Línguas "estranhas" espirituais

Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 10 nov 2025

Marcelo da Silva Carneiro

Por Marcelo da Silva Carneiro

  • 13 nov 2025
  • 8 min de leitura
Línguas "estranhas" espirituais
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Certos fenômenos nas religiões escapam de uma explicação científica objetiva, entrando no campo da subjetividade, das probabilidades e das associações empíricas. É o caso das línguas “estranhas” que são observadas em cultos pentecostais, ou da capacidade de entender outros idiomas ou expressá-los em sessões espíritas kardecistas. Mesmo sendo em religiões diferentes, com suas peculiaridades, tais fenômenos acabam passando pelos mesmos conceitos linguísticos e psicossociais, denominados glossolalia, xenolalia e xenoglossia. São termos com origem grega, mas que expressam o que ocorre nessas situações. 

Tais fenômenos estão relacionados a experiências de êxtase, que podem, além de acionar ações de vocalização, permitir um estado de “incorporação” ou “possessão” de entidades espirituais. O êxtase espiritual normalmente é provocado por uma intensa experiência espiritual, e é notificado em todas as religiões do mundo, em todos os lugares. 

Grupos cristãos e espíritas kardecistas, bem como de religiões de matriz africana e sincréticas vivenciam esses fenômenos de glossolalia, xenolalia e xenoglossia, sendo um processo comum nas reuniões que tais grupos realizam.

  1. Qual a diferença entre glossolalia, xenolalia e xenoglossia?

A glossolalia se refere ao falar em línguas que a própria pessoa não conhece, geralmente de forma confusa, sem lógica ou estrutura clara. Isso acontece principalmente em ambientes religiosos, como nos cultos pentecostais e carismáticos, e costuma ser interpretado como um sinal de experiência espiritual intensa ou êxtase religioso. Já a xenolalia e a xenoglossia indicam experiências em que a pessoa é capaz de falar (xenolalia) ou compreender (xenoglossia) outro idioma sem que a pessoa tenha aprendido tal idioma. Essa experiência é associada a fenômenos parapsicológicos, e é mais comum em círculos do espiritismo kardecista, e podem envolver escrita, fala ou audição. Nesse caso, podem ser entendidos como resultado de um êxtase espiritual, mediunidade envolvendo espíritos desencarnados ou até como acesso a encarnações anteriores da pessoa.

Sobre glossolalia, veja o verbete em inglês Speaking in tongues (glossolalia) e, em português, o artigo Glossolalia, iniciação e alteridade no pentecostalismo.

Sobre Xenolalia no kardecismo, veja Xenoglossia (mediunidade poliglota).

  1. Como a ciência explica tais fenômenos?

Em geral, a ciência é cética a respeito desse assunto, seja pela falta de evidências comprobatórias, seja porque podem ser comportamentos aprendidos no ambiente, como no caso da glossolalia. Em função disso, não há uma explicação suficientemente segura sobre o significado desses fenômenos.

Algumas pesquisas na área de neurociência e psicologia mostram que quem pratica a glossolalia não costuma apresentar distúrbios psiquiátricos. Na verdade, muitos têm uma capacidade de mentalização bem desenvolvida, o que os diferencia bastante de pacientes com esquizofrenia. Estudos com neuroimagem também apontam para uma redução na atividade de áreas do cérebro ligadas ao controle da linguagem durante esses episódios, o que pode indicar uma experiência de êxtase ou de liberação mental.

Uma abordagem recente, que une teologia e neurociência, entende que está relacionado ao sistema límbico, em especial as partes do hipocampo, o hipotálamo e a amígdala, que podem estar associados aos fenômenos linguísticos.

Para a Pesquisa em Neurociência, veja o artigo em inglês, Attribution of Mental States in Glossolalia: A Direct Comparison With Schizophrenia [Atribuição dos estados mentais na Glossolalia: uma comparação direta com a esquizofrenia].

Em português, veja o trabalho de Tiago Nascimento dos Santos, Psicolinguística e pentecostalismo: uma revisão sistemática sobre a glossolalia no escopo das ciências cognitivas.

  1. Podemos afirmar que os fenômenos espíritas são equivalentes aos fenômenos das igrejas pentecostais?

Por serem de natureza diferente, é difícil afirmar equivalência entre a experiência pentecostal e espírita kardecista. Ainda assim, em todos os casos, a pessoa está sob influência de forças externas a ela, segundo a compreensão desses grupos. No caso da glossolalia, seria influência do Espírito Santo, sendo considerado um dom espiritual, baseado em textos como 1 Coríntios capítulo 12 e 14. Já no caso dos grupos espíritas, o que está em evidência é a mediunidade da pessoa, que se torna capaz de comunicação com espíritos desencarnados, e até mesmo acessar outras encarnações.

Curioso, neste caso, que alguns grupos pentecostais consideram a experiência espírita como falsa, uma tendência típica de grupos que estão muito próximos em termos de práticas, porém com crenças e conceitos diferentes. Pode ocorrer também com grupos com crenças próximas, mas que questionam a autoridade um do outro. 

Não localizamos trabalhos publicados que façam essa comparação direta, mas sobre a semelhança entre o espiritismo brasileiro e os evangélicos, veja o artigo As duas faces evangélicas do espiritismo brasileiro.

  1. Qual o papel do êxtase espiritual para os fenômenos, e como explicá-lo?

Os fenômenos linguísticos de glossolalia, xenolalia e xenoglossia estão associados à experiência do êxtase espiritual, que é um estado presente em quase todas as religiões mundiais. Entre os sistemas místicos ocidentais, principalmente entre os grupos pentecostais e espíritas kardecistas, essa experiência promove os fenômenos que estamos comentando. A principal função é de gerar um estado de união mística entre a pessoa que está em êxtase e o mundo espiritual, independentemente da entidade ou força que esteja operando. Essa união permite à pessoa acessar visões, falas e vivências que normalmente não teria.

A neuroteologia, baseada na neurociência, afirma que o êxtase espiritual é explicado pela ação do sistema límbico do cérebro, onde, para alguns cientistas, reside a alma humana, junto com as emoções. Essa atividade cerebral seria responsável pelo estado alterado da mente, permitindo experiências sensoriais diversas, inclusive a capacidade de falar outras línguas.

Para aprofundar sobre o tema, veja o artigo Limbic system hyperactivity and the phenomena of spiritual awakenings. Confronting the supernatural through the neural networks [Hiperatividade do Sistema Límbico e os Fenômenos de Despertares Espirituais: Confrontando o Sobrenatural por Meio das Redes Neurais].

Em português existe o trabalho de Sebastiana Maria Silva Nogueira, Viagem aos céus e mistérios inefáveis. A religião de Paulo de Tarso

  1. O fenômeno da glossolalia no pentecostalismo tem equivalência na Bíblia?

Em geral, o fenômeno de glossolalia pentecostal é associado aos dons espirituais de que o apóstolo Paulo fala em 1 Coríntios 12 e 14. Na verdade o termo é justamente tirado desses textos, pois língua, em grego, é glossa. Para os grupos pentecostais, a experiência que vivenciam, desde fim do séc. 19, nada mais é que a recuperação em tempos atuais da tradição pneumática da Bíblia. Seria como se fosse um reavivamento do Espírito nas comunidades hoje. 

Em alguns grupos, inclusive, a glossolalia é praticamente obrigatória, posto que é considerada a confirmação de que a pessoa é batizada no ou com o Espírito Santo. Já no espiritismo kardecista, a mediunidade não é algo unânime e uniforme, logo, não se espera que muitas pessoas tenham essa virtude.

Sobre o assunto, leia o verbete Glossolalia, do Círculo de Cultura Bíblica.

  1. É possível que esses fenômenos sejam mimetizados, parecendo autênticos?

Em alguns grupos, a exigência de falar em outras línguas é praticamente condição para que a pessoa seja aceita como cheia do Espírito Santo. Logo, é de se esperar que algumas pessoas mimetizem a experiência, pela observação do ambiente. Hoje em dia tem sido comum serem compartilhados vídeos de pessoas que demonstram glossolalia, e quando comparados percebe-se uma linguagem comum entre elas. Isso pode indicar uma influência social sobre a experiência individual.

No caso dos grupos espíritas kardecistas, pode acontecer, mas de forma mais esporádica, pois não há uma exigência no grupo de que as pessoas vivam esse fenômeno. Isso tende a fazer com que, quando acontece, as pessoas entendam como algo autêntico. 

Sobre o assunto, veja o artigo de José Carlos do Nascimento, Línguas estranhas no meio pentecostal contemporâneo brasileiro: uma realidade ou ilusão?.

Como citar

CARNEIRO, Marcelo da Silva. "Línguas "estranhas" espirituais". Religião e Poder, 13 nov. 2025. Disponível em: . Acesso em: .

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