Assim como em outros países da América Latina, ao longo do século 20, grupos evangélicos emergiram e se expandiram no Brasil, colocando em xeque a dominância católica no continente. De maneira geral, a região experimentou crescimento significativo no número de convertidos e de denominações evangélicas, pentecostais em sua maioria. No entanto, a expansão evangélica no Brasil é particularmente surpreendente no âmbito político, uma vez que políticos evangélicos do país se tornaram bastante eficientes em transformar o crescimento do número de fiéis em poder político. 

Pesquisadores do mundo inteiro se engajaram na formulação de perguntas pertinentes sobre as causas e consequências do crescimento evangélico na América Latina: o continente está se tornando protestante? Quais fatores explicam a emergência e a expansão do Protestantismo na região? O Protestantismo pode ser responsável pelo desenvolvimento econômico?  Por que as pessoas aderem a denominações evangélicas? Por que a Igreja Católica vem perdendo e o Pentecostalismo ganhando a batalhas por almas? O que está por trás das diferenças entre evangélicos ao redor do mundo? O eleitorado evangélico apoia políticos evangélicos? A política religiosa pode ameaçar ou melhorar a qualidade da democracia no Brasil? À expansão do Pentecostalismo se seguiu a emergência de uma agenda política religiosamente orientada? O que explica a variação da representação política evangélica em diferentes países latino-americanos?  As preferências políticas de pessoas religiosas se diferem das de pessoas com outras ou sem filiação religiosa? O Pentecostalismo é progressista? É conservador? Esses são alguns exemplos das linhas de investigação seguidas por centenas de cientistas políticos ao longo dos anos. 

Quanto a respostas, até agora, elas seguem a seguinte direção: variáveis socioeconômicas como pobreza, (in)capacidade estatal, indicadores de desenvolvimento, urbanização e migração interna explicam as mudanças de crenças, opiniões e comportamento religiosos. Já essas mudanças culturais explicariam transformações políticas – a eleição de evangélicos e seu direcionamento ideológico à direita. De fato, as mudanças socioeconômicas geraram uma nova estrutura de oportunidade que induziram a transformação política observada. É fato, também, que a lógica causal desse argumento não exclui a possibilidade de que mudanças socioeconômicas geram transformações culturais. Entretanto, não há evidência de que as transformações sociais massivas da nossa história recente tenham alterado as predisposições, crenças e opiniões políticas que tenham resultado em divisões religiosas significativas e inquestionáveis na população brasileira de modo que elas mobilizassem tamanha mudança política ou mesmo, como pregam alguns, uma guerra cultural. 

A ascensão política evangélica

Dito isso, a quem exatamente os fiéis e líderes evangélicos se opõem? Entre quem ou quais grupos estaria ocorrendo essa guerra cultural? Religiosos e não religiosos? Segundo o Censo de 2010, o número de brasileiros que se declaram sem religião é de apenas 8% da população. Cristãos e afiliados de religiões de matrizes africanas, então? De novo, segundo o Censo, o número de filiados a religiões como Umbanda, Candomblé e Tambor de Mina se limita a 0,3%. Esses valores são irrisórios do ponto de vista do crescimento da participação evangélica na política eleitoral. Seria essa uma guerra entre cristãos: católicos vs. evangélicos? Faria sentido, uma vez que o crescimento de um tem se dado à custa da diminuição do outro. Contudo, há de se esperar que existam diferenças tais entre os dois grupos que se traduzam em demandas eleitorais que provoquem o crescimento exponencial de “candidaturas religiosas”.

Em acordo com o último relatório do ISER, “Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020” (2022), chamamos de candidaturas religiosas “aquelas nas quais o vínculo religioso é central para o candidato ou candidatura, independentemente da tendência ideológica ou do partido político”. O relatório chama atenção para o fato pouco noticiado de que as eleições municipais de 2020 registraram um alto número de candidatos católicos. A isso se seguem as perguntas: onde se encontram essas diferenças culturais tão intensas que levariam a um crescimento tão agudo do número de “candidaturas religiosas” observadas nos últimos anos? Em que as agendas católicas e evangélicas se diferenciam entre o eleitorado brasileiro? As posições ideológicas de católicos e evangélicos se diferem a respeito de que tópicos? 

Segundo dados de survey do Lapop – Americas Barometer, da Universidade Valderbuilt (2018/2019), as diferenças são mínimas, estando os dois grupos localizados a direita no que tange temas como legalização do aborto e concessão de direitos a pessoas homossexuais. Essas diferenças já mínimas diminuem quanto mais forte o vínculo de católicos e evangélicos com as suas respectivas congregações. 

Se não são uma resposta a uma guerra cultural, a que se deve então essa ascensão política evangélica? Da perspectiva do eleitorado, a um comportamento “tribal” que menos tem a ver com ideias ou valores do que com a sua filiação a um determinado grupo. Do ponto de vista das lideranças políticas religiosas, a fraqueza institucional evangélica vis-à-vis a Igreja Católica. 

A ubiquidade da influência política da Igreja Católica no Brasil e em outros países é bastante conhecida. Sua participação decisiva nos movimentos de democratização em uns e continuidade das ditaduras em outros países latino-americanos é bastante documentada. A única maneira de os líderes evangélicos influenciarem o processo decisório é se engajando em política eleitoral e se organizando, por vezes de maneiras questionáveis, para tal. Essa participação não é uma demonstração da sua força, mas da sua fraqueza frente ao império católico. 

Igrejas evangélicas cada dia maiores e mais organizadas ainda lutam por igualdade de direitos privilégios que são escritos em pedra para a Igreja Católica, como o acesso facilitado a propriedades e recursos estatais, subsídios e taxações favoráveis em várias esferas de governo, entre outros. Essa busca explica a participação das igrejas numa política eleitoral absolutamente custosa do ponto de vista religioso, como a brasileira. 

Ao mesmo tempo, ela também explica a não participação da gigante católica, como instituição, frente a “ameaça” evangélica – diferente de várias denominações evangélicas, a Igreja Católica não lança candidaturas próprias. A Igreja Católica influencia a política de maneiras muito mais sutis, por exemplo, formando há séculos as elites políticas e econômicas do país em suas tradicionais instituições de ensino. A guerra cultural parece mais institucional do que de qualquer outro tipo e o assalto ao Estado brasileiro, a despeito da competição de ideias ou valores, não deveria estar no centro dessa disputa. 

Foto: Adobe Stock Images

Karine Belarmino é cientista política, doutoranda em Ciência Política na Universidade de Minnesota (EUA).

Indicações de Leitura:

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REIS et all. “Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020”. Rio de Janeiro: ISER, 2022. Disponível em: https://religiaoepoder.org.br/artigo/iser-divulga-resultados-da-pesquisa-sobre-candidaturas-com-identidade-religiosa-nas-eleicoes-municipais-de-2020/. Acesso em: 1 jun. 2022.

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