Exu, orixá de origem iorubá que está relacionado aos fundamentos da mobilidade, da transformação, das imprevisibilidades, das trocas, linguagens, comunicações e a toda forma de ato criativo, vive a vadiar mundo afora despedaçando regimes de verdade para, com os pedaços que deles sobram, narrar nova história. A boca de Exu, que tudo come, existe para reinventar um mundo novo. 

Conhecido como “O Senhor da Terceira Cabaça” ou como “O Senhor da Encruzilhada de Três Caminhos”, Exu é a divindade do panteão iorubano que mais se parece com o ser humano. Das muitas histórias contadas em terreiros, reza uma que, segundo o estudioso da cultura afro-brasileira, teatrólogo e sambista Nei Lopes, certa feita Exu recebeu de Ifá – grande divindade, considerada com Odudua e Obatalá um dos orixás da Criação – a opção de escolher entre duas cabaças. 

Na primeira, havia um pó mágico com elementos capazes de positivar a vida. Já na segunda o pó existente continha em si elementos dotados de poder para negativá-la. Diante do impasse, a surpresa: Exu decidiu-se por uma terceira cabaça, esta, porém, vazia. Com ela em seu poder, o orixá despejou dentro o conteúdo das outras duas e a chacoalhou, misturando tudo, para, em seguida, soprar seu conteúdo sobre o universo. Já não era mais possível identificar o que estivera contido na primeira ou na segunda cabaça, pois, a partir de então, formara-se um terceiro elemento. 

Exu, portanto, é considerado orixá que concede ao ser humano a condição de existência e, trazido de um lugar para outro, praticado e experiencializado na diáspora, golpeia estruturas coloniais. Ele é o caminho ressignificado em encruzilhadas, estas entendidas como terreno fértil de possibilidades. 

Se o colonialismo ergueu uma cruz como proteção, comunidades como a de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sobrevivem nas frestas deixadas, ocupando ruas, recriando esquinas. O enredo da Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, no carnaval carioca, é mais do que um chute na intolerância.

Atores como o deputado federal Otoni de Paula (MDB-RJ) – que considerou o desfile da escola de Caxias um “culto e não Cultura”. De Paula é pastor da Igreja Assembléia de Deus Ministério Missão Vida, do Rio de Janeiro, e ao longo dos últimos anos esteve envolvido em uma série de controvérsias públicas acerca de questões culturais. Como um dos alvos do inquérito das Fake News, adotou o slogan: “Otoni de Paula, deputado perseguido pela Suprema Corte”. 

Sua imagem pública está associada ao papel de “fiscal da moralidade” dos artistas. Em 2017 fustigou nas mídias sociais a cantora Anitta, a quem chamou de “garota de programa”. Dois anos depois, levantou bandeira contra a produtora Porta dos Fundos, após o lançamento de um filme de comédia em que Jesus Cristo é retratado como homossexual. Sobrinho dos músicos Otoniel e Oziel, reconhecidos no meio gospel, De Paula parece orientar-se pelo incômodo com o dissenso e buscar ativamente o veto a determinadas práticas artísticas. 

No início de abril, o deputado usou o plenário da Câmara para criticar o patrocínio da Prefeitura do Rio de Janeiro às escolas de samba. O alvo foi a Grande Rio, e as imagens do teatro ensaiado da Comissão de Frente foram exploradas em suas mídias sociais para “provar” que os membros da escola estavam “incorporados”. 

Soluções adiadas

A vitória da Grande Rio trouxe consigo um grande backlash de intolerância e racismo religioso, observado nas mídias sociais nos dias subsequentes. Mas, erguendo-se sobre tudo isso, os Exus presentes no samba-enredo e nas alegorias ressaltavam outras possibilidades de futuro, como a afirmação de um Rio de Janeiro visto e vivido como um terreiro de macumba, cujo vocábulo, segundo Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, deriva da palavra kumba, proveniente do idioma quicongo, significando feiticeiro. Segundo os autores, como no quicongo o plural é formado pela introdução do prefixo “ma” nas palavras a serem flexionadas, “macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encontro” (do livro Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas, p. 6). 

Ora, nas encruzilhadas se abrem caminhos, e o Rio de Janeiro, assim como todo o Brasil, precisa “fustigar razões intransigentes” e buscar “a radicalidade do encontro” se quiser abrir caminhos para dias melhores. É possível pensar o desfile das escolas de samba, tal qual destaca Renata Menezes (2020), a partir das relações existentes entre religião e cultura. Nesta interseção, categorizações, hierarquias e possibilidades outras de interpretação disputam espaço e, consequentemente, fazem-se públicas. E isso é também acreditar que, a partir desses eventos, “o novo pode irromper”. 

Vale lembrar que, como disse o historiador potiguar Câmara Cascudo, “o Brasil não tem problemas, só soluções adiadas”. Embora tenha sido pensada e vocalizada em outro contexto, essa frase é perfeitamente cabível para reavivar ânimos no momento em que vivemos. O enredo da Grande Rio, assim como outros cinco sambas afrocentrados apresentados no sambódromo em 2022, (Salgueiro, Beija-Flor, Paraíso do Tuiuti, Portela e Mocidade Independente de Padre Miguel), nos convida a refletir sobre quais soluções adiadas estão diante de nós.

A primeira delas, e talvez mais urgente: renunciar ao racismo religioso e à intolerância que constrangem adeptos de religiões de matriz afro-brasileira, mas não apenas estes. O racismo e a intolerância também representam violências coloniais que miram as identidades populares, as tradições culturais, os ritos não-hegemônicos e criam estigmas que pesam também sobre cristãos evangélicos e católicos. 

Recentemente, membros de uma comunidade evangélica oraram e causaram tumulto em frente à tradicional Casa Fanti-Ashanti, terreiro de tambor de mina e candomblé com mais de meio século de história em São Luís (MA). As imagens são dolorosas e circularam pela internet. É possível assentir com a ideia de que o caso em questão ilustra um dos problemas históricos do Brasil, que têm se acirrado nas últimas décadas. 

Ao mergulharmos na “Exu parade” da Grande Rio, entretanto, e observarmos o renascer do carnaval depois de dois anos de silêncio na Avenida, cientes de que não se pode positivar ou negativar totalmente a experiência humana, preferimos apostar na radicalidade do encontro e apontar para a coleção de soluções adiadas à nossa disposição. Elencamos: a rica mitologia iorubana, o rompimento da dualidade homem-natureza, presente na cosmovisão dos povos originários, as potentes estratégias que forjaram belos ritos e manifestações culturais em meio à escravidão e ao desamparo.

Logo, como afirma o historiador e antropólogo Vinícius Natal, um dos pesquisadores que contribuíram com o desenvolvimento do enredo da escola de Caxias, levar Exu para a avenida dos desfiles “é dar uma resposta à intolerância e dizer que é preciso respeitar todas as religiões. A vitória coroa um debate sobre intolerância que a Escola está pautando na cidade, no estado e no Brasil” (Entrevista a Juliana Leite, Portal Terra). 

Sim, tal vitória demonstra que o Brasil não tem problemas. Só soluções adiadas.

Rafaela Marques é doutoranda no Programa de pós-graduação em Sociologia (PPGS/FFLCH/USP) e integra o LePar, Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião.

Carlos Monteiro é doutorando em sociologia pela Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF) e integra o LePar, Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião.

Foto: Eduardo Hollanda – Reprodução Instragram @granderio

Referências

LEITE, Juliana. Quem é o pesquisador por trás do enredo da Grande Rio. Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/quem-e-o-pesquisador-por-tras-do-enredo-da-grande-rio,12f8275fa3b76c06cd38dc90f659966a2xxzsfsp.html?utm_source%3DNEWSSTAND%26utm_medium%3Drss Acesso em 1/5/2022

LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, São Paulo: Selo Negro, 2011.

SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

MENEZES, Renata de Castro. “Caos, crise e a etnografia das escolas de samba do Rio de Janeiro”. In: Revista Hawò. 2020, v.1, p. 2-38 

Saiba mais

“Carnaval afrocentrado”, texto de opinião assinado pela jornalista Flávia Oliveira, publicado no Jornal O Globo em 22 de abril de 2022. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/carnaval-afrocentrado.html

Nota:

“Exu parade” é composição do cantor pernambucano Otto, incluída no álbum The Moon 1111.