Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 21 fev 2024

O número de estabelecimentos religiosos existentes no Brasil é um dado do atual Censo do IBGE (2022) apresentado no começo de fevereiro e que causou várias reflexões e reações – até por ser uma novidade censitária.  Como essa informação foi mostrada junto aos dados de outras instituições como escolas, hospitais/centros de saúde, clubes etc., foi imediata a comparação entre a quantidade desses estabelecimentos e os espaços religiosos. Jornalistas e outros formadores de opinião, além das redes sociais (esse fenômeno de comunicação heterodoxamente democrático de nosso tempo) ajudaram a divulgar e avaliar os distintos dados, com reflexões diversas e controversas. Nesse pequeno texto procuro fazer breves comentários sem querer, no entanto, dar uma palavra concludente sobre o assunto.

Para refrescar a memória, vejamos alguns destaques do que o IBGE mostrou quanto a diferentes tipos de estabelecimentos existente no Brasil:

– 579,7 mil estabelecimentos religiosos

– 264,4 mil estabelecimentos de ensino

– 247,5 mil estabelecimentos de saúde

Após a divulgação, o jornal Folha de S. Paulo publicou notícia com a seguinte manchete: “Brasil tem mais espaços religiosos do que de educação e saúde juntos, aponta Censo” (Folha, 2/2/24). O número de estabelecimentos de saúde e educação totalizam 511,9 mil. Diante dessa chamada jornalística, seguida de maneira similar por outros veículos de comunicação e reproduzida nas redes sociais, surgiram comentários variados, inclusive questionamentos críticos sobre a comparação de setores institucionais tão diferentes como estabelecimentos de saúde e educação versus espaços religiosos.

Para ficar apenas no quesito “estabelecimentos religiosos”, recorte desse texto, mas com comentários comparativos sobre outros itens divulgados, elenco algumas reflexões de maneira sucinta e preliminar.

Cresce o número de estabelecimentos religiosos?

É possível afirmar, com base em outras pesquisas já realizadas, que aumenta o número de estabelecimentos religiosos no país, mas para fins comparativos, sempre fundamental em pesquisa social, somente em uma próxima edição do Censo, a se manter esse quesito, se poderá avaliar com precisão seu crescimento ou decréscimo e em que níveis se encontra a presença de estabelecimentos religiosos no Brasil. Todos os grupos religiosos estão crescendo, com que taxas, ou alguns grupos estão mostrando declínio em termos de estabelecimentos religiosos? Quem perde, quem ganha, em que territórios sociogeográficos das cidades e em que regiões do país há mais alterações desses estabelecimentos? Essas são algumas questões básicas para aprofundamento e análise dessa temática.

Espaços com aparência sagrada – e até profana  

Com quase 580 mil estabelecimentos religiosos espalhados por todo o país é seguro dizer que o Brasil é uma terra com muitos marcos sagrados. Outrora, quando o cristianismo católico era a religião fortemente majoritária na sociedade brasileira os templos se destacavam especialmente a partir do centro das cidades. Com suas torres, sinos e cruzes, esses estabelecimentos religiosos eram frequentes tanto nas grandes quanto nas médias e pequenas cidade em todas as regiões do país. Tais espaços continuam lá mas há muito tem compartilhado os territórios urbanos e rurais com outras religiões e suas edificações, com arquitetura religiosas, mas também “laicas” e, mesmo, outrora consideradas “profanas”. Galpões, lojas, fábricas, cinemas, shoppings e muitos outros tipos de espaços têm sido usados e adaptados pelos mais diferentes grupos para atividades religiosas. Sim, os muitos e diferentes espaços religiosos, sempre com seus adeptos, reforçam a relevância de se estudar mais a sociedade brasileira pelo viés da religião, conjugando-a com outras variáveis, para se buscar decifrar um pouco de nossa instigante complexidade como nação. Para lembrar Tom Jobim, “o Brasil não é para principiantes”. Inclusive para muitas elites intelectuais e políticas que julgam entender mas têm revelado ignorância e, mesmo, preconceitos em relação a essas questões que envolvem religião, sociedade e política.

Diversidade religiosa e pluralidade de estabelecimentos – Ao se falar de estabelecimentos religiosos algumas pessoas podem restringir sua referência a espaços cristãos, por exemplo. O jornal O Globo, ao divulgar os dados do IBGE, assim se referiu a estabelecimentos religiosos: “igrejas e templos”, numa gramática restritivamente mais católica e evangélica. No entanto, por estabelecimentos religiosos – é preciso frisar – existe uma enorme diversidade, pois refere-se a todos os distintos espaços de fé no país. Além dos já citados, templos e igrejas de identidade católica e evangélica, os mais numerosos, somando-se inclusive as edificações de grupos como Testemunhas de Jeová, Mórmons e outros, o crescimento desses estabelecimentos se dá em muitos outros grupos religiosos. Centros espíritas, terreiros de umbanda e de candomblé (e outros espaços de culto de matrizes afro-brasileiras e indígenas), templos budistas, sinagogas (judaicas), mesquitas (islâmicas) e uma miríade de grupos mais diversos possíveis estão espalhados por todo o Brasil.

Importante destacar que alguns estabelecimentos evangélicos abrigam mais de uma comunidade cristã. Essa parece ser uma tendência crescente, que exige pesquisa. Com o surgimento de novos grupos evangélicos que não têm local para se reunir eles optam por buscar espaços em templos de igrejas estabelecidas para realizar seus cultos em dias e horários diferentes ou alternativos das reuniões da igreja proprietária ou responsável pelo estabelecimento físico. Algo semelhante ocorre em outros grupos religiosos para além dos evangélicos? Importante pesquisar.

Comparação inviável

É assimétrico comparar a quantidade de estabelecimentos religiosos com espaços educacionais e de saúde, inclusive por causa dos tamanhos físicos diferenciados entre eles e pela quantidade de pessoas que eles costumam atender, a considerar, por exemplo, grandes universidades e hospitais. Certamente há centenas de micro estabelecimentos religiosos que caberiam dentro do edifício de um único hospital, por exemplo, como se vê facilmente no Brasil. Ou até milhares de espaços religiosos que somados são estabelecimentos menores do que a área construída de um único campus ou cidade universitária de algumas dessas grandes instituições de ensino superior do Brasil, como USP, UFRJ, Unicamp, UFPE ou UFAM.

Mais estabelecimentos religiosos do que apontados pelo Censo

Certamente há mais estabelecimentos religiosos no país do que aqueles recenseados pelo IBGE. Pesquisas qualitativas mostram que há muitas igrejas e terreiros, para ficar nesses dois exemplos, que utilizam casas particulares, lojas, salão de hotéis etc. para atividades religiosas, sem falar que muitos desses grupos sequer possuem registro legal. Ou seja, seguramente têm mais estabelecimentos religiosos no Brasil, sem qualquer identificação com letreiro na porta ou a caracterização de um espaço religioso. Uma metodologia própria para buscar esses dados certamente resultaria no aumento do número de grupos e estabelecimentos religiosos no país.

E os espaços religiosos dentro de estabelecimentos de saúde e de educação? Ao quantificar comparativamente o número de estabelecimentos de saúde e educação em relação a espaços religiosos, importante perguntar se foram considerados os muitos locais e estabelecimentos religiosos dentro das áreas de escolas/universidades, como capelas e outros templos, tanto em equipamentos públicos quanto privados, e também nos espaços de saúde, como hospitais.

Como é sabido, são muitos os templos existentes dentro desses diferentes equipamentos em todo o Brasil. Se não foram computados os espaços religiosos nestes estabelecimentos cuja finalidade primordial são serviços de educação e de saúde, certamente será ainda maior o contingente de estabelecimentos religiosos.

Outros dados desse conjunto de informações do Censo foram classificados como “domicílios coletivos” (como presídios, asilos, hotéis, pensões), que somam 104,5 mil e “estabelecimentos de outras finalidades” (como prédios públicos, lojas, serviços), que chegam a 11,7 milhões. Como se sabe, em muitos espaços de privação de liberdade (prisões e instituições socioeducativas) existem estabelecimentos religiosos e alguns com pelo menos duas edificações: um templo católico e um evangélico, como mostram pesquisas do ISER. É comum no país, em suas diversas regiões, encontrar espaços católicos ou ecumênicos em aeroportos, rodoviárias, shopping centers, instituições militares, condomínios, entre outros.

Educação e saúde versus religião?

Ao comparar moralmente estabelecimentos de educação/saúde com espaços religiosos pode se chegar a uma falsa interpretação de que pessoas são enganadas pela religião, quando deveriam ter acesso à educação, inclusive para superar suas “crenças religiosas”, por exemplo. A equação é, além de falsa, preconceituosa e elitista. Pessoas precisam e devem ter assegurados seus direitos à serviços de educação e de saúde – de qualidade. Mas isso não substitui a religião. Esta cumpre uma função social fundamental na sociedade, seja pela sociabilidade, pertencimento, integração ou segurança ontológica, entre outras. Principalmente num mundo cada vez mais isolado, individualista e violento, como vemos especialmente em tantos territórios da realidade brasileira.

As pessoas buscam um estabelecimento religioso por diferentes razões, sobretudo num mundo de múltiplas inseguranças e procuram caminhos para superar a anomia e outros problemas que afetam suas existências. Nesse sentido, para lembrar o velho estudioso francês Durkheim, toda religião é verdadeira – e essa não é uma afirmação teológica, mas sociológica – na medida que atende as demandas das pessoas.

Para finalizar, mas seguir na conversa

É preciso revisitar no debate público a ideia já fartamente demonstrada ao longo do tempo por vários saberes científicos em estudos seminais que a religião é uma chave de entendimento relevante de nossa sociedade e é um atravessamento fundamental na vida brasileira. Portanto, é preciso ver com acuidade, para entender mais, inclusive no sentido de construir em diálogo com elas uma sociedade com mais bem-estar, direitos, democracia, laicidade – nessa terra de santa cruz e de tantas outras crenças, espiritualidades, assim como de não crenças e de gente sem religião. Enfim, o Brasil não é para principiantes, por isso, ainda mais instigante para todos nós.

Clemir Fernandes é sociólogo e diretor adjunto do ISER.