O relatório completo da pesquisa pode ser acessado aqui.

Podemos observar nos últimos anos, com a participação de atores cristãos no âmbito institucional, a ocorrência de importantes mudanças na dinâmica social e na política brasileira. Elas projetaram, principalmente, atores da minoritização evangélico-pentecostal (Burity, 2015) para o primeiro plano da vida política nacional. No período de 2002 a 2015, lideranças pentecostais aliaram-se a uma coalizão nacional de centro-esquerda, iniciando uma presença discreta em cargos de governo, constituindo uma elite parlamentar e pastoral, cortejada por sua força de mobilização eleitoral de bases, moralmente conservadoras.

No entanto, se, por um lado, temos acompanhado, nas últimas décadas, uma presença acentuada e organizada de evangélicos, também observamos que atores e organizações católicas vêm reivindicando a identidade católica no espaço público. Nos últimos anos, são inúmeros os casos de organizações católicas que se articularam em diferentes espaços, com ênfase no Poder Judiciário, para impedir a ampliação de direitos de minorias políticas, sobretudo no que diz respeito aos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR). 

Como exemplo paradigmático temos a audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) que versa sobre o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442 de 2018, onde se discute o tema da descriminalização do aborto no Brasil até a 12ª semana de gestação. 

Vale registrar que uma ADPF é um instrumento jurídico submetido ao Supremo Tribunal Federal com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. Neste caso, a ADPF 442/2017, impulsionada pela ANIS – Instituto de Bioética e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), questiona a lei de criminalização do aborto no Brasil, prevista no Código Penal Brasileiro de 1940, que instituem na criminalização da interrupção voluntária da gravidez (aborto).

A ADPF 442 teve grande repercussão midiática entre comunidades católicas diocesanas e paróquias, mobilizando tanto setores religiosos contrários e favoráveis, como movimentos feministas e a classe jurídica, e segue em discussão no tribunal. A  audiência pública, realizada pela Corte em 2018, é considerada a maior, seja pelo número de expositores, como em maior número de amicus curiae oferecidos na história do STF. O evento envolveu a participação e o engajamento de católicos que explicitam o associativismo de leigos como parte do modus operandi dos católicos para impedir o avanço de direitos.  

Por meio de leituras e reuniões semanais, o GT Catolicismos Conservadores vinculado ao ISER, orientou a pesquisa, com objetivo de compreender a temporalidade em que o país sofre a inflexão jurídica frente ao ativismo de grupos católicos conservadores em diferentes instâncias jurídicas do país. Foi estabelecida ênfase para a mobilização religiosa-conservadora do direito frente temáticas como “legalização do aborto, criminalização da homofobia, [e] reconhecimento da união estável homoafetiva” – ainda que reconheçamos que as associações católicas também têm forte capitalidade nas discussões no âmbito econômico, trabalhista e tributário.

Importante situar que a pesquisa se soma a uma série de esforços empreendidos em compreender a articulação de setores religiosos em torno de uma agenda antidireitos. A pesquisa “Fundamentalismos, crises das democracias e ameaças aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação” (2020), do Fórum Ecumênico ACT Sul-Americano”, destaca alguns elementos comuns identificados entre Argentina, Brasil, Colômbia e Peru). Entre eles, foi destacada “uma intensa expressão reacionária a avanços sociais que responderam aos Direitos Humanos e à busca da igualdade social (de classe, na distribuição de renda, de raça e etnia, de gênero)”, “gênero como elemento destacado na reação” tendo as pautas “pró-vida” e antigênero permeado toda a reação; e “pautas pró-família e antigênero desenvolvidas” pelas vias do poder judiciário e da educação. Nesse sentido, a pesquisa enfatiza que “existe um padrão de ação sistemático desenvolvido por diferentes fundamentalismos, resultado de uma estratégia que ameaça e busca controlar as democracias dos países sul-americanos”. 

Nessa mesma direção, a pesquisa “Ofensivas Antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social” (2021) do Observatório de Políticas Sexualidade (SPW), destacam a articulação entre evangélicos e católicos em torno de agendas comuns (antidireitos), entre elas a agenda antigênero. A agenda antigênero, há muito tempo, vem sendo canalizada por organizações católicas “pró-vida” e “pró-família”, e nesse sentido compreender a forma com que esses atores se inscrevem e quem são torna-se fundamental. Isto por conta do reconhecimento da centralidade do discurso pró-família para “legitimar um projeto político-econômico capitalista que debilita políticas públicas e precisa da “família” para exercer as funções de cuidado e proteção das quais o Estado abdica” (p. 9).

Apesar de identificada a relevância que o Catolicismo (instituições, organizações e atores) assume para a compreensão do neoconservadorismo no Brasil, junto de outros(as) pesquisadores(as) interessados(as) no tema do conservadorismo, reconhecemos a escassez na produção de pesquisas empíricas e reflexões teóricas contemporâneas que assumam a articulação entre catolicismo e conservadorismo como horizonte principal de análise. 

Nesse sentido, o relatório Catolicismo Jurídicos Antidireitos (2024) faz parte do esforço em compreender como setores conservadores católicos no Brasil, conectados com uma agenda global e estimulada por setores reacionários do Vaticano, vem reconfigurando seus ativismos na última década. 

O relatório produzido buscou analisar quais são as associações, grupos e atores católicos conservadores que se valem da estratégia da litigância jurídica em tribunais superiores como forma de impedir o avanço de políticas no campo dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR). 

No entanto, também destacamos a intrínseca relação entre agentes católicos que atuam em organizações e associações de perfil conservador, com universidades e grupos de estudos voltados para jovens que atuam como “atravessadores de fronteiras”, vindos de meios tradicionalistas e que recebem formação universitária secular (Riesebrodt, 1993, p.189). É perceptível a tendência, a partir dos anos 2000, de difusão de grupos de estudos e de pesquisas centrados na difusão do direito canônico, romano, e do direito natural. 

Por fim, destacamos na pesquisa o que classificamos como “associativismo religioso”, refletido nas Uniões de Juristas Católicos. Apoiadas e amparadas por dioceses e arquidioceses, as uniões são espaços de articulação do campo leigo na atuação jurisdicional conservadora da Igreja Católica. As uniões são sustentadas pela estrutura clerical das dioceses, que oferecem tanto subsídios estruturais (espaço físico), como sociais (amparando campanhas “pró-vida” e “pró-família) e teológicos (direito canônico) a partir da cosmovisão cristã do ordenamento jurídico.

Imagem de capa gerada por inteligência artificial com o prompt “justice symbol with rosary beads, ultrarrealistic, 4k”, com o modelo SDXL.

Ana Carolina Marsicano é pesquisadora e socióloga feminista, doutoranda em sociologia pela PPGS/UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Integra o Laberp/FUNDAJ/UFPE (Laboratório de Estudos de Religião e Política) e o GT Catolicismos Conservadores do Iser (Instituto de Estudos da Religião).

Tabata Pastore Tesser é doutoranda em sociologia no Programa de Pós-Graduação da USP (Universidade de São Paulo). Integra o GREPO (Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica) e o GT Catolicismos Conservadores do Iser (Instituto de Estudos da Religião).

Referências 

ABIA – OBSERVATÓRIO DE POLÍTICAS DE SEXUALIDADE et al. Ofensivas antigênero no Brasil: políticas de estado, legislação, mobilização social. 2021. Disponível em Disponível em https://sxpolitics.org/ptbr/wp-content/uploads/sites/2/2021/10/E-book-SOGI-21102021.pdf . Acesso em: 17 jan. 2024. 

BURITY, Joanildo. Políticas de minoritização religiosa e glocalização: notas para um estudo de redes religiosas de ativismo socio-político transnacional. Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad 18(7): 9-30, 2015.

CUNHA, Magali do Nascimento. Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação. Salvador: KOINONIA Presença Ecumênica, 2020. Disponível em https://fld.com.br/wp-content/uploads/2020/11/FundamentalismosPT.pdf . Acesso em 23 jan. 2024.

RIESEBRODT, Martin. Pious Passion: The emergence of modern fundamentalism in the United States and Iran. University of California Press: California, 1993.