Os crentes de ontem e os evangélicos de hoje
Novaes, Regina. Os escolhidos de Deus – pentecostais, trabalhadores e Cidadania. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião, 2025.
Por Lívia Reis e Laryssa Owsiany
- 15 dez 2025
- 10 min de leitura

Publicada originalmente em 1985 como parte dos Cadernos do ISER, a obra Os escolhidos de Deus: pentecostalismo, trabalhadores e cidadania, de Regina Reyes Novaes, retorna ao público quatro décadas depois como o primeiro título de uma coleção dedicada a reatualizar textos clássicos das ciências sociais da religião no Brasil. A reedição, promovida pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), não apenas homenageia a trajetória intelectual e institucional da autora, mas também reitera a vitalidade de um livro que continua a iluminar questões centrais sobre o lugar da fé, do trabalho e da cidadania na experiência dos pentecostais brasileiros. A seguir, revisitamos Os escolhidos de Deus à luz do contexto histórico de sua produção e das transformações do campo religioso que, desde então, o tornaram ainda mais atual.
O estudo do cristianismo pela antropologia nem sempre foi uma escolha óbvia, tampouco fácil, já que a religião ocupava um lugar secundário quando comparada aos temas clássicos das Ciências Sociais. Além disso, como demonstram os balanços da área, as Ciências Sociais da Religião consolidaram-se no Brasil em torno de recortes disciplinares e linhagens teóricas bem definidas, o que, de acordo com Paula Montero (1999), ajudou a estabelecer certos padrões interpretativos sobre o fenômeno religioso. 7As tradições de matriz africana, por exemplo, foram privilegiadas por antropólogos, de inspiração durkheimiana e depois bastidiana, com foco em seus mitos e rituais, por um lado, e em suas articulações com o catolicismo popular na formação de uma identidade e da cultura nacional, por outro.
Já a sociologia da religião deu maior centralidade ao cristianismo. Seja de inspiração weberiana, com foco nos protestantes, seja em diálogo com o marxismo, com foco nas relações entre católicos, Estado e sociedade, as discussões iniciais do campo tinham como preocupação os obstáculos ao processo de modernização, suas consequências para a democracia brasileira e suas implicações em termos de mudança social.
Naquele momento, com algumas exceções (Procópio 1973), havia pouco interesse no estudo do protestantismo, muito menos do pentecostalismo, o que demonstra a tendência de Novaes em identificar e antecipar questões que se consolidaram, posteriormente, como centrais nas discussões sobre os evangélicos no Brasil.
Esta pesquisa, como a própria Regina faz questão de lembrar com frequência, foi desenvolvida quando os evangélicos eram protestantes ou crentes. A categoria evangélicos tal como a conhecemos hoje, um guarda-chuva que aglutina diversas tradições cristãs não católicas e cuja origem remonta à reforma protestante, acabou sendo incorporada pelas Ciências Sociais da Religião no Brasil posteriormente, desde os Estados Unidos, onde designa um conjunto mais específico de cristãos.
Em 1974, entretanto, foram os crentes que chamaram a atenção da autora. Naquele ano, Regina Novaes havia se juntado à equipe de Moacir Palmeira e Lygia Sigaud para participar de um trabalho de campo coletivo sobre as condições de vida e trabalho na zona da mata canavieira de Pernambuco. Segundo a autora, os trabalhos que tratavam do pentecostalismo estavam pouco atentos ao que, à época, a literatura chamava de “sociedades camponesas”, bem como associavam o segmento religioso à alienação, ao fundamentalismo e ao individualismo.
Contudo, na zona da mata pernambucana, Novaes se deparou com outra realidade: “Certa postura, um sentimento de ‘escolhido por Deus’, tornava-os diferentes de outros trabalhadores entrevistados quando se relacionavam com o pesquisador do Rio de Janeiro, de outra classe social” (p. 24).
A possibilidade de construção de uma subjetividade valorizada a partir do pentecostalismo, por assim dizer, que tanto chamou a atenção de Regina na década de 1970, é um dos motivos que faz de sua obra tão atual. Na contramão da literatura, Novaes demonstrou que o pentecostalismo operava como tecnologia de produção de autoestima e de reconstrução simbólica com impactos individuais e coletivos. Não apenas nas relações familiares, mas também nas formas de organização do trabalho e de reivindicação por cidadania.
A nova religiosidade, portanto, revelava-se como um espaço de construção de novas subjetividades e práticas sociais mediadas por uma ética marcada pela disciplina moral, pela valorização do trabalho e pelo compromisso com a manutenção do próprio grupo que rompia com padrões de sociabilidade tradicionais, mas forjava outros próprios.
Hoje, em um momento em que evangélicos somam quase 30% da população brasileira, as características identificadas por Novaes em um contexto muito específico não apenas se confirmaram, como se ampliaram e ganharam novas camadas.
Os escolhidos de Deus descreve o processo de conversão de parte da população católica ao pentecostalismo da Assembleia de Deus no agreste pernambucano, e sua importância se revela nas muitas questões que antecipa, resultado de uma etnografia atenta e de uma base teórica consolidada.
Engana-se, contudo, quem pensa tratar-se de uma etnografia sobre crentes. Pelo contrário. Novaes pensa o pentecostalismo sempre em relação com outras religiosidades e também com a conjuntura mais ampla na qual a mudança religiosa ocorre. O cuidado da autora em não fazer generalizações se revela tanto na recusa àquilo que, inspirada em Pierre Bourdieu, chamou de “monogamia teórica”, como no modo como conduz o exercício metodológico da pesquisa.
Conforme apresenta seus dados de campo, a autora deixa clara sua opção por uma perspectiva relacional e comparativa que fala não sobre a conversão em si, mas sobre as repercussões da conversão ao pentecostalismo em uma comunidade específica, localizada em um contexto histórico e socioeconômico. O olhar aguçado para as ambivalências e para as exceções, uma característica que até hoje permanece no exercício antropológico que Regina nos estimula a fazer, desafia quaisquer interpretações estáticas sobre o fenômeno que observou.
O livro se destaca por identificar uma forma refinada de articulação entre religião e política. Ao investigar como a religião molda noções de cidadania, Novaes abriu caminho para compreender as atuais formas de presença pública dos evangélicos, inclusive na política institucional. Em vez de assumir uma perspectiva normativa, Novaes nos estimula a considerar a relação entre religião e política como um caso “bom de pensar” uma à outra – outro exercício que ainda hoje ela também nos estimula a fazer.
Embasada pela escola sociológica francesa, de forma geral, e por Bourdieu, em particular, sua etnografia mostra coisas e pessoas em relação, desvela as categorias nativas que permitem acessar representações coletivas, monta sistemas de oposições e indica categorias analíticas importantes para pensar o pentecostalismo vivido naquele contexto. As categorias nativas, nesse sentido, são prioridade para Novaes, e foi a partir delas que se atentou para a necessidade de não opor, automaticamente, o político/racional ao religioso/simbólico.
Além disso, Novaes nos apresenta uma noção alargada de religião para além do ritual, trazendo o foco para o cotidiano e para a ação política de pessoas que tinham uma forte identidade religiosa, mas não só. A obra também identificou a centralidade das mulheres na congregação, mostrando que a elas cabia o papel de certas iniciativas religiosas – o que não era trivial –, e descreveu os processos de ruptura familiar e social dos convertidos e a forma como eles se encontravam na base da percepção daquele grupo como uma minoria política.
A posição de grupo minoritário, inclusive, dá sentido à identidade crente porque pressupõe ação e organização. Não apenas na busca por mais adeptos, mas para manter aceso o fogo do avivamento e a conduta da qual depende a continuidade da comunidade de irmãos de fé enquanto tal.
Nesse sentido, Novaes demonstra que a identidade religiosa construída no jogo dialético de semelhanças e diferenças com outras alternativas religiosas encontra sua matéria-prima na própria posição subordinada que têm no campo religioso. Não por acaso, as discussões sobre a construção de uma “retórica persecutória” e dos discursos de “minoritização” no campo evangélico foram mais bem desenvolvidas por Clara Mafra (2002) e Joanildo Burity (2024), respectivamente, mas, ainda hoje, a percepção como minoria guia as formas de presença pública e as reivindicações de determinados segmentos evangélicos.
Na introdução à publicação original, Regina Novaes destaca o que chama de “óbvias limitações do estudo, localizado no tempo e no espaço” (p. 28). A autora reforça em vários momentos que aquele seria um trabalho de momento: “Não apenas de um momento da trajetória de um pesquisador, mas principalmente de um momento dos estudos acerca do pentecostalismo no Brasil” (p. 23). Pedimos licença para discordar. Arriscamos dizer que a riqueza do trabalho e a sua permanência no tempo como um clássico seja resultado, por um lado, do cuidado com que conduz o estudo de caso, e, por outro, da ênfase que dá às diferenças na tentativa de reconhecer os movimentos sem desconsiderar as trajetórias e relações em diferentes espaços, incluindo os não religiosos.
Mais do que uma maneira de interpretar os dados, Novaes também nos ensina seu modo de fazer antropologia, em grande parte aprendida com os estudos do campesinato, com Moacir Palmeira e Lygia Sigaud, e da interlocução com Gilberto Velho, ambos no Museu Nacional/UFRJ. À luz do que aprendeu com seus mestres, Novaes apresenta conceitos e teorias sem engessar suas interpretações. Também ensina a localizar suas escolhas teóricas e a pensar nas relações de poder que atravessam as condições de produção da pesquisa.
Além disso, sua sensibilidade antropológica também é atravessada pela militância política formada na interlocução entre movimentos estudantis, sociais, sindicais e religiosos, além, evidentemente, de sua formação católica, que certamente forjou a sensibilidade a partir da qual Novaes olha para o campo religioso.
De modo geral, a obra ilumina os modos como o pentecostalismo reconfigura a vida dos trabalhadores pobres, articulando fé, moralidade, trabalho e cidadania, e ao mesmo tempo nos desafia a pensar a complexidade do fenômeno religioso sem reduzi-lo a categorias rígidas. Ao fazê-lo, Regina Novaes oferece ferramentas conceituais e metodológicas que continuam fecundas para compreender o lugar da religião na sociedade brasileira contemporânea.
Como produto de uma dissertação de mestrado, em vários momentos do texto a autora dialoga com o que está sendo produzido na literatura sobre o tema à época, mas sempre colocando novas e instigantes questões. Na apresentação do livro, Regina Novaes expressou com modéstia e generosidade que “a validade em o publicar está na possibilidade e na esperança de que motive novas pesquisas” (p. 28). Quatro décadas depois, esta reedição carrega o mesmo desejo: que suas páginas continuem a inspirar perguntas, inquietações e novos caminhos investigativos.
Como citar
REIS, Lívia; OWSIANY, Laryssa. "Os crentes de ontem e os evangélicos de hoje". Religião e Poder, 15 dez. 2025. Disponível em: . Acesso em: .
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