O que é laicidade? Quais as origens do termo? Quais os desafios de garantir a laicidade em sociedades com e sem religião hegemônica? Qual o papel do Estado na garantia da laicidade?
A palavra laicidade e os sentidos que ela carrega são o resultado de uma história muito longa. De modo geral, utilizamos “laicidade” e “laico” para descrever um proceder político ou administrativo que separa o que cabe ao Estado daquilo que seria da ordem da religião. Se pensarmos de forma abstrata, essa parece ser uma definição clara e simples. No entanto, as complicações acontecem quando a ideia de laicidade encontra outras formas de organizar o mundo que nasceram antes – mas também em paralelo e/ou em oposição às – das ideias de Estado e de Religião como as entendemos hoje.
Em primeiro lugar, é importante destacar que o desenvolvimento da ideia de Laicidade como a conhecemos é recente e nasceu no contexto específico da Europa Moderna. A Revolução Francesa, evento ocorrido no século XIX, foi, talvez, o momento mais emblemático de sua aplicação. Junto com as cabeças dos reis que se criavam investidos de poder divino, muitos revolucionários defendiam que se cortassem todas as conexões entre o que cabia ao Estado e o que cabia à Igreja. Esse movimento foi importante para os destinos de outras partes do mundo porque, depois de 1879, a França passou a defender a expansão dos ideais políticos da Revolução por todo o mundo, inclusive, por meio de muitas guerras e intervenções em outros países europeus e nos territórios que estes mantinham dominados como colônias.
Por isso, defender a separação entre Estado e Religião era também definir o que esses termos significavam. Naquele contexto, significava concretamente separar os poderes que cabiam à Igreja Católica dos poderes do Estado. É por isso que quando se pensam os termos clássicos da laicidade, o que se descreve como “religião” se parece muito com o modelo do Cristianismo Católico. É por isso também que, quando se propõe a aplicação da laicidade a contextos em que outras tradições religiosas são hegemônicas (como o islã, por exemplo), é necessário um esforço para definir a fronteira entre religioso e político. As mesquitas, por exemplo, cumprem papéis sociais de apoio e de articulação política em seus territórios, papéis que, no contexto de formação do Estado Moderno Europeu, foram sendo delegados ao Estado. Essas diferentes maneiras de classificar o que é ou não religioso também podem ocorrer por outra importante característica desse processo histórico.
O mesmo contexto que gerou esse Estado Moderno também tinha no centro de seus dramas a construção de uma separação entre público e privado. Antes disso, e em outras localidades longe da Europa Moderna, essa não era uma questão. Foram as mudanças ocorridas com o início do capitalismo e da vida urbana que levaram as pessoas a formular novos significados para relações que eram cada vez mais anônimas, sem laços diretos, pessoais. A ideia de público adquire força em combinação com a ideia de universalidade e passa a designar, entre outras coisas, aquilo que é de interesse comum em oposição ao privado, que ficaria restrito à experiência individual.
Entretanto, esse processo é melhor compreendido se nos lembrarmos que havia, na idade moderna, a ideia de que através da razão e do método científico era possível chegar a resultados impessoais e universais para inúmeras questões. Se o público e o Estado eram noções com grande afinidade com o “racional”, “impessoal” e “universal”, no campo oposto foram elencados o privado, o religioso, o subjetivo e o pessoal. Esses projetos racionalistas nunca foram unânimes, e, mesmo no interior da Europa Ocidental, encontrou oposições de muitos tipos. O Romantismo é uma das mais conhecidas.
A conclusão desse caldo de ideias era a de que o Estado, como administrador da vida pública e de todos, deveria orientar-se por valores universais, racionais e impessoais. Tudo o que dependesse de uma experiência pessoal ou de afinidade subjetiva deveria ser, por outro lado, alocado na vida privada. O direito a uma vida privada, porém, seria universal e caberia ao Estado garantir esse direito. Como uma identidade, entre outras, o espaço para a manifestação pública do pertencimento religioso passou a ser reivindicado como um caminho para a superação de preconceitos e o acesso a direitos. Com o desenvolvimento de sociedades com pluralidade de tradições religiosas, portanto, a laicidade passou a ser não apenas uma separação entre Estado e religião e passou a se definir também como um pressuposto para que as diferentes tradições possam encontrar caminhos de coexistência.
Saiba mais
Observatório da Lacidade do Estado
Debate – Centro de Artes da UFF
Textos acadêmicos sobre o tema:
ASAD, Talal. Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity Stanford: Stanford University Press. 2003.
CONNOLLY, William. 1999. Why I am not a secularist Mineapolis: University of Minnesota Press.
CUNHA, Luiz Antônio. Educação e Religiões: a descolonização religiosa da Escola Pública. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
DULLO, Eduardo. Após a (antropologia/sociologia da) religião, o secularismo?. Mana 18 (2) • Ago 2012
TAYLOR, Charles. Uma era secular. Trad. de Nélio Schneider e Luiza Araújo. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2010.
TERAOKA, Thiago Massao Cortizo. A Liberdade Religiosa no Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo, 2010. (Tese de doutorado em Direito. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo)