Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 18 nov 2022
O que é ‘ideologia de gênero’? Como entender o ‘backlash’? Este glossário explica os conceitos e o contexto da reação ao movimento que busca garantia de direitos.
É evidente o reflexo das demandas dos movimentos feministas na sociedade brasileira. Se antes bater em mulher era tido como comportamento naturalizado de “ninguém mete a colher”, com a implantação de políticas públicas de combate aos ciclos de violência, o Estado passou a meter a colher nas relações de poder violentas instituídas e reproduzidas pelo sistema racista-patriarcal. A luta pelo fim da violência de gênero não se restringe aos feminismos, uma vez que este tema pode ser facilmente encontrado na pauta mobilizatória de conservadoras(es) que buscam, entre vários objetivos, refutar os feminismos. No entanto, os feminismos se configuram enquanto importantes atores políticos que, agenciado por diferentes vertentes, filosofias e agendas, protagoniza o questionamento destas violências, como propõe-se a abordagem do feminismo interseccional, que o faz a partir de alguns grifadores sociais de raça, classe, território e gênero. Fato que o separa, em alguma medida, da perspectiva de violência patriarcal por vezes naturalizada por atores conservadores.
Há pesquisadores(as) que estão analisando os impactos dos antifeminismos em diferentes países. Neste glossário gostaria de apresentar reflexões que apontam para o estabelecimento de um contramovimento antifeminista cuja reação aos feminismos têm se materializado na sociedade brasileira e que abarcam desde legislações restritivas as discussões de gênero e criminalização social desta discussão, como em disputas e tensões pelo termo “feminismo”. O glossário apresenta reflexões sobre campo antifeminista, ofensiva antigênero, antifeminismos, políticas antigênero, “backlash” e o uso estratégico-discursivo do termo “ideologia de gênero”.
Campo antifeminista
A consolidação do feminismo brasileiro abarca desde uma plataforma do feminismo civil nomeado de “sufragismo” com reivindicações relacionadas aos direitos trabalhistas e congrega agendas e pautas extensas por autonomia e justiça social-corporal-racial. Esta plataforma de reivindicações é alvo de diversas ofensivas antigênero. Os feminismos são ideologias políticas típicas da modernidade e carregam representações sociais que são constantemente alvo de desqualificação e invalidação por diferentes atores e campos ideológicos. Os motivos? A partir de suas diferentes perspectivas (às quais não cabe aqui nomeá-las, mas recordá-las) são movidas e questionadas estruturas consideradas fundantes para o sistema de dominação branca e masculina.Em tempos de assento autoritário com flertes antidemocráticos situados pelas crises do capitalismo, as reações aos valores feministas ficam ainda mais evidentes. Tais reações não são de hoje. Os antifeminismos têm ganhado corpo na sociedade brasileira e em contextos de lutas feministas pois suas estratégias de desqualificação moral, aliada à uma perspectiva masculinistados papéis sociais, reitera e busca domesticar o lugar das mulheres e das populações menosprezadas à uma condição de subalternidade. A partir desta desqualificação temas como maternidade, família e aborto parecem ser âncoras discursivas-políticas que são mobilizadas para refutar e disputar os sentidos dos feminismos através de insistentes ofensivas antigênero.
Ofensiva antigênero
A ofensiva antigênero pode ser caracterizada enquanto uma complexa rede de articulações de caráter transnacional direcionada a desmistificar, questionar, refutar e invalidar as demandas afirmativas relacionadas a gênero, sexualidade e poder nas diferentes esferas sociais. Para haver uma ofensiva é preciso a existência de campos (culturais, sociais e políticos) em consolidação. Quando referido à ofensiva antigênero estamos direcionando ao multifacetado e diverso campo das lutas dos movimentos feministas, antirracistas e de diversidade sexual, que juntos envolvem uma extensa luta por reconhecimento, direitos e garantias fundamentais na contemporaneidade. A reação a estes campos se explicita em articulações internacionais que, a partir de estruturas religiosas, financeiras, midiáticas e culturais, organizam ideologicamente as refutações às agendas propostas por estes grupos.Esta rede de articulações é aclamada em plataformas de candidatos não exclusivos das ideologias de direita e extrema direita, em organizações internacionais reacionárias com influência de grupos ultraconservadores da Espanha, Estados Unidos com relevância na América Latina. São redes como Hazte Oir (Se Faça Ouvir), CitizenGo (Vamos, Cidadão) e ONGs pró-vida que atuam em políticas e culturas antigênero influenciadas na filosofia do integrismo católico para aplicarem em políticas de Estado. Além desta estrutura maquinária que consolida a ofensiva antigênero, há toda uma produção cultural/intelectual/religiosa organizada por líderes e agentes laicos, acadêmicos, empresários, religiosos e chefes de Estado que visam difamar as agendas por igualdade de gênero.
Antifeminismos
Partindo da definição do sociólogo espanhol José Bonet-Martí (2021), o antifeminismo trata-se de um contramovimento que se assume com singularidades próprias nos contextos das lutas feministas. Os antifeminismos se organizam enquanto reações e refutação aos feminismos no sentido de invalidar cultural e politicamente as agendas propostas pelo movimento. Este contramovimento pode ser interpretado por diferentes lentes, chegando a ser caracterizado no plural: antifeminismos. Na perspectiva do sociólogo, se instituí formas próprias de organização antifeminista tendo diferentes modalidades como é o caso do “antifeminismo religioso”, “antifeminismo de Estado”, “ciberantifeminismos”, “antifeminismo masculinista”, “antifeminismo pós-feminista”, “antifeminismo racial”, entre outros.A psicóloga Raquel Soihet (2008) classifica-o enquanto uma ideologia que usufrui de manifestações de violências simbólicas organizadas pelo sistema de dominação masculina. Refutações aos feminismos buscam justificar a luta por igualdade de gênero reduzindo-o à “não sou feminista, sou feminina”, “feminismo é subversão das mulheres”, “feminismo é contra os homens e a maternidade” e etc. Um dos instrumentos afetivos utilizados por atores antifeministas é o riso e zombaria no intuito de classificar moralmente feministas enquanto seres “viragos”, “arrogantes” e “frustrados”. A partir desta régua moral, se imprime socialmente desqualificações daquelas que se reivindicam feministas no intuito de restabelecer a ordem tradicional entre os gêneros, objetificar as mulheres e abolir a existência de assimetrias e desigualdades sociais entre os sexos.
Políticas antigênero
São ações desenvolvidas no âmbito das políticas públicas em confrontação ao Estado no intuito de 1) destruir políticas consolidadas em governos que reconheceram a igualdade de gênero e 2) desmitificar programas/legislações/ações com perspectiva de gênero. A pesquisadora Sônia Correa (2018) aponta que as políticas antigênero tomam corpo na América Latina e em particular no Brasil com a gestão do presidente Bolsonaro que busca criminalizar essas discussões através do código “ideologia de gênero”. As políticas antigênero se espraiam para outros campos da atuação estatal, como ações diplomáticas, alterações da legislação sobre aborto legal e desmontes dos programas de assistência social, educacional e de saúde, dos quais as mulheres são as principais beneficiárias. Um exemplo recente dessa política no Brasil é o programa inaugurado em 2021 pela então Ministra Damares Alves para denunciar possíveis doutrinações de “ideologia de gênero” nas escolas através do Disque 100, serviço historicamente direcionado às violações dos direitos humanos. Tal política tem como alvo criminalizar e censurar professores que abordem discussões de gênero no espaço escolar. Outra ofensiva do MFDH (Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos) foi a organização de painéis públicos e produção de cartilhas sobre as “armadilhas do feminismo”. Ainda fica evidente a consolidação de políticas antigênero quando o próprio Ministério tem seu nome anterior modificado: Ministério dos Direitos Humanos para Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Como apontam as pesquisadoras Jacqueline Teixeira e Olívia Barbosa (2022), está em disputa com essa mudança o sentido de família heteronormativa e patriarcal a partir da concepção universal dos direitos humanos.
Ideologia de gênero
“Ideologia de gênero” é um maquinário discursivo (persuasivo e retórico) fabricado e inventado pelo Vaticano nos anos de 1990 para questionar os avanços e transformações em relação ao gênero, sexo e sexualidade (Junqueira, 2022). O neologismo “ideologia de gênero” é reproduzido sistematicamente por hierarquias e organizações religiosas e laicas, movimentos eclesiais, redes de associações pró-família e pró-vida, clínicas de conversão sexual, organizações de juristas e de médicos cristãos, bem como partidos e políticos de extrema direita (e não só), profissionais da mídia, agentes públicos, dirigentes do Estado, entre outros. No Brasil, o uso deste sintagma neológico foi utilizado em diferentes episódios das últimas duas décadas, mas teve sua mobilização evidenciada durante as discussões pela inclusão de gênero e sexualidade nos planos de educação entre os anos de 2015 a 2018.Esta gramática político-moral (Miskolci e Campana, 2017) consiste em um campo de ação em que, a partir de estratégias de comunicação, os atores acima citados acusam feministas e quaisquer pessoas que abordam as questões de gênero de serem “imorais” e “doutrinadores”. O uso do termo “ideologia de gênero”, de matriz católica, se espraia por outras filiações religiosas e se apresenta como arma política de cunho acusatório. Esta acusação evidencia-se quando, por exemplo, ao defender educação sexual nas escolas como medida de prevenção aos abusos contra crianças e adolescentes, atores antigênero usufruem de semânticas discursivas e visuais e criam estratégias para sustentar narrativas. Grupos políticos-religiosos acusam e refutam aqueles que defendem a educação sexual enquanto “ideólogos de esquerda” que buscam impor “banheiros unissex” para as crianças e “doutriná-las” sobre suas sexualidades. São narrativas que demonizam a “ideologia de gênero” e conferem autoridade exclusiva à educação família, tornando-se um backlash(refluxo antifeminista).
Backlash (Refluxo antifeminista)
O termo cunhado pela jornalista estadunidense Susan Faludi (2001) pode ser traduzido enquantoum refluxo antigênero que tanto orienta o cinema, TV, instrumentos midiáticos e as indústrias da moda e beleza como sustenta a retórica dos discursos antifeministas e das políticas antiaborto. O backlash seria a cartilha da nova direita em sua cruzada aos direitos das mulheres que usufrui de perspectivas biologizantes e naturalizadas do gênero (que por vezes também se apresentam em justificativas dos “feminismos transexcludentes”). O objetivo deste refluxo antifeminista é produzir artimanhas que invalidem o imaginário social dos valores feministas como autonomia, igualdade e direitos. A partir deste refluxo que envolve usos estratégicos do humor, religião, redes sociais e estímulo da sociabilidade masculina, toda uma cultura popular e, as próprias relações cotidianas, passam a ser impactadas com discursos e práticas antifeministas. Os desafios para desmistificar as articulações e narrativas antifeministas ainda são grandes. Ao finalizar esta coluna nos deparamos com inúmeras mensagens “encaminhadas com frequência” no WhatsApp e no aplicativo Kwai que relacionam enganosamente à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à implantação de banheiros unissex nas escolas e fechamento de igrejas evangélicas, “ideologia de gênero”, além do uso (sempre) político da pauta do aborto. No vale-tudo da eleição vários pânicos sociais de medo e indiferença são acionados para provocar sensações apocalípticas.
Tabata Pastore Tesser é mestra em ciência da religião pela PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e socióloga formada pela FESPSP (Fundação de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Integra o Grupo de Pesquisa Catolicismos Jurídicos Conservadores do Iser (Instituto de Estudos da Religião) e o Grepo (Grupo de Estudos sobre Gênero, Religião e Política) da PUC/SP. Profissionalmente compõe a equipe de CDD (Católicas pelo Direito de Decidir).
BIBLIOGRAFIA
Bonet-Martí, J. Los antifeminismos como contramovimiento: una revisión. Teknokultura. Revista de Cultura Digital y Movimientos Sociales, Madrid, 18(1), 01 setembro 2021. 61-71. Disponível aqui. Acesso em: 21 agosto 2022.
Corrêa, S. A “política do gênero”: um comentário genealógico. Cadernos Pagu, p. 16, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 fevereiro 2022.