitivo.

Segue a disputa por calendários e patrimônio cultural

Em 2023, o monitoramento do ISER identificou 83 PLs relacionados à  instituição de datas cívicas e de elementos a serem considerados patrimônio cultural. Esta pauta segue forte em 2024. O PL 341/2024, de autoria do deputado católico Raniery Paulino (Republicanos/PB), institui o Dia Nacional de Deus, Pátria, Família e Liberdade Democrática.  

Já o  PL 90/2024, de autoria do deputado de identidade religiosa não identificada Duarte Jr (PSB/MA), visa considerar Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil os Retiros Culturais realizados pelos Cristãos no período carnavalesco. Enquanto o  PL 254/2024, de autoria do deputado cristão Sargento Gonçalves (PL/RN), altera a Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, para incluir “restrições à aprovação de projetos culturais que atentem contra a honra e a imagem das forças policiais, promovam a promiscuidade, afrontem a família, os valores religiosos, a sexualização infantil, ou promovam outras condutas socialmente reprováveis”.

Ameaça terrorista e armamentismo em foco 

O deputado evangélico Davi Soares (União/SP) é autor do PL 274/2024, que prevê que  nas aulas de Filosofia, Sociologia e Geografia seja obrigatório o ensino de temáticas que versem sobre as consequências das práticas terroristas e os riscos que os grupos extremistas apresentam para a segurança da sociedade.

O PDL 02/2024, de autoria de  Julia Zanatta (PL/SC),  tem por finalidade sustar os efeitos de uma portaria do Ministério da Defesa. Segundo a deputada cristã, “impedir, restringir ou dificultar o acesso a armas de fogo e munições por agentes de segurança, treinados e capacitados para sua operação, só prejudica a segurança em nosso país e lesa, cada vez mais, a segurança jurídica de tais pessoas.”  A justificativa do PL ainda afirma que é inadmissível que o Executivo edite e revogue, sucessivamente, atos envolvendo armas de fogo, por razões puramente políticas,sem qualquer embasamento técnico.

 

Imigração: pauta intensificada com foco em restrições

O PL 276/2024, de autoria da deputado evangélico David Soares (União/SP), visa  tornar obrigatória a expulsão de migrante ou visitante em território nacional que esteja envolvido em crimes como roubo, estupro, uso de documento falso e tráfico internacional de drogas.  Em sua justificativa afirma:“nosso país já sofre com criminalidade cometida por seus naturais e não pretendemos absorver mais essa demanda”.  

O tema volta a aparecer no PL 199/2024, de autoria da deputada católica Laura Carneiro (PSD/RJ),  que visa a  imposição de penalidades severas para “coiotes” ou pessoas intermediárias que facilitem o processo de migração internacional ilegal. Destaca ainda que as organizações criminosas exploram vulnerabilidades dos migrantes os submetendo à “atividades degradantes como prostituição, tráfico de drogas e contrabando.”



Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em Ciências Sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.

Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Pesquisadora do ISER.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-ECMI), doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER.