Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 31 out 2023

Em janeiro de 2023, o então eleito Presidente da República tomou posse, após quase uma década de um período conturbado da democracia brasileira. Esse tempo envolveu ataques incisivos e constantes a direitos fundamentais de diferentes grupos sociais e ao que chamamos de natureza. As eleições de 2022 significaram, portanto, para amplos setores da sociedade brasileira a retomada do Estado de Direito, e o evento da posse se tornou um momento de afirmação de tais expectativas. Em um futuro novo que se anunciava para o Brasil naquele momento, de esperança de melhores condições de vida e de defesa da diversidade, que é uma sociobiodiversidade, o presidente subiu a rampa do Planalto acompanhado de “representantes do povo brasileiro”, como foi noticiado nos jornais. Subiram a rampa uma criança, moradora de uma área periférica, uma catadora de materiais recicláveis, o cacique Raoni, um metalúrgico, um professor, uma cozinheira e um ativista anticapacistista.

No entanto, por que começo este texto, que trata dos animais, falando da posse presidencial? Porque o presidente, junto com a primeira-dama e as pessoas citadas, subiu a rampa acompanhado também da cadela adotada pelo casal, de nome Resistência. Chamo atenção para esse acontecimento marcante da recente história brasileira, por considerar que a presença de Resistência também pode ser pensada como um marco, já que o Brasil visualizou a chegada dos animais na política pela porta da frente, como novos seres a quem se reivindica direitos. Não é mero fato que o governo federal tenha criado o Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Falar da entrada dos animais na política pela porta da frente não significa que essa presença seja uma novidade no Direito, conforme veremos a seguir. No entanto, é inegável que a relação entre animais e política ou entre animais e direito passou por transformações profundas nas últimas décadas, não só no Brasil, mas em diferentes países, que repercutem no Congresso Nacional. Essas transformações refletem uma virada ética a respeito do valor da vida animal e abrem um mundo enorme de lacunas jurídicas a serem preenchidas.

Nunca foi simples legislar sobre a vida animal, devido à tensão entre sua condição de sujeito e objeto, e a partir das diferentes atividades em que estão inseridos. Atualmente, com as reivindicações crescentes sobre direito dos animais, observamos como a lei e a moral se misturam, penetram em situações cada vez mais específicas da vida cotidiana, e nos vemos diante de um momento em que a vida cotidiana e o mundo da política e do direito são atravessados pela “causa animal”. Desta forma, esta linha do tempo pretende mostrar como o Estado brasileiro é cada vez mais pressionado por reivindicações sociais de proteção à vida dos animais, relacionadas tanto ao tratamento humanitário quanto à consideração deles como membros da família.

1916
Código Civil

Quando falamos de animais e leis, se por um lado, podemos afirmar que sua presença não é uma novidade, por outro lado, observa-se diferenças fundamentais no modo como se reivindica hoje o seu lugar diante do Estado, da sociedade e do mercado. E esta diferença diz respeito a uma transformação moral, ligada à consideração dos animais como sujeitos, ao invés de objetos, e aos pressupostos éticos em torno desse status. Trata-se então de uma transformação do modo como os animais figuraram inicialmente no domínio jurídico, pois na Lei nº 3.071, de 01 de janeiro de 1916, que institui o Código Civil brasileiro, os animais são tratados como coisas. A menção aos animais se faz através das questões em torno do seu penhor, venda e assim por diante.

1934
Medidas de proteção aos animais

O Decreto nº 24.645, de 10 de julho de 1934, trata exclusivamente de medidas de proteção aos animais, não enquanto coisas, pois o que está em questão não é, por exemplo, o prejuízo causado ao dono caso seja machucado ou abatido. Nesse texto, a preocupação primordial é garantir que animais não sejam vítimas de “maus tratos”. Ainda que seja um documento coexistente com o Código Civil, e que, portanto, apresenta o que poderia ser considerado uma ambiguidade acerca da condição animal, este decreto mostra as complexidades de se legislar sobre não humanos.

Em linhas gerais, o decreto apresenta as primeiras medidas punitivas para quem atentar contra vidas animais a partir de uma consideração ética. O primeiro artigo estabelece que todos os animais existentes no país são tutelados pelo Estado e prevê multas e pena de prisão em situações que configurem um “tratamento com crueldade”. É interessante observar que o decreto trata fundamentalmente de “animais de interesse econômico”. É o caso de animais de produção e de trabalho ou daqueles usados em ensino e também em espetáculos públicos. Por fim, cabe dizer que o decreto faz referência a “sociedades protetoras de animais”, configurando então a existência, já no início do século passado, de grupos sociais comprometidos com a chamada causa animal.

1941
Lei das Contravenções Penais

As medidas protetivas aos animais são reforçadas no Decreto-Lei nº 3.688, de 03 de outubro de 1941, que, nos mesmos termos do decreto citado anteriormente, estabelece uma seção para tratar da “crueldade contra animais”.

1975
Vidas animais importam

As medidas estabelecidas no Decreto de 1934, nos permitem pensar que antecipam um movimento de crítica social ao modo como animais são incorporados nos sistemas industriais de produção, mas que não se restringem a essas atividades. O uso de animais em experimentos científicos e ensino, em atividades de entretenimento, bem como, a relação estabelecida com animais de companhia passaram a ser fortemente contestados após a segunda metade do século passado, a partir do que é entendido como “direito dos animais”.

Na passagem do século 19 para o século 20 houve o surgimento das primeiras organizações protetoras dos animais, que já refletia dois pontos: o aumento expressivo do número de animais domésticos, bem como a consideração de que o tratamento destinado a esses animais era cruel.

Em razão dessas circunstâncias, nas últimas décadas, observamos o engajamento de cientistas e filósofos na construção dos “direitos dos animais”. O filósofo Peter Singer publicou, em 1975, o livro intitulado “Libertação Animal”. Este trabalho é tido como fundante do chamado moderno movimento de direito dos animais, conforme estabelece bases para a extensão do princípio básico de igualdade também para os animais. De forma crescente, vivemos a partir de então uma reviravolta nas relações estabelecidas com as diferentes categorias animais. Inaugurou-se uma crise sobre o lugar que animais ocupam no direito e na sociedade, de modo que passamos a revisar de cima a baixo as relações interespécies com vistas a um “tratamento humanitário” ou ao fim da “exploração animal”.

1988
Constituição Brasileira

A nova preocupação ética em relação aos animais, que emergiu com maior vigor na segunda metade do século passado, é acompanhada do reconhecimento da importância de se promover a sustentabilidade ambiental. Os anos 1970 são caracterizados também pela entrada na vida pública dos problemas em torno dos desequilíbrios ecológicos. Em 1972, foi realizada em Estocolmo, na Suécia, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Urbano. Na ocasião, 113 países e 400 instituições governamentais e não governamentais estiveram presentes. Desde então, a questão da preservação ambiental se tornou incontornável.

No Brasil, a Constituição de 1988 dedicou um artigo a este assunto, o de nº 225, intitulado “Do Meio Ambiente”. Em linhas gerais, é tratada a importância de “preservar o meio ambiente” para garantir a qualidade de vida humana. Entretanto, há um item que coloca como prática vedada submeter os animais à crueldade. Embora não haja qualquer outro detalhamento sobre o ponto, este artigo é um elemento importante de justificação nos projetos de lei em tramitação atualmente.

1998
Lei de Crimes ambientais

A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, dedica o artigo nº 32 para os animais. O texto estabelece pena de detenção e multa para quem “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. Nesta lei também não há maiores especificações, mas a partir do anos 2000, como veremos, o que se observa é justamente a existência de uma multiplicidade de instrumentos jurídicos que versam sobre aspectos específicos da relação entre humanos e animais.

TRATAMENTO HUMANITÁRIO DOS ANIMAIS DE PRODUÇÃO E PESQUISA CIENTÍFICA


2008
Lei Arouca

A criação e utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica passaram a ser reguladas pela Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008. Esta lei visa garantir “meios humanitários” de tratamento aos animais, ou seja, trata-se de garantir que haja, nessas atividades, o “mínimo de sofrimento físico ou mental”. No documento foi estabelecida também a obrigatoriedade da criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) e a Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA), com a finalidade de assegurar o cumprimento de suas normas. As penalidades vão desde advertência até interdição das instituições que utilizam animais.

Bem-estar

O tratamento dos chamados animais de produção, notadamente aqueles criados para a produção de alimentos, passou a ser orientado pela Instrução Normativa nº 56, de 06 de novembro de 2008. Este documento estabelece “procedimentos gerais de Recomendações de Boas Práticas de Bem-Estar para Animais de Produção e de Interesse Econômico”. Os termos “bem-estar” e “humanitário”, empregados para animais, designam a preocupação de “evitar dor e sofrimento desnecessários”. As recomendações consistem em estabelecer um “manejo cuidadoso e responsável” nos sistemas de produção e transporte, além de preconizar as condições higiênicas dos ambientes em que animais são instalados.

2017
Capacitação Pré-Abate e Abate Humanitário

A Instrução Normativa nº 12, de 11 de maio de 2017, estabelece normas para o credenciamento de entidades habilitadas para realizar o Treinamento em Manejo Pré-abate e Abate de Animais. Tais entidades serão autorizadas a capacitar e emitir Certificado de Aptidão dos responsáveis pelo abate humanitário nos estabelecimentos que têm fins comerciais.

2018
Exportação de animais vivos

Além da criação de animais para o mercado da carne no país, o Brasil também é exportador de animais vivos para abate e reprodução. Nesse sentido, foi criada a Instrução Normativa nº 46, de 28 de agosto de 2018, que estabelece o regulamento técnico para esta atividade. Além das exigências sanitárias, o documento também apresenta as chamadas exigências humanitárias, estabelecendo regulamentos técnicos para garantir a saúde e bem-estar dos animais.

2020
Suínos

Embora as instruções normativas citadas anteriormente incluam suínos, foi criada a Instrução Normativa nº 113, de 16 de dezembro de 2020, para estabelecer procedimentos específicos das chamadas boas práticas de manejo e bem-estar de animais dessa espécie, para a criação, transporte e abate.

ANIMAIS DE COMPANHIA


2020
Lei Sansão

A Lei nº 14.064, de 29 de setembro de 2020, altera a Lei de Crimes Ambientais para aumentar as penas quando se tratar de cães e gatos. Esta alteração prevê reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda. O decreto de 1934 previa detenção de dois a 15 dias, e a Lei de Crimes Ambientais, a detenção de três meses a um ano e multa. O apelido que a nova lei ganhou faz referência ao nome de um cachorro que teve as patas traseiras decepadas no município de Confins, em Minas Gerais. Porém, este não foi o primeiro caso emblemático que ganhou notoriedade nacional e se tornou pauta para reivindicação do aumento da pena para maus tratos. Em janeiro de 2012, uma mulher foi filmada agredindo um cachorro em sua residência. As cenas foram veiculadas amplamente, gerando, posteriormente, manifestações nas ruas para o aumento de pena. Outro caso importante aconteceu em novembro de 2018, quando um cachorro foi morto no estacionamento de uma rede de supermercados, em São Paulo, após o segurança conferir golpes contra ele com uma barra de ferro.

Este documento congrega, portanto, uma série de transformações e reivindicações a respeito da consideração da vida dos chamados animais de companhia. Então, se o primeiro documento jurídico protetivo dos animais manifestava preocupação com aqueles que comemos ou que usamos como tração, atualmente cães e gatos se tornaram os protagonistas em projetos de lei, enquanto animais com os quais estabelecemos vínculos de afeto que, portanto, merecem cuidados.

2021
Sacrifício de animais em canis

A vida e a morte dos animais em geral, e de cães e gatos em particular, estão em meio a inúmeras novas exigências socialmente constituídas que pressionam o Estado. Nos últimos anos, observamos como inúmeras e diversas lacunas se abrem, do mesmo modo que práticas tidas como legítimas se tornam contestadas. Uma delas diz respeito à morte provocada de animais saudáveis, capturados nas ruas, nos centros de zoonoses. Esta situação foi proibida, primeiramente, em São Paulo, com a Lei Estadual nº 12.916, de 16 de abril de 2008, e, recentemente, se tornou proibida em todo território nacional, com a Lei Federal nº 14.228, de 20 de outubro de 2021. Esta lei prevê a morte provocada de animais, apenas após a emissão de laudo técnico nos casos de doenças graves ou incuráveis que ameacem a saúde de outros animais e de humanos.

ABERTURAS JURÍDICAS


2019
Sacrifício religioso

Em 29 de Março de 2019, O Supremo Tribunal Federal decidiu de forma unânime a constitucionalidade do sacrifício de animais em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, considerando o direito fundamental à liberdade religiosa. Esse Recurso Extraordinário foi discutido no STF após questionamento sobre a constitucionalidade ou não constitucionalidade do Código Estadual de Proteção aos animais, instituído pela Lei Estadual n. 11.915 do Rio Grande Sul e que vedava o sacrifício ritual. Esse julgamento demonstra como a preocupação com a proteção dos animais, tanto em termos morais quanto jurídicos não se faz livre de situações complexas, envolvendo até mesmo conflitos entre diferentes direitos fundamentais. Não é simples definir o que são práticas de crueldade contra animais. E a problemática entre tradições religiosas e proteção animal é uma situação importante, que demonstra as dificuldades em torno dessa definição. Pois se do ponto de vista dos defensores, provocar a morte é, em si, cruel porque fere o direito à vida dos animais, por outro lado, não existe norma jurídica que proíba a morte de animais. Desse modo, o ordenamento jurídico pode inclusive ser peça de intolerância, preconceito, estigmatização e etc no processo de delimitar que práticas são vedadas, por exemplo.

2023
Projetos de Lei identificados no Monitoramento de PLs do ISER

Até o fechamento deste texto, em 21 de setembro de 2023, encontravam-se em tramitação no Congresso Nacional 119 Projetos de Lei de autoria de deputados vinculados a todas as tendências ideológico-partidárias, segundo o Monitoramento Mensal de PLs realizado pelo ISER. No entanto, cabe ressaltar que existe uma concentração do número de proponentes em partidos de direita. Esses projetos, em linhas gerais, partem do artigo da Constituição Brasileira e da Lei de Crimes Ambientais para garantir o “bem estar e a saúde dos animais”.

Os animais domésticos, notadamente cães e gatos, ocupam um lugar primordial nesses projetos e as ações dizem respeito a regular o mercado, aumentar atribuições do Estado e a responsabilização individual sobre os animais.

Na medida em que se reivindica o valor da vida animal nos moldes do valor da vida humana, um dos projetos identificados no monitoramento do ISER, por exemplo, torna obrigação do Estado a garantia de tratamento médico veterinário público, incluindo também o fornecimento de medicamentos. Há também projetos que buscam tornar crime novas situações, como o atropelamento de cães e gatos, por exemplo.

Se as leis existentes já fornecem uma linha argumentativa importante, há projetos de lei que buscam reforçar os pressupostos em torno dos direitos dos animais, tanto em suas justificativas quanto nas demandas. Existe, por exemplo, um projeto de lei que estabelece que animais não humanos se tornem parte em processos judiciais de modo que possam reivindicar em juízo seus direitos individuais. Há projetos também que têm o objetivo de viabilizar o funcionamento da família multiespécie. São, portanto, projetos de lei que vão desde reconhecer propriamente a família multiespécie como entidade familiar, até exigir a dedução de despesas médicas no imposto de renda de pessoas físicas, ou a inclusão de ração na cesta básica.

Embora o espaço aqui não comporte que cada um destes projetos seja tratado detalhadamente, importa reconhecer o esforço de se legislar entre as responsabilidades públicas, privadas e individuais, que acionam um repertório emocional, em relação ao vínculo afetivo ou à noção em torno do sofrimento dos animais. Vale considerar também a emergência de um repertório científico e filosófico que estabelece uma simetria moral entre humanos e não humanos.

Ana Paula Perrota é professora do PPGCS – UFRRJ (Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ) e coordenadora do SOMAH (Núcleo de Pesquisa em Socialidades mais que Humanas). Tem experiência na área de sociologia e antropologia, atuando como pesquisador nos seguintes temas: relações humano e animal, sociologia e antropologia econômica, sociologia e antropologia da moral.