Menos católicos, mais tradição? Catolicismo e tradicionalismo no estado do Rio de Janeiro

Créditos da Imagem: Reprodução Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro #ArqRio

Atualizado em 16 jun 2025 às 10h09

Renan Baptistin Dantas

Por Renan Baptistin Dantas

  • 13 jun 2025
  • 7 min de leitura
Menos católicos, mais tradição? Catolicismo e tradicionalismo no estado do Rio de Janeiro
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Este texto nasce da observação de um aparente contraste no campo religioso fluminense. Enquanto o Rio de Janeiro figura como o segundo estado com menor proporção de católicos no Brasil, segundo os dados recém-divulgados do Censo Demográfico de 2022, também concentra alguns dos mais expressivos polos do catolicismo tradicionalista brasileiro — grupos que resistem às reformas do Concílio Vaticano II e às “modernizações” da Igreja Católica Romana.

Alguns cientistas da religião, jornalistas e influenciadores digitais vêm apontando para um possível “renascimento católico”, identificado não apenas em práticas litúrgicas mais rigorosas, mas também na rearticulação de um ethos religioso que aposta no uso intensivo das mídias digitais e do marketing religioso de guerra cultural. É nesse contexto que se observa o crescente interesse pelas missas tridentinas, celebradas em latim, nos moldes pré-Vaticano II.

Se, como afirma o antropólogo Marcelo Camurça, o catolicismo no Brasil possui uma “anterioridade histórica” sustentada por “estruturas de longa duração”, o Rio de Janeiro parece ser também marcado por uma anterioridade histórica do catolicismo tradicionalista. Uma marca expressiva que não é recente.

No início do século XX, o Rio de Janeiro foi o cenário da atuação de um dos mais influentes intelectuais católicos do Brasil: Jackson de Figueiredo. Nascido em Sergipe e convertido ao catolicismo em 1918, Jackson fundou, poucos anos depois, a revista A Ordem (1921) e o Centro Dom Vital (1922), ambos com sede no Rio. Ambas as iniciativas foram decisivas para a articulação do pensamento católico no Brasil republicano, com forte ênfase na apologética, no combate ao liberalismo e na defesa de uma Igreja militante e doutrinariamente firme. Jackson representou o inicio de uma tradição leiga, combativa e intelectualmente engajada, que influenciaria gerações posteriores — inclusive alguns dos grupos tradicionalistas contemporâneos.

Esse legado reverbera, por exemplo, na trajetória de Dom Antônio de Castro Mayer e da Diocese de Campos, considerada um marco do tradicionalismo católico brasileiro e mundial, como mostra o trabalho do historiador norte-americano Benjamin Cowan. Em aliança com Dom Marcel Lefebvre, fundador da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), Dom Mayer resistiu às reformas conciliares e liderou um cisma que manteve a missa tridentina mesmo após o Vaticano II. Seu grupo persistiu mesmo após sua morte e em 2002 tornou-se a Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney (AASJV), com sede no Norte Fluminense, reconhecida pelo Vaticano como exceção litúrgica institucional.

Além disso, o Rio abriga há quase uma década o Fórum Nacional da Liga Cristo Rei, maior convenção dos tradicionalistas brasileiros, formada por cerca de setenta pequenos núcleos espalhados pelo Brasil. E, liderado pelo Centro Dom Bosco (CDB), que pode ser considerado o maior think tank do catolicismo tradicionalista em atuação no Brasil. O grupo atua na produção de conteúdo online, publicações editoriais, cursos e mobilizações, articulando influências do olavismo, da nova direita católica e do monarquismo. 

O CDB  trabalha declaradamente por meio da lógica da chamada guerra cultural, tendo em seu histórico realizado atos como tentado impedir que uma missa afro fosse realizada durante o feriado de Consciência Negra, processado o grupo de humor Porta dos Fundos por representar Jesus como homossexual e convidado  o então presidente Bolsonaro para rezarem juntos o terço no feriado de Nossa Senhora Aparecida na cidade de Aparecida

Em Niterói, encontra-se o grupo A Permanência, fundado por Gustavo Corção e atualmente liderado por Dom Lourenço Fleischmann (OSB), referência intelectual e litúrgica para diversas comunidades ligadas à vertente tradicionalista.

A presença da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) no estado também é expressiva. Fundada por Lefebvre, a FSSPX mantém cinco capelas em território fluminense, ficando atrás apenas do estado de São Paulo, com seis. Além disso, paróquias e capelas independentes celebram regularmente a missa tridentina em cidades como Rio, Campos, Bom Jesus do Itabapoana, Varre-Sai e Niterói

A paisagem religiosa e simbólica do Rio de Janeiro também é marcada pelo peso do Cristo Redentor, monumento cuja construção foi fortemente apoiada pelo Cardeal Sebastião Leme, arcebispo da cidade durante a Primeira República e o Estado Novo. Com perfil ideológico combativo, Dom Leme defendia que o Estado brasileiro deveria se submeter aos princípios da fé católica, e que cabia à Igreja liderar a reconstrução moral da nação. Hoje sua figura é frequentemente resgatada por coletivos tradicionalistas. Esses grupos, ao atuarem no ambiente digital e no espaço público, buscam influenciar o debate moral e político e têm ajudado a eleger vereadores em cidades como o Rio de Janeiro e Niterói, tendo uma incidência significativa no Partido Liberal (PL).

Segundo o Censo, o Brasil tem hoje 120,7 milhões de católicos, o que representa 56,8% da população. No Rio de Janeiro, esse número cai para 38,9%. Em 2010, o percentual era superior a 45%, o que indica uma queda contínua e acentuada. Ao mesmo tempo, o estado apresenta a maior proporção de espíritas do país, com 3,5% da população, e um crescimento do número de pessoas sem religião. O percentual de evangélicos também aumentou: eram 29% em 2010 e chegaram a 32% em 2022, o equivalente a 5,5 milhões de pessoas. Em termos municipais, a capital fluminense apresenta um perfil ainda mais complexo: 43,6% de católicos, 25,4% de evangélicos, 5,1% de espíritas, além de 3,5% ligados a religiões afro-brasileiras e 16,1% sem religião. O mapa religioso estadual revela uma transição acelerada: em 2010, 73 municípios do RJ tinham maioria católica; em 2022, esse número caiu para 52. Hoje, 40 cidades do estado já têm maioria evangélica.

Essa diversidade — composta por católicos declarados, evangélicos de diferentes vertentes, espíritas, umbandistas e uma crescente parcela sem religião — contribui para o enfraquecimento do catolicismo enquanto referência comum, e intensifica a busca, por parte dos tradicionalistas, de uma identidade religiosa militante, especial e distinta.

A perda de fiéis, tanto para o campo evangélico quanto para o sem-religião, indica que o catolicismo já não ocupa o lugar de preferência cultural no Brasil e o campo religioso é cada vez mais plural. Nesse cenário, os grupos tradicionalistas atuam como forças de reação, promovendo uma revalorização da ortodoxia e do rito em latim como forma de resistência. Não obstante, adotando posturas abertamente combativas em relação aos evangélicos, criticados por sua “fragilidade doutrinal”, “emocionalismo” e  falta de intelectualismo teológico. E também contra grupos internos da Igreja Católica, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que são vistos como iniciativas comunistas, infiltradas na Igreja pela Teologia da Libertação.

Esta aparente tensão poderia ser compreendida como um indício de um fenômeno sociológico mais amplo e clássico: a secularização objetiva — entendida não como a morte da religião na sociedade, mas como a perda do monopólio católico no espaço público, o crescimento da pluralidade e o aumento do trânsito religioso — talvez configure um terreno propício para o surgimento de reações identitárias de cunho tradicionalista. Nesse cenário hipotético, a tradição poderia não apenas ser resgatada como herança, mas também forjada como projeto de hegemonia cultural e política, eventualmente associada a discursos de natureza autoritária e contrários a princípios democráticos liberais.

O caso do Rio de Janeiro — menos católico em proporção numérica, mas um dos mais católicos em militância conservadora — é uma retrato típico das ambivalências do universo religioso do Brasil contemporâneo.

Como citar

DANTAS, Renan Baptistin. "Menos católicos, mais tradição? Catolicismo e tradicionalismo no estado do Rio de Janeiro". Disponível em: . Acesso em: .

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