Há muitos caminhos pelos quais poderíamos falar das mudanças que dizem respeito aos evangélicos no Brasil do final do século 20. Crescimento numérico de fiéis, a entrada de novas teologias, o desenvolvimento de uma indústria cultural gospel, formação de redes de atuação em novos territórios dialogando com práticas de poder locais, mudanças nos modos de organização interna, participação na política partidária, novas lideranças, são algumas das muitas marcas dessas décadas. Aqui achamos relevante chamar atenção para o fato de que o conjunto dessas mudanças resultou em um novo lugar para os evangélicos no que se imagina como nação brasileira.
Os evangélicos brasileiros realizaram muitas ações conjuntas em associações interdenominacionais ao longo de todo o século 20, mas foi o Congresso Constituinte (1986-1988) que consolidou uma bancada que se apresentava enquanto evangélica propondo uma pauta comum e específica desse setor. Além de unir diferentes tradições evangélicas, essa iniciativa também reivindicava reconhecimento de um papel no que se imagina como nação.
A decomposição da ditadura civil-militar brasileira, que se propunha a ser “lenta, gradual e segura”, abriu espaço para a disputa em torno de novas concepções de democracia e de Brasil. Naquele momento, crescia no mundo a compreensão de que a diversidade era um elemento chave da democracia. Diferente de outras experiências, em que foram prioritários outros valores de unidade nacional, as preocupações que orientaram as discussões sobre a Carta de 1988 tiveram como pano de fundo a preocupação com a conciliação da busca por igualdade entre os cidadãos brasileiros com o reconhecimento dado às pautas específicas dos diferentes grupos e o estabelecimento de políticas direcionadas a eles.
A principal demanda evangélica naquele momento dizia respeito à liberdade religiosa e o texto final da Constituição, que consolidava o reconhecimento de um Brasil plurireligioso em contraste com sua história de “nação católica” foi lido por esses constituintes evangélicos como uma vitória. A imaginação de uma nação também evangélica ganhava espaço. Passou a circular a ideia de que além de pautas e agendas políticas práticas referidas a esse setor haveria um modo evangélico de atuar no mundo e portanto, também, de fazer política.
Isso fica melhor entendido se olhamos para as transformações internas do campo evangélico. Houve um crescimento numérico expressivo de fiéis a partir da década de 1980 em comparação com o início do século 20, marcado pelo avanço dos neopentecostais. Essas denominações trouxeram consigo teologias e práticas que diferiam dos modos de organização tradicionalmente utilizados pelas igrejas estabelecidas até então no país. O movimento pentecostal já havia trazido consigo, ao longo do século 20, maior flexibilidade na expansão das igrejas, com formas de reconhecimento da autoridade do pastor, sua vocação e a direção de uma igreja que não passavam necessariamente pela formação acadêmica em seminários.
A onda que ficou conhecida como neopentecostal, porém, apresentava uma novidade ainda maior, com experiências de novos modelos de vínculo. Observou-se desde métodos que propunham a reunião em pequenos grupos, como o “Visão G12” até igrejas com centralização doutrinária de lideranças estrita mas que dão espaço a uma assistência mais flutuante e que também se relaciona através de recursos midiáticos, como programas de TV, como a Igreja Universal do Reino de Deus. Disseminaram-se também novas dinâmicas de culto, incluindo recursos midiáticos de grande escala, como a televisão e também a ressignificação de práticas e elementos estéticos de outras tradições religiosas, em especial as de matriz afro-brasileira.
Além da Teologia da Prosperidade, pela qual essas tradições ficaram muito conhecidas, também se disseminou com seu crescimento a chamada Teologia do Domínio, que apresentava releitura de uma ideia pentecostal muito importante, a Batalha Espiritual. Segundo essa concepção, o mundo seria marcado por uma disputa entre Deus e o Diabo, uma batalha que estaria ocorrendo no plano espiritual desde o início dos tempos e só se concluiria com o Apocalipse. O que ocorre no mundo terreno, sejam as tragédias pessoais, sejam os problemas coletivos, seria parte dessa batalha, a ser travada pelos cristãos em seu cotidiano.
Essa batalha não seria apenas metafórica mas incluiria o enfrentamento de demônios em indivíduos, posições e territórios. Além dos exorcismos e práticas de conjuração tradicionais, ganhou espaço a ideia, baseada no versículo bíblico de Deuteronômio 11:24 “Todo lugar que pisar a planta do vosso pé será vosso” de que a própria ocupação dos espaços pelos cristãos seria capaz de combater o Diabo. Essa ocupação inclui os chamados “atos proféticos”, como as Marchas para Jesus, que propõem a ocupação da cidade por parte dos “exército de Cristo”,
Além disso, essa concepção considera primordial a ocupação de posições de poder como modo de combate à atuação do Diabo na Terra. Assim, os esforços dos setores identificados com essas concepções em disputar os espaços de visibilidade e poder enquanto evangélicos teve duas consequências muito importantes.
A primeira, é que, uma vez que muitos dos setores evangélicos defensores de uma separação definitiva entre a atuação enquanto religiosos e a política recusavam ideia de representar “os evangélicos” como coletividade e publicamente, o espaço de quem fala em nome dos evangélicos passou a ser cada vez mais ocupado pelos que possuíam entendimentos de que era preciso ocupar a política enquanto evangélicos. Até a década de 2010 esse setor se dividiu em múltiplas tradições políticas, algumas de direita mas não apenas. Muitas dessas lideranças compuseram a coligação que elegeu Luiz Inácio Lula da como presidente (2002), por exemplo, além das muitas faces que essas posições ganharam nas eleições locais. A ênfase na chamada “pauta dos costumes” é um fenômeno posterior.
A segunda é que, com vultuosos recursos financeiros e políticos, esses setores tornaram-se capazes de construir referenciais culturais evangélicos abrangentes que ultrapassam as fronteiras das igrejas. Não por acaso é esse o período de ascensão da música gospel e de grandes empreendimentos de mídia, com gravadoras especializadas, rádios, mega-shows e programas de televisão que iam do evangelismo ao entretenimento. A circulação desses conteúdos mesmo entre aqueles que não se identificavam necessariamente com as concepções desses setores forneceu um repertório comum na construção da imaginação do seja ser “evangélico”.
Mesmo frequentando igrejas com teologias muito diferentes, ou talvez sequer frequentando uma igreja e mantendo um vínculo apenas esporádico e pessoal com a prática religiosa, as canções de Aline Barros, os videoclipes do Grupo Voices ou a existência do programa de Silas Malafaia (para usar exemplos óbvios) eram capazes de circular através do consumo e se fazer conhecidos como parte de um universo “evangélico” até mesmo por quem não os referendava.
Assim, as décadas entre a redemocratização e o governo Lula, que foram marcadas pelo vocabulário da diversidade na forma de pensar e construir democracia, viram ascender também setores que buscaram construir referenciais comuns de uma identidade evangélica, seja pela via da ação política institucional, seja pela produção e circulação de conteúdos midiáticos em larga escala. Estavam lançados os alicerces da disputa entre as diferentes percepções do que seria o “evangélico”, quem poderia falar em seu nome e qual o seu papel na construção do Brasil e da Democracia, tão relevantes até os dias de hoje.
Raquel Sant’Ana é antropóloga e integrante do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento – LACED da UFRJ-MN.
Leituras que podem ser úteis:
BIRMAN,Patrícia. Religião e espaço público. São Paulo: Attar editorial, 2003.
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MACHADO, Maria das Dores. Política e Religião. A Participação dos Evangélicos nas Eleições. Editora FGV, 2018.
MAFRA, Clara. Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
VITAL DA CUNHA, Cristina. Oração de Traficante. Uma etnografia. Rio de Janeiro: Garamond, 2015.