Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 11 ago 2023
No mês de comemoração do orgulho LGBT+ de 2023, André Valadão, pastor brasileiro residente em Orlando, deflagrou uma campanha de pregações e postagens nas redes sociais, mobilizando as hashtags #orgulhonao, #nopride, para dizer que Deus odeia o orgulho, que homossexualidade é pecado e que aqueles que a praticam não herdarão o reino dos céus. Sua ofensiva culminou na sustentação de que Deus, em função da aliança feita após o dilúvio, já não poderia recomeçar a humanidade, tendo deixado “o trabalho sujo para nós”. A tarefa de “puxar as cordas” e “resetar” caberia aos fiéis. As frases que insinuavam a morte de homossexuais foram proferidas pouco mais de 50 anos depois da rebelião de Stonewall, nome de um bar de Nova Iorque que, em 1969, viu surgir a resistência da comunidade dissidente frente à truculência dos agentes policiais durante uma batida. O episódio foi tomado como referência para a celebração do orgulho no mês de junho.
Foi nesse mesmo país, que conclama a todo o tempo a liberdade de expressão, que, em 1978, Jim Jones, fundador da seita Templo dos Povos, provocou a morte de quase mil pessoas por ingestão de veneno. Em 1993, David Koresh, líder do Ramo Davidiano, incitou fiéis ao armamento que, mediante investigação, culminou em um conflito de mais de 50 dias, levando à morte de quase uma centena de pessoas. Em 1997, a crença de que Deus era uma espécie de ser extraterrestre e que o arrebatamento seria uma ida ao espaço fez Marshall Applewhite ser encontrado morto com outras 38 pessoas, com sacos plásticos na cabeça. Nos dias de hoje, é também nos EUA que prolifera a adesão aos templos satânicos, cujos membros, de modo geral, se opõem à comunidade protestante, se alinham politicamente à esquerda e defendem pautas LGBT, acesso ao aborto e educação laica.
André Valadão, por sua vez, que talvez se dilua entre muitas outras figuras do solo americano, não é pessoa emigrada sem expressão. Seu Instagram conta com mais de cinco milhões de seguidores, sendo 200 mil chegados a partir do momento em que teve os discursos acima veiculados em diversas mídias. Valadão afirmou haver uma agenda do inferno, impetrada pelo movimento LGBT, que questionaria a identidade de gênero de crianças, estimulando-as à prática sexual antecipada. Além de falas preconceituosas e transfóbicas (“transformados, ela é o cara”) e de satirizar a palavra todes, seus discursos reiteravam o binarismo de gênero, reforçando os papéis dos homens como autoridade e das mulheres como auxiliadoras.
André Valadão é o atual líder da Lagoinha Global, nome adotado no lugar de Igreja Batista da Lagoinha, cuja matriz está situada em Belo Horizonte, mas que reúne mais de 700 filiais espalhadas pelo Brasil e exterior. Lagoinha também foi o celeiro do grupo Diante do Trono, que revolucionou a música gospel nacional, assinando contrato com a Som Livre, parceria que levou a criadora e vocalista da banda – Ana Paula Valadão, irmã de André – a programas de grande visibilidade na Rede Globo. A Igreja é amplamente conhecida ainda pela promoção de cultos e congressos voltados ao disciplinamento dos corpos femininos, como na gestão da aparência e do cuidado das mulheres. São ensinamentos que operam na mesma lógica paradoxal/ambivalente, registrada pela literatura acadêmica a respeito das igrejas pentecostais – a de promover a autonomização das mulheres e oferecer respostas aos seus sofrimentos ao mesmo tempo em que repõe a autoridade patriarcal.
Lagoinha também abrigou o Movimento Cores, criado em 2014, em uma das regionais de Belo Horizonte, para atender ao público LGBT que ansiava por viver a fé cristã em um espaço não necessariamente inclusivo. O projeto era coordenado pela missionária Priscila Coelho, que admitiu que em seu grupo havia tanto os celibatários quanto os que viviam a homossexualidade sem condená-la. Após as pregações de André Valadão, ela se desligou da Igreja e fundou aComunidade da gente. A relação com o Cores traz uma mudança importante no ordenamento da Lagoinha, que vivia o que Luís Fernandes chamou de “homofobia cordial”, isto é, pregava contra qualquer expressão de gênero ou sexualidade fora do eixo cis-hetero, mas aceitava pessoas com essa trajetória biográfica em cargos de liderança. Agora, há uma homofobia declarada, revestida da linguagem do amor (“amamos o pecador, mas não o pecado”).
Uma explicação que vem sendo acionada há muito tempo para a compreensão do ativismo conservador é a noção de Teologia do Domínio (TD). Escrevo sobre ela desde 2013, quando morei nos EUA e pude perceber uma relação entre Lagoinha e a Nova Reforma Apostólica, nome esse dado por Peter Wagner, um dos articulistas principais da perspectiva e a quem entrevistei na ocasião. Na mesma época, assisti ao filme God loves Uganda e pude começar a entender o papel dos missionários estadunidenses na conformação de valores do país que, em maio de 2023, teve promulgada lei de prisão perpétua e pena de morte a determinadas práticas envolvendo homossexualidade. A TD é uma explicação teórica sobre ser a vontade de Deus que os fiéis passem a “dominar” a sociedade na qual vivem, pois isso promoveria paz, justiça, saúde, alegria, harmonia, liberdade e prosperidade a todos os demais. Para isso, seria necessário que pessoas que carregam um alto padrão de moralidade bíblica ocupassem as principais posições de autoridade em termos de governança pública, artes, mídia, entretenimento, negócios, educação e família – os “sete montes” da sociedade.
Mas a TD não é o fim para o qual devemos olhar. Ela é o meio. É a engrenagem cognitiva por meio da qual se justifica os ensejos de cristianização/moralização da sociedade. É importante lembrar que André Valadão se insere em uma linha de acontecimentos muito mais extensa. Só para citar alguns exemplos da política formal, de 2009 a 2019, evangélicos confrontaram o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e fizeram pressão para que o projeto Escola sem homofobia fosse suspenso. O pastor Marco Feliciano presidiu a Comissão de Direitos Humanos e Minorais; houve tramitação do Estatuto da Família e discussão do projeto Escola sem Partido. No governo Bolsonaro (para o qual os Valadão fizeram campanha, inclusive dentro das igrejas, em 2022), Damares Alves, que já teve franca atuação na Lagoinha, assumiu o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
O ativismo conservador evangélico, portanto, vem de longa data e o alvo preferencial é a população LGBT+. Estamos diante de mais um capítulo de combate à suposta ideologia de gênero, pavimentado por políticos e líderes cristãos, que vem sendo atualizado via pastores-influenciadores. Mas, há mais do que isso. Confronta-se, rejeita-se, desqualifica-se, desumaniza-se e demoniza-se é a diversidade e as possibilidades de vivências não cristãs. E quando há o apagamento da história e dos direitos de certos grupos, não é incomum que adiante se queira bani-los. É a partir desse pano de fundo que André Valadão instrumentalizou as redes sociais para obtenção de visibilidade pessoal, mas também para disputar narrativas políticas e semânticas, estendendo a moral conservadora.
Recrudescendo as divisões internas do meio evangélico (no mínimo cindido entre conservadores e progressistas), isso pode implicar, sob a égide da liberdade, no aumento da intolerância em nome da religião, o que coloca evangélicos em protagonismo na manutenção da cara polarização social.
Nina Rosas é professora de Sociologia da UFMG, onde coordena o Programa de Pós-graduação em Sociologia. É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e tem se voltado ao estudo de evangélicos, gênero, saúde e política.
Saiba mais:
PETERSEN, Luciana e PACHECO, Ronilso. Você precisa conhecer a família Valadão, clã que por trás da Igreja Lagoinha, Intercept Brasil, 2023.