Há alguns meses no Brasil a expressão “terrivelmente evangélico” tomou as mídias tradicionais e as redes sociais, produziu debates políticos e acadêmicos, revelou a organização de grupos diversos, dissensos e conexões. A aprovação de André Mendonça como o Ministro do Superior Tribunal Federal em 01 de dezembro de 2021 no Senado, com a votação mais apertada da história, foi recebida com entusiasmo por seus apoiadores. No gabinete do senador evangélico Luiz do Carmo (MDB-GO) onde se encontravam parlamentares e líderes evangélicos junto com o próprio Mendonça e família, o resultado foi comemorado com abraços, louvores, cabeças baixas em adoração e agradecimento ao Senhor pela conquista tomada não como individual, mas do próprio segmento religioso. 

A comemoração que mais chamou atenção foi a da primeira dama, Michelle Bolsonaro. Ela performou uma manifestação do Espírito Santo com “sapatinho de fogo” e ao “falar em línguas”. No primeiro caso, a força do Espírito Santo faz mexer o corpo, pular de euforia e, no segundo, o dom faz falar em línguas desconhecidas. Ambas são manifestações basilares da espiritualidade pentecostal. Está em Atos 2:4 “E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espirito Santo lhes concedida que falassem”. Como dom, não é algo que se revele para todos e nem a todo momento. É extraordinário. Michelle deu glória a Deus e abraçou emocionada André Mendonça que, assim, comemorou antes com ela do que com seus próprios familiares. A primeira dama saltitou, girou e começou a falar palavras ininteligíveis para o público em geral. 

Desde a primeira vez em que o então presidente Jair Bolsonaro pronunciou publicamente sua intenção de nomear alguém “terrivelmente evangélico” para o STF, em julho de 2019, a expectativa e os posicionamentos contrários a uma indicação “pautada em valores religiosos”  ganharam a agenda. Dois anos se passaram até que Bolsonaro decidisse pelo nome de André Mendonça, funcionário público de carreira há mais de 20 anos, para assumir o lugar de Marco Aurélio Mello no STF. Meses de dúvidas e muitas especulações transcorreram entre a indicação de seu nome e a sabatina no senado. Sua vitória, embora sendo a mais apertada da história, foi capitalizada como expressão de força do governo e também dos evangélicos. Esses tomados estrategicamente por lideranças como grupo homogêneo integralmente representado por esse novo ministro. 

A comemoração efusiva da primeira-dama no gabinete revelava, a um só tempo, essas duas dimensões da conquista: a governamental/política e a religiosa/evangélica. As reações críticas à postura da primeira dama eram de várias ordens: preconceituosas em relação à religião, críticas a manifestações religiosas em um gabinete no senado, chamando atenção para uma espécie de afronta à laicidade do Estado, a sinalização de uma farsa, da parte de Michelle, que não teria recebido o Espírito Santo, mas feito um jogo de cena. 

As reações do mainstream evangélico denunciavam uma intolerância religiosa contra os evangélicos. Desta forma, apresentavam-se como vítimas, como minoria. Houve uma tentativa clara retorsão do argumento, para usar os termos do sociólogo Antônio Flávio Pierucci no já clássico artigo “Ciladas da diferença” (1990). Essa pode ser tida como uma operação através da qual um grupo político toma o argumento de seu rival atualizando seus usos e sentidos. Nas palavras do autor: “Taguieff vai identificar o que ele denomina ‘efeito de retorsão’: um contendor se coloca no terreno discursivo e ideológico do adversário e o combate com as armas deste, as quais, pelo fato de serem usadas com sucesso contra ele, deixam de pertencer-lhe pois que agora jogam pelo adversário. A retorsão opera assim, de uma só vez, uma retomada, uma revirada e uma apropriação-despossessão de argumentos: ela tem por objetivo impedir ao adversário o uso de seus argumentos mais eficazes, pelo fato mesmo de utilizá-los contra ele (Taguieff, 1986b; também Angenot, 1982)”(Pierucci, 1990:11). 

Segundo as mais diferentes estatísticas, são os evangélicos os que mais cometem crimes classificados como intolerância religiosa no Brasil hoje. No entanto, com este episódio, tentam emplacar que são os evangélicos as vítimas de um tipo específico de intolerância religiosa a qual chamam cristofobia. Desde meados dos anos 2000 passaram a ativar esta noção como uma bandeira de luta contra o que consideravam o cerceamento de sua liberdade de expressão, dado o debate em torno da criminalização da homofobia no Brasil (PLC 122/ano). 

O avanço desse debate culminou na aprovação de um projeto de lei na Câmara Municipal de São Paulo, em 2016, estabelecendo 25 de dezembro como Dia de Combate à Cristofobia. Fernando Haddad, prefeito à época, vetou o projeto. Anos depois, ato contínuo ao pronunciamento de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU denunciando uma cristofobia no Brasil, o deputado federal evangélico Paulo Bengtson (PTB-PA), apresentou o PL 4.986/20 com o objetivo de instituir o dia 06 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Cristofobia no Brasil. 

Os jogos políticos a partir da gramática religiosa estão em pleno curso produzindo alianças, forças eleitorais através da produção de antagonismos que vão sendo cada vez mais apresentados como intransponíveis. Talvez não o sejam do ponto de vista teológico, doutrinário, mas sim corporativo e econômico, atendendo a interesses denominacionais e empresariais de alguns.  Embora nenhuma forma de intolerância e preconceito deva ser aceita, vemos uma utilização política do acontecimento. Talvez esta seja uma nova “bandeira de luta” a formar capital político para as lideranças empresariais evangélicas para as eleições de 2022. 

Christina Vital é antropóloga, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense, coordenadora do LePar e colaboradora do ISER desde 2002. 

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil