Uma versão reduzida deste conteúdo foi publicada orginalmente no Nexo Políticas Públicas em 13 set 2022

Atualizado em: 01/11/2022 às 15h

Em 24 de junho de 2012 um jovem estudante foi assassinado em Camarçi (BA) por andar abraçado com seu irmão gêmeo. O crime seria tipificado como de motivação homofóbica. A partir desse fato, em 10 de julho do mesmo ano, o deputado federal Roberto Lucena (PV/SP), discursa em favor da não discriminação de qualquer natureza e será a primeira vez que se registra oficialmente o vocábulo “cristofobia” na Câmara dos Deputados. 

“Sou, nesta Casa, Presidente da Frente Parlamentar de Combate ao Bullying e Outras Formas de Violência (…) Sou contra a homofobia. Sou também contra a heterofobia. Sou contra a xenofobia. Sou contra a cristofobia. Sou contra a ditadura, a ditadura da maioria e a ditadura da minoria, sob quaisquer aspectos. Sou contra a ditadura da imprensa, quando esta se desvirtua, e contra a ditadura religiosa, quando esta se perde em sua razão de ser” (Roberto Lucena)

Dias antes, Lucena tinha presidido uma audiência pública da Comissão de Seguridade Social e da Família na qual seriam discutidas as normas de atuação do Conselho de Psicologia em relação as questões de orientação sexual e da homossexualidade. À época, a discussão teve fortes reações dos movimentos LGBTI+ por seu caráter de patologização da homossexualidade, sendo reverberada na mídia como a “comissão da cura gay”. 

Em 2010, o deputado Marcos Feliciano (Republicanos-SP), teria proposto um plebiscito para deliberar sobre a união homoafetiva, apostando que a sociedade rejeitaria o casamento paritário, portanto, seria retirado do Supremo Tribunal Federal. Durante o Governo de Dilma Rousseff (2010-2016), Feliciano foi nomeado para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara (7 de março de 2013), o que desencadeou uma tempestade de reações na ala progressista do governo e dos movimentos sociais, dado seu histórico homofóbico e a retórica de rejeição e perseguição à moralidade cristã. Como presidente da comissão, o deputado questionou a legitimidade do Congresso e do Judiciário sobre decisões nas questões morais referentes à sexualidade. 

Anos mais tarde, em 2019, Feliciano declarou: “hoje certamente o ambiente é mais propício para falar sobre cristofobia, do que na época que me tornei deputado. Em nove anos lutamos muito contra o preconceito contra cristãos, especialmente os evangélicos, no início éramos alguns poucos abnegados”.

 Um outro fato que marca a insistência na cristofobia dos discursos políticos no Congresso se dá quando, na Parada Gay de São Paulo (2015), a atriz transsexual Vivian Beleboni performou como Jesus Crucificado, suscitando, entre outras reações, o Projeto de Lei (PL) do deputado Rogério Rosso (PSD-DF), que solicitava a modificação do Código Penal para ampliar a punição aos crimes de vilipêndio religioso. 

Sobre a proposta Rosso afirma: “a intenção deste projeto é proteger a crença e objetos de culto (…) pois o que vem ocorrendo nos últimos anos em manifestações, principalmente LGBTs, é o que podemos chamar de cristofobia, como prática de atos obscenos e degradantes que externam preconceito contra os católicos e evangélicos”. A partir desse projeto, Christiane Tonietto (PSL-RJ), apresentou um PLque aumentasse a pena para crimes contra sentimento religiosos, pois para a parlamentar a cristofobia afeta duramente os cristãos no Brasil e no mundo pois: 

“no nosso dia a dia, nós também percebemos a perseguição (…) com todas as vênias, nós sofremos e sentimos duramente essa perseguição ao proclamar Cristo Rei, muitas vezes desta tribuna [Congresso] (…) Católicos, nós temos que ir para o combate. A honra da santa igreja Católica também tem sido duramente manchada e, muitas vezes, por aqueles que se dizem católicos, mas que mancham a imagem da igreja por defenderem ideologias [ideologia de gênero] nefastas, inclusive nesta Câmara dos Deputados.”

Na retórica parlamentar o sintagma cristofobia se intensificou e consolidou uma narrativa de perseguição e ameaça, centrada no ataque aos cristãos (católicos e evangélicos), vilipendiados por sua fé, moralidade e crenças religiosas. Essa perseguição se materializa com um conteúdo concreto de degradação moral da sociedade brasileira ao serem naturalizadas e legalizadas relações homossexuais, incorporadas as questões de gênero e orientação sexual nas diretrizes curriculares no Programa Nacional de Educação (PNE/2014-2024), e se tornarem pauta de discussão a agenda pró-direitos sexuais e sexuais. Tal perseguição cristã, na narrativa parlamentar, tem inimigos identificáveis: as comunidades LGBTs e movimento feminista. Ao mesmo tempo, a cristofobia assume contornos de crime, por isso a importância de ampliação de penas no código civil. 

Entretanto, uma perseguição religiosa pressupõe ameaça a direitos de expressão e culto religioso (liberdade religiosa) e de ataque físico e simbólico a templos, igrejas, pessoas e até morte. Porém, no Brasil é inexistente a ameaça e/ou ataque à maioria  histórica, demográfica e simbolicamente cristã, portanto, a narrativa parlamentar cristã é construída a partir de um sentimento de perseguição fictício. 

O Cristianismo é a matriz cultural brasileira que orienta o código de costumes e inspira o horizonte jurídico, impregnando a visão jurídica dos direitos fundamentais garantidos por lei na Constituição de 1988. Deduze-se, então, que a retórica cristofóbica dos representantes religiosos mais esconde uma supremacia religiosa assentada na noção de nação cristã, outrora nação católica deslocada com a perda da hegemonia política do catolicismo, do que revela um clima confronto religioso com movimentos pró-direitos da sociedade civil. 

Jacobs e Ottinger (2022), ao analisarem o papel da Igreja Ortodoxa na Rússia e suas conexões com a pretensões expansionistas contra a Ucrânia do governo Putin, sugerem que a unidade espiritual de um povo ou nação será consolidada em torno de uma ideia e um sentimento compartilhado de perseguição. A defesa dessa unidade é um dos fundamentos subjetivos que mobiliza e justifica a imposição legal de princípios universalizados, o que permite a manutenção e/ou ampliação do status quo de determinado sistema político e/ou domínio territorial e cultural. 

Interessa reter essa ideia do sentimento compartilhado, para produzir uma unidade espiritual, de um lado, porque a retórica cristofóbica produz esse sentimento de ameaça à unidade e, de outro lado, não deixa de ser uma estratégia que afirma haver uma perseguição no Brasil que atenta contra a liberdade religiosa de uma maioria cristã. 

Nessa lógica, é essa perseguição que justifica atacar aqueles que são uma ameaça para a maioria que integra a nação, que é cristã. De certa forma, há no termo uma distorção argumentativa, isto é: cria-se um imaginário de perseguição religiosa que justifica acossar aqueles que foram erguidos como inimigos dos princípios do Cristianismo e dos cristãos, tudo em nome de uma fé que precisa ser defendida. 

Consequentemente, a cristofobia será o álibi discursivo que certos setores cristãos conservadores acionam contra a ameaça dos avanços que o exercício democrático trouxe às minorias sexuais e ao movimento feminino, quer seja ao pautar a agenda social, quer seja ao reivindicar direitos identitários, sexuais e sociais. De certa forma, atualiza o que Brenda Carranza e Christina Vital-Cunha (2018) sugerem como efeito retorsão que consiste em certa estratégia de pronunciamento público dos parlamentares os quais se posicionavam no terreno do “inimigo”, no caso os movimentos pró-direitos sexuais, arguindo a partir de seus argumentos seculares, científicos e laicizantes. 

A contorção argumentativa alastra uma contradição curiosa, pois é uma minoria religiosa, os parlamentares evangélicos conservadores, que exercendo seus direitos democráticos alinhavam a narrativa cristofóbica. Tal contorção torna-se um exemplo concreto do que Burity (2015) denomina de minoritização que, de acordo com o autor, os evangélico-pentecostais sendo parte das minorias, e tendo se beneficiado da expansão democrática, atuam reativamente como maioria contra as minorias sexuais. 

Em sendo, a cristofobia utilizada como estratégia retórica que afirma supremacia de uma maioria cristã e justifica a perseguição daqueles que não são maiorias nem demográficas, nem simbólicas e políticas, passa a ser uma narrativa preconceituosa com suas consequências discriminatórias. Em outras palavras, a cristofobia é um preconceito.

Ao longo dos anos, a narrativa cristofóbica estendeu-se também para o Catolicismo conservador, expresso na fala da parlamentar Tonietto que avalia: “nós estamos voltando ao calvário, nós estamos vivendo tempos sóbrios, eu diria, tempos apocalípticos em que a fé tem sido ultrajada, em que igrejas têm sido violadas, em que cristãos no mundo inteiro têm sido perseguidos”. 

Numa outra esfera, a universalização da perseguição também foi invocada pelo presidente da República Jair Bolsonaro no dia 22 de setembro de 2020, no seu discurso de abertura do encontro anual da Organização das Nações Unidas (ONU). Bolsonaro afirmou: “faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”. 

O discurso cristofóbico passa a assumir, com o governo Bolsonaro, dimensões  de política internacional no Brasil que, de acordo com o então Ministro de Relações Externas, Ernesto Araújo, ao comentar o discurso de Bolsonaro na ONU disse: “Há consciência insuficiente no mundo sobre a cristofobia, inclusive em países que já foram de maioria cristã e onde às vezes a fé cristã é denegrida, atacada, quando outras fés não o são”. 

Um ano antes, em 1º de janeiro, em seu discurso de posse, Bolsonaro assinalava compromisso com uma agenda de defesa da moralidade cristã, pois: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e a nossa tradição judaico-cristã, combatendo a ideologia de gênero, resgatando os nossos valores”. 

A retórica de Bolsonaro ancora-se no reconhecimento da moralidade cristã como a moralidade pública do país que, segundo ele é um “um país cristão e conservador e tem na família sua base.” 

A mesma narrativa de defesa da família, perseguição e ameaça ao Cristianismo é identificada por Jonh Fea (2018), ao analisar as eleições e o triunfo de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos (2017-2021). O autor sugere que o ódio e o medo foram o combustível utilizado por uma das figuras mais contraditórias, moralmente falando, para obter o voto evangélico naquele país. Trump, segundo o estudioso, reavivou o medo inerente à longa tradição evangélica e ao utilizá-lo como tática no jogo político, recriou um passado impregnado de temores a perder o status de nação protestante. 

Fea realizou um breve percurso que ilustra a história do medo norte-americano que vai desde puritanismo, anticatólico da América colonial, presente na revolução americana, até o medo ao deísmo na primeira república, latente na guerra racial e/ou miscigenação. Da mesma forma, as respostas nativistas aos imigrantes, medos retomados na identificação das forças culturais modernistas de 1920, que trouxeram o renascimento da Ku Kux Klan (KKK), a guerra sobre o ensino da evolução, os temores dos Direitos Civis, e das guerras culturais e o feminismo nos idos anos de 1960. 

Esse percurso sobre o medo conduziu, de acordo com John Fea, a alguns momentos sombrios na história norte-americana e a um empoderamento de determinados setores evangélicos conservadores. Estes segmentos, atualmente, participam partidariamente (Partido Republicano) nos processos políticos e sustentam uma teologia política (do domínio ou restauração) que justifica espalhar representantes evangélicos nas diversas instâncias do poder Legislativo, Judiciário e Executivo para atuar em nome de Deus para a defesa do Cristianismo.

Maria José do Rosado-Nunes, Olívia Bandeira e Gisele Pereira (2021) identificam esta proposta na ênfase no ativismo judiciário dos setores cristãos que demonstra um processo de juridificação da política como estratégia de consolidação da direita cristã no Brasil. Atuação política, tanto nos EUA quanto no Brasil, tem suas raízes ideológicas no que Jacobs e Ottinger (2022) denominam de unidade espiritual e política e para Fea é o que possibilitaria o “Make American Great Again” [retorno à grande América], para recuperar um passado grandioso que nunca existiu, hoje ‘ameaçado’ por pessoas não brancas, não heterossexuais, não cristãs e moralmente suspeitas. 

Assim, a cristofobia é uma narrativa de perseguição cristã dos representantes políticos evangélicos conservadores que, perante a percepção de uma ameaça iminente à integridade dos valores da sociedade brasileira, nutrem o medo sobre grupos e movimentos ligados às demandas identitárias e direitos sexuais e sociais. 

Tais atores religiosos se utilizam do sintagma cristofobia como estratégia política que reafirma um imaginário de nação cristã, identificam as minorias sexuais como inimigos do Cristianismo, contorcionam os argumentos da real perseguição cristã, que no Brasil é inexistente, erguem o termo à pauta de governo, alastrando-o internacionalmente, e se alinham com setores da direita cristã norte-americana. 

O efeito narrativo da cristofobia será o de insuflar ânimos de defesa religiosa diante de um sentimento compartilhado de ameaça e perseguição. Portanto, em nome de Deus é possível desencadear uma cruzada santa de defesa da nação.

Brenda Carranza, cientista social, professora visitante no Programa de Pós-graduação de História Social/ UERJ, professora de Antropologia da Religião/ UNICAMP.

Saiba mais

Laboratório de Antropologia da Religião-LAR/Unicamp

Coletivo Bereia

Referências bibliográficas

Jacobs, Andreas; Ottinger, Richard (2022) La Guerra Santa de Putin. Diálogo Político, Konrad Adenauer Sitftung, Debates, 21.02.2022. Disponível: https://dialogopolitico.org/debates/guerra-santa-putin.

Burity, Joanildo (2015) Minoritização, glocalização e política: para uma pequena teoria da translocalização religiosa. In: Cadernos de Estudos Sociais, vol.30, n. 2, jul/dez.2015: 31-73.

Carranza, Brenda; Vital-Cunha, Christina (2018). “Conservative religious activism in the Brazilian Congress: Sexual agendas in focus”. In: Social Compass, Vol. 65(4) 486 –502; Disponível: http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0037768618792810.  

Fea, Jonh (2018). Believe Me the evangelical road to Donald Trump Eerdmans Publishing Co. Michigan.

Rosado-Nunes, Maria José; BANDEIRA, Olívia; PEREIRA, Gisele (2021). Direito e mídia como arenas e estratégias do neoconservadorismo. In: Religião, cultura e política entre o progressismo e o conservadorismo (Dossier). PLURAL, Revista do Programa de Pós -Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.28 .1, jan ./jun , p .5-16 [doi .org/510 .11606/issn]