Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 06 set 2023

Todos os projetos de lei monitorados podem ser encontrados aqui.

Crimes, segurança pública e acesso às armas estão no conjunto das temáticas que tangenciam valores, comunidades ou atores religiosos. Por isso são objeto do monitoramento de Projetos de Lei realizado pelo ISER.

Desde janeiro de 2023, a atividade legislativa no âmbito federal tem evidenciado uma acirrada disputa entre o novo governo e a chamada “bancada da bala” em torno da regulamentação das armas de fogo.

De um lado dessa disputa, o governo atual vem buscando, por meio de decretos, reverter os efeitos da política de desregulamentação das armas de fogo conduzida pelo governo anterior, também por meio de decretos.

Do outro lado, parlamentares que defendem o armamento da população civil têm protocolado sucessivos Projetos de Decreto Legislativo e de Lei, a fim de sustar os novos decretos do poder executivo, facilitar ainda mais a aquisição de armas de fogo, ampliar as categorias com autorização de porte e demais medidas visando à desregulamentação desse mercado.

O monitoramento do Congresso Nacional 1, realizado pelo Iser, permite identificar que, dos 157 projetos legislativos protocolados de janeiro a julho de 2023, com a temática “Crime e Segurança Pública”, cerca de um terço (53) tem como objeto a regulamentação das armas letais e não-letais, munições e acessórios. A maioria deles (36) visa à desregulamentação das armas de fogo, apenas seis visavam a um controle maior sobre as armas e os demais onze projetos dispõem sobre temas que, embora não possam ser taxados como “desregulamentação”, são claramente favoráveis ao armamento da população civil. O pertencimento religioso dos deputados proponentes desses projetos pode ser consultado no gráfico abaixo:

projetos de lei protocolados no congresso sobre violência e segurança pública

Dentre estes últimos, propostas para impedir a destruição de armas apreendidas, acautelar armas do Estado com policiais aposentados, armar as guardas municipais e, principalmente, colocar vigilantes armados e detectores de metais em escolas. Dos 47 projetos pró-armas, 39 foram propostos por parlamentares de direita, sete por autores de centro e apenas um de esquerda.

A questão da segurança nas escolas foi um tema de destaque não apenas entre os projetos relacionados às armas, mas também por meio de diversos PLs visando ao aumento de pena para crimes cometidos em escolas.

De maneira geral, observa-se que o aumento da frequência de ataques ocorridos em escolas no Brasil, à semelhança dos que ocorrem nos Estados Unidos, tornaram-se matéria de grande interesse para a atividade legislativa do Congresso Nacional, principalmente de parlamentares de direita, que defendem o endurecimento penal e o armamento da população civil.

No entanto, esses PLs parecem ignorar completamente que o aumento observado se deve justamente à maior disponibilidade de armas de fogo para a prática de crimes, causada pela desregulamentação desse mercado durante o governo Bolsonaro. Detectores de metal e vigilantes armados em escolas não vão resolver o fato de que a população civil está armada como jamais visto no Brasil.

Segundo dados oficiais organizados pelo Instituto Sou da Paz e o Instituto Igarapé, de 2019 a 2022, foram adquiridas quase 1.4 milhão de armas para defesa pessoal ou para Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC), elevando o acervo particular de armas no Brasil para quase três milhões de unidades.

Não resta dúvida que Jair Bolsonaro cumpriu sua promessa de “Reformular o Estatuto do Desarmamento para garantir o direito do cidadão à LEGÍTIMA DEFESA sua, de seus familiares, de sua propriedade e a de terceiros!”, como constava em seu plano de governo nas eleições de 2018. Desde o princípio de seu mandato, o ex-presidente emitiu uma série de decretos visando a flexibilizar as regras para a compra, venda, posse e porte de armas de fogo.

A fim de conter o armamento da população civil, um dos primeiros atos do Presidente Lula na ocasião de sua posse, em 1º de janeiro de 2023, foi assinar o Decreto n. 11.366, sustando os efeitos dos decretos de seu antecessor e enrijecendo os controles sobre as armas de fogo, munições e acessórios. Foram suspensas a concessão de novos registros de clubes e de escolas de tiro, de novos registros de CAC, dos registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito por CACs, dentre outras providências.

O Decreto n. 11.366 foi atacado por nove Projetos de Decreto Legislativo visando a sustar seus efeitos. No entanto, ele já perdeu a validade e não foi por decreto legislativo, mas pela publicação de outro decreto da Presidência da República, cuja redação o substitui.

O Decreto n. 11.615, de 21 de julho de 2023, deu início a mais um episódio da disputa em torno da regulamentação da compra, venda, registro, cadastro, posse e porte de armas de fogo, munições e assessórios. O referido decreto transferiu para a Polícia Federal a competência de regulamentar e fiscalizar as armas em posse de “civis”, incluindo o registro de armas de fogo para CAC, cuja competência até então era do Comando do Exército.

Dentre uma série de outras alterações, foram modificadas também as regulamentações da atividade dos CACs, a classificação de armas de uso restrito e permitido, o prazo de validade dos registros de arma de fogo e as regras para a concessão deles. Da data de sua publicação, 21 de julho, até o final do mesmo mês, quatro Projetos de Decreto Legislativo para sustar os efeitos deste decreto já haviam sido protocolados no Congresso Nacional. E a batalha em torno da regulamentação das armas segue acirrada.

Os defensores da desregulamentação das armas fundamentam-se na premissa de que armar os “cidadãos de bem” faria a ocorrência de crimes diminuir, tese que encontra bastante respaldo na opinião dos eleitores, apesar de contrariar o conhecimento científico acumulado sobre o tema.

Um estudo do Ipea, realizado por Daniel Cerqueira e João Manuel de Mello, demonstrou que se o Estatuto do Desarmamento não tivesse sido aprovado, as taxas de homicídio entre os anos de 2004 e 2007 teriam aumentado 12% a mais do que a taxa observada. Isso porque a cada 1% a mais de armas de fogo em circulação há um aumento de 2% na taxa de homicídio. E essa correlação não é exclusiva do Brasil: em ampla revisão bibliográfica internacional, Thomas Conti revela que a esmagadora maioria das pesquisas sobre a relação entre armas, crimes e violência apontam para a tendência de aumento dos homicídios conforme é maior a disponibilidade de armas de fogo.

Não é preciso ser um especialista no tema para compreender que a desregulamentação da compra, venda, posse e porte de armas de fogo facilita o acesso a elas para a prática de crimes violentos, contribuindo para aumentar desde os casos de feminicídio até o poderio bélico de organizações criminais.

Tampouco é necessário um grande exercício de imaginação para vislumbrar a insegurança de viver numa sociedade em que a maioria da população anda armada. Resta, contudo, entender como pode uma parcela tão grande da população e tantos representantes eleitos continuarem a sustentar posturas negacionistas que insistem no armamento da população civil como medida para a redução da criminalidade.

Carolina C. Grillo é professora do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF (Universidade Federal Fluminense) e coordenadora do GENI (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos).

Saiba mais:

Cerqueira, D.R. e De Mello, J.M. (2012) Menos armas, Menos Crimes. Brasília: IPEA. Disponível aqui.

Conti, T.V. (2017). Dossiê Armas, Crimes e Violência: o que nos dizem 61 pesquisas recentes (blog). Disponível aqui.