Os dados utilizados neste artigo podem ser encontrados aqui.
Em 20 de março de 2007, o deputado federal Homero Pereira (PR/MT) apresentou ao plenário da Câmara o Projeto de Lei nº 490, que propõe alterações no Estatuto do Índio, de 1973, especialmente no que diz respeito ao regramento para demarcação de terras indígenas. Caso aprovado o PL, a responsabilidade das demarcações, que desde 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, é tarefa da Fundação Nacional do Índio (Funai), seria transferida para o Congresso Nacional. Isso significa que os parlamentares passariam a ter a competência de deliberar o que constitui ou não terra indígena. Atualmente, o trâmite na Funai para definição dessas áreas é bastante complexo e reúne uma série de profissionais gabaritados para tanto.
Em 2008, o PL foi rejeitado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias e aprovado pela Comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural. Desde então, a matéria aguardava a apreciação dos membros da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Este momento veio a ocorrer em 2021, 14 anos após a apresentação do PL na Câmara dos Deputados, em um movimento de “desengavetação” do texto por deputados da base do governo Bolsonaro. As recentes análises do PL pelos congressistas culminaram na incorporação da questão do “marco temporal”, que prevê a necessidade de os grupos indígenas comprovarem a ocupação daqueles espaços em 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Esta resolução tem recebido críticas, já que impõe barreiras à obtenção oficial das terras.
A discussão do projeto foi agendada para 22 de junho deste ano. Na ocasião, o teor da proposta foi alvo de críticas de indígenas e especialistas no tema que a compreendem como inconstitucional e violadora de direitos fundamentais, já que reverte diretrizes preconizadas pela Carta Magna. Um acampamento, composto por mais de 800 indígenas, instalado em frente ao Congresso Nacional buscou pressionar os parlamentares a se posicionarem contra o PL. No dia da votação da CCJ, houve também um protesto de grupos indígenas fortemente reprimido pela polícia, que despejou gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral na direção dos manifestantes.
Em razão da violência que acontecia do lado de fora da Câmara, a votação foi adiada para o dia 23 de junho. Mesmo com a intensa mobilização indígena e de ativistas apoiadores de suas causas, o PL 490/2007, cujo relator é o deputado federal Arthur Maia (DEM/BA), foi aprovado com folga pela CCJ, presidida pela deputada da base bolsonarista Bia Kicis (PSL/DF). Com 40 votos favoráveis e 21 contrários, o PL agora segue para votação no Plenário da Câmara. Contudo, ainda não há data para esta nova fase de encaminhamento do projeto.
O quadro abaixo apresenta informações sobre partido, estado, religião, frentes parlamentares com identidade religiosa das quais os parlamentares listados, em ordem alfabética, são signatários e a forma como votaram. Elas foram cruzadas com o banco de dados da Religião e Poder referente ao monitoramento das três frentes parlamentares com identidade religiosa em atuação no Congresso Nacional, que pode ser encontrado aqui. A definição de cada uma delas e uma explicação mais detalhada sobre como elas se articulam podem ser consultadas neste link.
Do total dos 61 deputados que votaram na CCJ, 42 são signatários de alguma frente parlamentar com identidade religiosa. Importante destacar que a maioria dos deputados da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana votaram “Não” ao PL. No entanto, não se trata de mera coincidência, já que a FPMA tem como princípio a proteção dos direitos dos povos originários. Também foram contrários todos os deputados do PT, PSB, PSOL, PDT, PV, PC do B e Cidadania, isto é, partidos de esquerda ou centro-esquerda. Já PSL, PP, Republicanos, DEM, Podemos, MDB, Solidariedade, PTB, PSC, PROS, Patriota, Novo e Avante, se posicionaram exclusivamente a favor do projeto, ou seja, contra os direitos da população indígena no Brasil. Vale ressaltar que todos os 12 deputados do PSL e do PP se posicionaram a favor. Entre aqueles que votaram “Sim”, 12 deputados não fazem parte de qualquer uma das três frentes parlamentares com identidade religiosa, enquanto 18 compõem a Frente Parlamentar Evangélica e 19 integram a Frente Parlamentar Católica.
Veja, a seguir, como cada parlamentar votou na CCJ:
Parlamentar | Partido | Estado | Religião | Frentes religiosas às quais pertence | Como votou no PL 490/2007: |
Alê Silva | PSL | MG | Católica | FPE, FPC | Sim |
Alencar S. Braga | PT | SP | Católico | FPMA | Não |
Arthur O. Maia | DEM | BA | Católico | FPC, FPMA | Sim |
Bia Kicis | PSL | DF | Católica | FPE, FPC | Sim |
Bilac Pinto | DEM | MG | Não identificada | Nenhuma | Sim |
Bira do Pindaré | PSB | MA | Católico | FPMA | Não |
Capitão Augusto | PL | SP | Católico | FPE, FPC | Sim |
Capitão Wagner | PROS | CE | Evangélico – Universal | FPE, FPC | Sim |
Carlos Jordy | PSL | RJ | Evangélico sem denominação | FPC | Sim |
Caroline de Toni | PSL | SC | Espírita | Nenhuma | Sim |
Claudio Cajado | PP | BA | Católico | Nenhuma | Sim |
Dagoberto Nogueira | PDT | MS | Ateu | Nenhuma | Não |
Daniel Freitas | PSL | SC | Cristão | Nenhuma | Sim |
Danilo Forte | PSDB | CE | Não identificada | Nenhuma | Sim |
Darci de Matos | PSD | SC | Católico | FPC | Sim |
Diego Garcia | Podemos | PR | Católico | FPE, FPC, FPMA | Sim |
Edilázio Júnior | PSD | MA | Católico | FPE, FPC | Sim |
Edio Lopes | PL | RR | Católico | FPMA | Não |
Enrico Misasi | PV | SP | Católico | Nenhuma | Não |
Fábio Trad | PSD | MS | Católico | FPE, FPC, FPMA | Não |
Fernanda Melchionna | PSOL | RS | Sem religião | FPMA | Não |
Filipe Barros | PSL | PR | Evangélico Presbiteriano | FPE, FPC | Sim |
Genecias Noronha | Solidariedade | CE | Católico | Nenhuma | Sim |
Geninho Zuliani | DEM | SP | Católico | Nenhuma | Sim |
Gervásio Maia | PSB | PB | Católico | Nenhuma | Não |
Gilson Marques | Novo | SC | Católico | Nenhuma | Sim |
Giovani Cherini | PL | RS | Católico | Nenhuma | Sim |
Gleisi Hoffmann | PT | PR | Católica | FPMA | Não |
Greyce Elias | Avante | MG | Evangélica – Igreja Sara Nossa Terra | FPE | Sim |
Hiran Gonçalves | PP | RR | Católico | FPE, FPC | Sim |
João Campos | Republicanos | GO | Evangélico – Assembleia de Deus | FPE, FPC, FPMA | Sim |
José Guimarães | PT | CE | Católico | FPMA | Não |
José Medeiros | Podemos | MT | Evangélico Presbiteriano | FPE, FPMA | Sim |
Júlio Delgado | PSB | MG | Católico | Nenhuma | Não |
Kim Kataguiri | DEM | SP | Cristão Anglicano | FPE | Sim |
Lucas Redecker | PSDB | RS | Evangélico Luterano | FPE | Sim |
Luizão Goulart | Republicanos | PR | Católico | FPMA | Sim |
Magda Mofatto | PL | GO | Cristã | FPC | Sim |
Marcelo Aro | PP | MG | Não identificada | FPC | Sim |
Marcelo Moraes | PTB | RS | Católico | Nenhuma | Sim |
Márcio Biolchi | MDB | RS | Católico | FPE, FPC, FPMA | Sim |
Marcos Pereira | Republicanos | SP | Evangélico – Universal | FPE | Sim |
Margarete Coelho | PP | PI | Católica | Nenhuma | Sim |
Maria do Rosário | PT | RS | Católica | FPMA | Não |
Orlando Silva | PCdoB | SP | Agnóstico | FPC, FPMA | Não |
Pastor Eurico | Patriota | PE | Evangélico – Assembleia de Deus | FPE | Sim |
Patrus Ananias | PT | MG | Católico | FPMA | Não |
Paulo Magalhães | PSD | BA | Católico | FPMA | Sim |
Paulo Martins | PSC | PR | Católico | FPE, FPC | Sim |
Paulo Teixeira | PT | SP | Católico | FPMA | Não |
Pinheirinho | PP | MG | Católico | FPE, FPMA | Sim |
Pompeo de Mattos | PDT | RS | Católico | FPC, FPMA | Não |
Pr. Marco Feliciano | Republicanos | SP | Evangélico – Assembleia de Deus | Nenhuma | Sim |
Ricardo Silva | PSB | SP | Não identificada | Nenhuma | Não |
Rogério Peninha | MDB | SC | Católico | FPC | Sim |
Rubens Bueno | Cidadania | PR | Católico | Nenhuma | Não |
Rui Falcão | PT | SP | Católico | FPMA | Não |
Samuel Moreira | PSDB | SP | Católica | Nenhuma | Não |
Stephanes Junior | PSD | PR | Católica | FPC | Sim |
Túlio Gadêlha | PDT | PE | Não identificada | FPMA | Não |
Vitor Hugo | PSL | GO | Católico | FPC | Sim |
*Legenda: FPC: Frente Parlamentar Católica / FPE: Frente Parlamentar Evangélica / FPMA: Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana
Perfis religiosos dos 40 parlamentares que votaram a favor o PL 490/2007
Em relação ao pertencimento religioso, a maioria dos parlamentares que votou a favor do PL se declara católica: cerca de 58% (23 católicos). Outros 10 se declaram evangélicos, três cristãos (sendo um protestante) e uma espírita. O grupo evangélico se divide entre membros das igrejas Universal, Presbiteriana, Sara Nossa Terra, Assembleia de Deus e Luterana. Não foi possível identificar a religião de três dos 40 deputados que se colocaram a favor do projeto.
Perfis religiosos dos 21 parlamentares que votaram contra o PL 490/2007
Quanto ao pertencimento religioso do grupo que votou contra o PL, destaca-se o elevado número de católicos (16 parlamentares). Cinco não possuem religião e não foi possível identificar a identidade religiosa de dois dos membros. Nenhum dos deputados que se posicionou contra a implementação do projeto que muda a demarcação de terras indígenas é evangélico.
Os gráficos abaixo ilustram como os parlamentares se posicionaram em relação ao PL 490/2007. No primeiro, temos o pertencimento religioso do deputado em relação ao seu voto, adotando a cor vermelha para os que foram contrários ao projeto, ou seja, se posicionando em defesa dos povos indígenas, e em verde os que votaram a favor do projeto, isto é, contra os direitos dos povos indígenas:
No gráfico abaixo, é possível perceber como os partidos votaram em relação ao projeto, atentando ao fato de que tanto o PT quanto o PSL, com o mesmo número de deputados, votaram de forma diametralmente oposta, mostrando que o espectro ideológico se manifestou de forma bem demarcada. O projeto segue agora para votação no plenário da Câmara dos Deputados.
Decisão sobre o Marco Temporal no STF
Como retomada do movimento “Levante pela Terra”, organizado em junho quando da votação do PL 490/2007, em 22 de agosto, teve início em Brasília o acampamento “Luta Pela Vida”. O movimento reúne mais de seis mil indígenas para protestar contra a tese do Marco Temporal, cujo julgamento foi agendado para ser retomado em 25 de agosto, no Supremo Tribunal Federal (STF).
O julgamento, por sua vez, trata de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, de modo que a decisão tomada neste caso servirá como diretriz para a gestão federal e jurídica no que diz respeito aos procedimentos de demarcação de terras, inclusive de terras já demarcadas.
A decisão no STF, portanto, pode alterar definitivamente a política de demarcação de terras indígenas no Brasil. A ONU e outros organismos internacionais têm se somado às críticas dos indígenas na tentativa de barrar a legalização do marco temporal, tida como ilegal e violadora do direito fundamental à terra, preconizado pela Constituição de 1988.
Gabrielle Abreu é historiadora, mestra em História Comparada (UFRJ) e pesquisadora no ISER.
Matheus Pestana é cientista político, doutorando em Ciência Política (UERJ) e pesquisador no ISER.
Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real
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Carol Castro: Ecoa UOL – O que é o PL 490 e como ele afeta a vida dos povos indígenas?
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