"Ai daquele por quem vier o Escândalo": os pecados do MEC e a Queda de Milton Ribeiro
Por João Luiz Moura e Fellipe dos Anjos
31 mar 2022
9 min de leitura
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“Desde Constantino, a história da política é essencialmente a história do cinismo político cristianizado que, depois dessa mudança de lado epocal, não cessou de dominar e atormentar a reflexão política como ideologia esquizóide dos senhores”
– Peter Sloterdijk
A presença de evangélicos na política institucional não constitui fenômeno recente, inovador, nem tão pouco pode ser compreendida como sendo integrada e/ou coesa. Após 21 anos de ditadura civil-militar, desde o final dos anos 80, período conhecido como “abertura democrática”, os evangélicos — em especial pentecostais e neopentecostais — ingressaram com mais força e notoriedade na política institucional. Inclusive, foi nos governos do Partido dos Trabalhadores que os evangélicos tiveram mais acesso às concessões de rádio e TV e, com isso, lograram êxito em ocupar os espaços públicos e em fazer circular um conjunto significativo de discursos, afetos e imaginários fundados na ideia transversal de que o Brasil, a Nação, seria salva, moralizada e próspera sob o domínio ou governo do “Senhor Jesus”, claro, por meio da representatividade da fé evangélica brasileira.
Com efeito, o que há de novo no contexto contemporâneo é o ativismo neoconservador de grupos de diferentes denominações e igrejas pentecostais, neopentecostais e, desta vez, históricas, numa mesma montagem político-religiosa que tem sido nomeada pelo professor e pesquisador Ronaldo de Almeida de direita religiosa. Adiciona-se à esta montagem, ainda, uma relação nunca antes experimentada entre fundamentalistas evangélicos e outras identidades religiosas tais como catolicismo, judaísmo e espíritismo, num tipo raro de ecumenismo de direita no Brasil.
Uma das características desta montagem da direita religiosa é o seu funcionamento na lógica de Think Tank, à semelhança de outras estruturas ideológicas ligadas à racionalidade do neoliberalismo mundial. Este modelo de operação, aliado às recentes revoluções midiáticas, oferecem as melhores condições materiais e simbólicas para a emergência desta nova modalidade de ativismo neoconservador. Por ativismos compreendemos aqueles engajamentos religiosos com tecnologias novas e diversas — fluidas, horizontais, ágeis e descentralizadas — que trabalham no nível ideológico construindo subjetividades e relações sociais, perpassando tanto o Estado, naquele núcleo pelo qual é tradicional e juridicamente identificado, chegando finalmente em regiões do plano político não imediatamente estatais: igrejas, escolas, cursos, seminários, faculdades, pequenos grupos de leitura bíblica, células e até grandes festivais de louvor e adoração que relacionam o governo Bolsonaro a uma espécie de avivamento espiritual no Brasil.
O engajamento que outrora estava restrito às negociações diretas entre atores políticos e lideranças religiosas, se torna matéria, pauta, motivo de disputa no interior das relações mais cotidianas da vida religiosa (ex: reuniões de famílias, liturgias e pregações em igrejas, associações privadas para sociabilidade religiosa, clínicas de saúde mental promovidas por teólogos e pastores, circuitos de formação de uma certa moral sexual etc) e cria uma massa-multidão disposta a se engajar na política institucional e nos rumos do Estado brasileiro. Por isso, para a manutenção deste funcionamento orgânico com impactos nas dinâmicas institucionais, a necessidade de atuar diretamente na Educação, na formação ideológica de novos ativistas. O auge do funcionamento daquilo que o filósofo francês Louis Althusser chamou de Aparelhos Ideológicos de Estado.
Neste cenário, onde esse ativismoneoconservador evangélico compreende o governo Bolsonaro e o conjunto das políticas de Estado como oportunidades missionárias de realizar uma “Revolução na Educação“, ou, em outras palavras, como uma vocação messiânica, pastoral e expiatória investida pelo próprio Deus, para “libertar a educação da intervenção das frações da esquerda autoritária”, “reinserindo Escola e Universidade pública em seu leito tradicional e conservador”, instituindo um “Ensino Moral como conteúdo transversal em todas as disciplinas para difundir os mais elevados e profundos princípios e valores da Civilização” e “reforçar as pautas tradicionais da preservação dos valores cristãos e de defesa da família”, é que devemos compreender a presença e participação de um pastor presbiteriano como ministro da Educação e o impacto dos escândalos recentes envolvendo a sua queda.
Convém lembrar quem é Milton Ribeiro. Pastor na Igreja Presbiteriana Jardim de Oração de Santos, no litoral de São Paulo, teólogo e advogado, mestre em Direito e doutor em Educação, o Rev. Ribeiro foi o quarto ministro da Educação do governo Jair Bolsonaro. Ele construiu uma carreira relacionando religião, teologia e pedagogia, tendo defendido, na USP, uma tese sobre “Calvinismo no Brasil e Organização: o poder estruturador da educação”. Antes de constar na folha de pagamento do governo, Milton Ribeiro foi reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Vale tomar nota de que boa parte dos ativistas neoconservadores evangélicos tiveram formação ou são docentes/pesquisadores nessa universidade, que tem fornecido quadros técnicos e ideológicos ao neoconservadorismo evangélico brasileiro.
O projeto neoconservador, porém, não pode ficar sem um funcionário. Afinal, a máquina sacrificial da “revolução conservadora”, aquela mesma da máquina de ressonância evangélica-capitalista, não pode ser desligada. Centrão e Bancada Evangélica seguem em guerra santa para ver qual dos dois destacamentos conseguirá consagrar um dos seus representantes à missão burocrática de “libertar o Brasil” por meio do governo pastoral de Bolsonaro.
Enquanto isso, como pesquisadoras e pesquisadores destes processos que envolvem religião e política no Brasil, temos que nos responsabilizar, em posição de atenção pluralista e democrática, pelas questões estruturais que restam destes eventos. A partir das teses de Talal Asad, por exemplo, pode-se configurar um jogo muito bem executado pelo protestantismo fundamentalista brasileiro, em especial pelos históricos: ao mesmo tempo que afirmam retoricamente um compromisso com a modernidade, a secularização e a laicidade do Estado, negam-as, bem como suas implicações éticas e políticas, em suas práticas e relações de poder mais cotidianas.As posições públicas do Ministro do STF, o pastor também presbiteriano André Mendonça, são evidências perturbadoras deste movimento.
No Brasil, assim como em territórios marcados por uma racionalidade neoliberal e neocolonial, muitas vezes e paradoxalmente, a defesa retórica da laicidade por parte de evangélicos pode se configurar como uma defesa do seu radical oposto, como uma defesa dissimulada do Cristianismo. É, inclusive, para reconstruir estratégias de defesa da supremacia política do Cristianismo que setores fundamentalistas fazem defesa retórica dos “princípios e valores da Civilização ocidental secular e moderna“.
É justamente por pressupor e confiar numa relação de afinidade radical entre modernidade secular e Cristianismo supremacistas que estes agentes chegam a acreditar que ao defender a laicidade estão indiretamente protegendo os “valores judaico-cristãos da família e da sociedade brasileira”. Portanto, acreditar [ingenuamente?] que estes sujeitos estariam comprometidos com uma laicidade real é, no fundo, fazer uma aposta de fé na fé dos neoconservadores cristãos ou, em outras palavras, fazer uma aposta de fé no cinismo moderno, racial, colonial e neoliberal do protestantismo branco brasileiro.
MOURA, João Luiz; ANJOS, Fellipe dos. ""Ai daquele por quem vier o Escândalo": os pecados do MEC e a Queda de Milton Ribeiro". Disponível em: . Acesso em: .