O estado do Rio de Janeiro é notório por abrigar uma das polícias mais violentas e letais de todo o mundo. Herdeiro da brutalidade colonial e do patrimonialismo parasitário de elites aristocráticas, o Rio de Janeiro é, também, um território de profundas contradições sociais historicamente enfrentadas pelo poder público sob o signo da força.
De uma perspectiva mais contemporânea, o período da ditadura militar acrescenta ainda outra camada a esse mosaico de violência estatal. Nesse tempo, quando a botina dos generais ditava o ritmo da sociedade civil, proliferavam grupos paramilitares dedicados ao extermínio de ladrões, viciados, prostitutas, mendigos e toda a sorte de negros e pobres dos subúrbios cariocas e, sobretudo, da Baixada Fluminense. Compostos quase que exclusivamente por agentes de Estado, em especial policiais, os grupos de extermínio atuavam como força complementar da segurança pública no Rio de Janeiro, amplificando, por assim dizer, o alcance letal do regime autoritário – agora encarnado em cada “guarda de esquina” do país.
De forma geral, a transição para a democracia não logrou levar aos pobres, no campo da segurança, da justiça e da economia, as mudanças de status que, no âmbito político, já começavam a se afirmar. Nesse sentido, a despeito dos “movimentos pendulares” que, na definição de Luiz Eduardo Soares, identificam a oscilação entre políticas de segurança cidadã e políticas autoritárias de segurança, a Polícia do Rio de Janeiro manteve de forma bastante coesa a diretriz política que lhe confere “permissão para matar”, fazendo desta a base do seu modus operandi até o tempo presente.
Com a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República, em 2018 – e na esteira do seu projeto político autoritário um sem-número de deputados, prefeitos e governadores alinhados ideologicamente às suas ideias – o Rio de Janeiro adentrou a uma de suas mais trágicas jornadas de brutalidade e letalidade policial.
A pulverização do projeto das UPPs, a falência fiscal do Estado, bem como o desmantelamento da Secretaria de Segurança Pública – implicando na quase total autonomia das forças policiais – transformaram o Rio de Janeiro em uma zona de exceção onde a morte era estimulada e celebrada pelos altos escalões do governo.
À luz desse quadro, não surpreende que, em 2019, chegamos à cifra recorde de 1.814 homicídios de autoria policial, a maior marca de assassinatos em nome da lei desde que estatísticas desse tipo começaram a ser registradas em meados dos anos 90. Evidentemente, não estão computados nesses números as centenas de mortes “acidentais” de crianças, idosos e moradores das favelas em geral, cujas vidas são tomadas como meros danos colaterais da política de enfrentamento à criminalidade.
Nos primeiros meses de 2020, quando os índices de letalidade policial se refletiram no trimestre mais violento da história, o mundo foi assolado pela pandemia de covid-19, cujos efeitos se mostraram catastróficos no Brasil e nas favelas do Rio de Janeiro em especial – impondo a esses territórios duas crises mortais: a sanitária e a policial. Foi nesse contexto que uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), protocolada no STF em 2019, com fito de restringir a letalidade policial nas favelas, foi aceita em caráter liminar pelo ministro Edson Fachin em abril de 2020 e, posteriormente, confirmada pelo plenário da Corte em agosto daquele mesmo ano.
Durante os primeiros meses de vigência, quando as determinações do STF vinham sendo relativamente cumpridas pela Polícia, implicando numa sensível diminuição das operações, dois efeitos imediatos foram sentidos pela população do Rio de Janeiro, conforme demonstra uma pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), apensada à ADPF 635.
Em primeiro lugar, a maior redução na taxa de letalidade policial dos últimos 15 anos, registrando uma queda de 34% das mortes; em segundo, porém não menos importante, uma intrigante diminuição também das taxas de homicídios, furtos, roubos e latrocínios. Sobre esse último dado, é importante ressaltar que por décadas a fio o controle democrático das forças de segurança foi duramente combatido por autoridades políticas e policiais sob o argumento de que este enfraqueceria o trabalho da Polícia e favoreceria o aumento da criminalidade. Propunha-se, dessa maneira, uma falsa oposição entre respeito aos direitos humanos e segurança pública, uma proposição que, como foi possível comprovar, é empiricamente falsa.
Embora a ADPF 635 tenha se notorizado pela restrição às operações policiais nas favelas, esta demanda tinha caráter excepcional e constituía apenas uma entre as tantas solicitações constantes da referida ação. Dentre esses pedidos, de caráter mais estrutural e permanente, constava um plano de redução da letalidade policial e, a ele articulado, uma série de protocolos de ação visando minimizar o caráter letal das operações policiais e conter abusos por parte dos agentes de segurança.
Esse conjunto de medidas foi objeto de um novo julgamento, cujo termo final se deu em fevereiro de 2022, após mais uma vez ser apreciado pelo pleno do STF. O julgamento da ADPF 635 também marcou a estreia do novo ministro da Corte André Mendonça. Este foi indicado pelo presidente, conforme declarado pelo próprio, para encarnar uma faceta “terrivelmente evangélica” no STF. É importante enfatizar que o Rio de Janeiro é um dos grandes bastiões evangélicos do país e que uma parte expressiva desse contingente reside justamente nas áreas diretamente afetadas pela ADPF 635, o que torna interessante seu voto.
O primeiro ponto importante a ser destacado se refere às noções gerais cultivadas por André Mendonça sobre o que vem a ser uma política de segurança pública. Na abertura de sua divergência com o ministro Edson Fachin, relator da ação, Mendonça alega que “não se pode tentar resolver a crise de segurança pública impedindo a segurança pública de atuar”. Aqui vemos a clássica percepção que opõe segurança pública e direitos humanos, vinculando o controle democrático da atividade policial a um prejuízo na garantia e promoção da segurança.
É curioso notar como, já de início, o ministro André Mendonça constrói como o alicerce de seu voto uma percepção do senso comum, negando as evidências científicas baseadas em pesquisas que apontavam uma sensível diminuição dos índices de criminalidade durante os primeiros meses da ADPF 635. Mendonça também parece encampar outro discurso problemático, igualmente senso comum – e no limite político – de que a brutalidade policial no Rio de Janeiro consiste em um conjunto de casos isolados, centrados na persona do policial, e não um grave problema estrutural que não só inclui as corporações policiais, mas toda a arquitetura do Estado. Nas palavras do ministro: “a grande preocupação que eu tenho é que essas medidas não impeçam a atuação indevida dos maus policiais e tornam excessivamente limitadora a atuação do bom policial”.
Tanto em sua sustentação oral quanto no voto por escrito, é notável como André Mendonça aos poucos vai suprimindo o tema central da ADPF 635 – a barbárie policial nas favelas – por uma perspectiva centrada no policial, mais especificamente, na sua segurança: “lembrando que o policial, quando sai para fazer uma operação, ele está pondo, antes de tudo, a sua vida em risco. E, além da sua vida, conforme as circunstâncias, em se verificando equívocos, o seu próprio emprego e cargo em risco“. Note-se que, neste ponto, uma das maiores taxas de letalidade policial do mundo se converte em simples “equívocos” que, não obstante, podem oferecer riscos ao cargo do agente de segurança.
Além dos policiais, o ministro Mendonça também aponta outras vítimas que sofrem com os efeitos da violência urbana: “o que todos nós queremos é uma polícia efetiva, que garanta a todos essa segurança, mas, hoje, infelizmente uma pessoa da zona sul do Rio de Janeiro não pode entrar, com o mínimo de tranquilidade, em uma comunidade na mesma cidade”. Com pinceladas de universalismo, André Mendonça cuidadosamente reconstrói o problema da letalidade policial contra moradores de favela realocando o tema em uma chave analítica na qual estes simplesmente desaparecem. Assim, seu voto reitera uma percepção que dilui o favelado como parte do problema da criminalidade – cujas vítimas reais são os bons moradores da zona sul e os próprios policiais.
Embora Mendonça não tenha se oposto em grande medida à ADPF 635 como um todo, sua retórica ajuda a compreender as divergências que lançou contra alguns pontos importantes da ação, em especial aqueles mais substantivos e cujos impactos poderiam ser sentidos já de imediato, como, por exemplo, a instalação de GPS e a obrigatoriedade do uso de câmeras em viaturas e fardas policiais. Nesse quesito, apenas os novatos indicados por Bolsonaro se posicionaram contrariamente, com argumentos semelhantes, mais especificamente, de que já existiria legislação estadual prevendo a matéria.
Aqui, no entanto, enquanto Nunes Marques se limitou a afirmar que caberia ao Executivo estadual tomar as medidas cabíveis para satisfação da lei, André Mendonça alega “não haver margem para que o poder judiciário atue, ante a ausência de omissão estatal (…) sob pena de submeter o legislador e o administrador a um patamar de perfeccionismo inalcançável e perigosamente apartado do princípio democrático. O que o poder judiciário deve aferir é se existe a progressiva e efetiva marcha para a consecução do programa constitucional”.
Em outras palavras, o ministro André Mendonça não enxerga omissão estatal em uma lei promulgada em 2009 e que, até fevereiro de 2022, nunca havia sido colocada em prática. Mais uma vez, sua atenção se desloca do tema central da ação, a vida dos moradores de favelas, para se solidarizar com o “legislador e o administrador” que, eventualmente, poderiam se sentir pressionados por “um patamar de perfeccionismo inalcançável”.
André Mendonça alçou seu voo para o Supremo Tribunal Federal sob a propaganda presidencial de que seria um ministro “terrivelmente evangélico”, pesando sobre ele o espectro do religioso em detrimento do jurídico. Pelas indicações aferidas no seu voto aqui analisado, é possível inferir que seus valores correm mais no sentido do “terrivelmente autoritário” e “terrivelmente elitista” que propriamente no plano do “religioso” – como já ficara patente quando de sua atuação como Ministro da Justiça e Advogado Geral da União, marcada pelo uso excessivo da Lei de Segurança Nacional, dos tempos da ditadura.
É por essa razão que tanto Mendonça quanto Nunes Marques divergiram, de modo geral, do restante do Colegiado, tendo sido os únicos que indeferiram pedidos amplamente concedidos pela maioria do Plenário – como no caso das câmeras. Se é possível afirmar algum caráter “terrivelmente evangélico” no ministro novato, ele não é nada senão a ideia de conversão de uma religião popular, com grande capilaridade entre as camadas mais humildes da sociedade, em células de intolerância à serviço das elites que ele e seu governam representam. Nesse sentido, o verniz religioso com o qual a nomeação de André Mendonça foi ungida deve ser analisado com cuidado, na medida em que ele representa um conjunto de valores e ideologias autoritárias, que desde sempre servem aos mais ricos como importantes instrumentos de controle social e direcionamento político, não raro distorcendo e remodelando os princípios do mundo da fé para a consecução dos objetivos mais torpes e mundanos.
Diogo Lyra é doutor em sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, GENI-UFF.
Foto: Alan Santos/PR