Saiba mais sobre como os muçulmanos, de diferentes vertentes, atuam politicamente no Brasil

Durante a sessão da Câmara dos Deputados no dia 09 de abril de 2021, o deputado federal Alexandre Padilha (PT/SP) leu o Manifesto de Muçulmanas e Muçulmanos em Defesa da Vida. Segundo o parlamentar,  o manifesto escrito pelos Comitês Islâmicos de Solidariedade (CIS), entidade política organizada por membros da comunidade islâmica do Brasil, era “um documento histórico”. 

Com cerca de 675 assinaturas, os signatários reivindicaram o impeachment do Presidente da República Jair Bolsonaro e a investigação, por parte do Tribunal Penal Internacional, dos supostos crimes contra a humanidade cometidos por ele. O coletivo responsabilizou Bolsonaro pela disseminação da COVID-19 no Brasil e pela “morte e derrocada econômica” do país. Os religiosos também defenderam a manutenção do auxílio emergencial e o auxílio às micro e pequenas empresas, além de exigirem o acesso à vacina pelo Sistema Unificado de Saúde (SUS). 

Nas mídias sociais, o abaixo assinado gerou ampla repercussão, angariando críticas e elogios de islâmicos do Brasil e de outros setores da sociedade civil.  No entanto, o manifesto também chamou atenção pela baixa ocorrência de nomes e sobrenomes árabes entre os assinantes. Os nomes no documento indicavam que a maioria dos signatários eram brasileiros convertidos ao islã. De acordo com Hajj Mangolin, coordenador nacional do CIS, em entrevista exclusiva para este artigo, a iniciativa foi capitaneada, sobretudo, por brasileiros e brasileiras muçulmanos: “É um manifesto de brasileiros em defesa do povo brasileiro” – completou.

A presença de brasileiros no documento não é um mero detalhe, mas um elemento significativo para compreensão aprofundada da situação e das articulações políticas da comunidade muçulmana no Brasil. Vale lembrar que a maioria dos praticantes do islamismo no país é composta de imigrantes árabes e seus descendentes (sírios, libaneses e palestinos etc). 

Comitês Islâmicos de Solidariedade (CIS)

O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) foi aberto em 2 de dezembro de 2015 pelo então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (MDB). As acusações contra a ex-presidente versavam sobre o descumprimento da Lei Orçamentária e da Lei de Improbidade Administrativa, além de atribuírem a ela suspeitas de participação em práticas de corrupção na Petrobras. Os juristas que se opuseram à denúncia contra Dilma defenderam que as chamadas “pedaladas fiscais” não qualificavam crime, além de alegarem não existir provas que comprovassem o envolvimento da presidente em casos de corrupção e justificassem o impedimento de seu mandato. 

Naquela época, as comunidades muçulmanas e as mídias sociais se voltaram para as discussões sobre a legalidade do impeachment de Dilma Rousseff. A partir desse movimento, um grupo de muçulmanos percebeu a necessidade de construir uma articulação política contra o golpe de Estado que se avizinhava. 

Em março de 2016, parte desses muçulmanos, que logo depois formaram um coletivo, criaram o manifesto “Muçulmanos e Muçulmanas Contra o Golpe”. O documento gerou controvérsias dentro da comunidade islâmica brasileira e algumas lideranças religiosas e nacionais islâmicas, constituídas majoritariamente por árabes e seus descendentes, pressionaram o grupo alegando que eles não poderiam falar em nome de todos os muçulmanos. 

Após a eleição de Bolsonaro, os muçulmanos antibolsonaristas, em conjunto com outros grupos islâmicos com agendas políticas similares, se mobilizaram para criar os Comitês Islâmicos de Solidariedade (CIS). A criação do CIS possibilitou que muçulmanos progressistas de diversos lugares do país tivessem um espaço de expressão política dentro da própria comunidade.  

Segundo Hajj Mangolin, a dinâmica dos comitês é semelhante às Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. Dedicada à organização da Ummah (comunidade global muçulmana), o CIS se propõe, em ações de cooperação mútua, a ser um organismo com foco fundamental nos povos oprimidos, nos pobres e em todas as pessoas em condição de vulnerabilidade social. Atualmente, os Comitês encontram-se na maioria dos estados brasileiros. A entidade também participa de atos interreligiosos com evangélicos, candomblecistas, católicos e espíritas ligados ao campo progressista no país. 

O acirramento da polarização política brasileira realçou as diferenças internas no campo islâmico entre árabes e brasileiros convertidos. As divergências entre árabes e não árabes no Brasil têm sido, em grande parte, geradas por suas diferenças étnicas e culturais. Ainda que o islã não seja concebido como uma religião étnica vinculada estritamente aos árabes, muçulmanos brasileiros convertidos fazem críticas às vantagens que os islâmicos de procedência árabe (os chamados “nascidos muçulmanos”) têm nos cargos de diretoria das mesquitas e entidades islâmicas e às formas com que as regras são designadas na comunidade.

Além disso, alguns convertidos tecem críticas às condutas políticas de muçulmanos nascidos em famílias árabes que, na maioria das vezes, “estão alheios e apartados da realidade social brasileira”, como aponta Jerusa Hawass, integrante da coordenação nacional dos Comitês Islâmicos de Solidariedade, também em entrevista exclusiva. A prova disso é que, recentemente, o CIS publicou, em sua página no Facebook, uma nota de solidariedade repudiando a prisão de Paulo Galo, ativista detido sob acusação de ter ateado fogo em estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo. A nota também se colocou contra “os interesses escusos do sistema econômico neoliberal” que atingem as camadas mais pobres da sociedade brasileira. Para muitos brasileiros islâmicos convertidos, a manutenção do apoio ao governo Bolsonaro por parte de setores muçulmanos está no capital econômico que alguns destes religiosos detêm. 

Um exemplo disto é que, nas eleições de 2018, alguns dos líderes mais importantes da sociedade islâmica de São Paulo declararam apoio à campanha presidencial de Jair Bolsonaro. Um dos maiores empresários do país, presidente das Lojas Marabraz, e, na época, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana (SBM), fez campanha pró-Bolsonaro nas mídias sociais. Nasser Fares, filho do fundador Abdul Mohamed Fares (1930-1978), distribuiu camisetas para cerca de 130 funcionários, perguntou em quem seus empregados votariam e, em seguida, gritou frases da campanha do capitão da reserva. O episódio ocorreu na mesma semana em que outro empresário varejista, o dono da Havan Luciano Hang, também pressionou funcionários para apoiar Bolsonaro

Associação Nacional de Juristas Islâmicos (ANAJI)

Outra organização muçulmana que se articula no âmbito político é a Associação Nacional de Juristas Islâmicos (ANAJI). A ANAJI é uma entidade sem fins lucrativos constituída por juristas islâmicos. Tem como objetivo a defesa judicial de toda a coletividade muçulmana do Brasil, além de defender o livre exercício da religião e repudiar a intolerância religiosa. Por meio de cursos e seminários, os integrantes da ANAJI se propõem a ensinar preceitos islâmicos e outros assuntos de interesse da sociedade civil. Giovane Alves Nunes, em uma fala na live “ANAJI responde”, foi categórico: “Os muçulmanos não estão mais desassistidos no Brasil. Estamos aqui para orientar a todos”. 

A associação possui mais de 50 juristas cadastrados. Em seu site, a ANAJI oferece uma cartilha de orientação para denúncias individuais ou coletivas e,  além de pessoas físicas, a organização também atende pessoas jurídicas. 

Apesar de não ter uma agenda política tão atuante quanto os Comitês Islâmicos de Solidariedade, a ANAJI acompanha assiduamente os desdobramentos e efeitos da intolerância religiosa no governo Bolsonaro.

Em 5 de janeiro de 2019, o presidente Bolsonaro publicou, em sua página no Facebook, um vídeo de uma mulher sendo apedrejada por muçulmanos. O intuito da postagem era questionar o silêncio de feministas diante da violência cometida por muçulmanos contra as mulheres. Alcançando mais de 36 mil curtidas e 1,5 milhão de visualizações até a conclusão deste artigo, o vídeo gerou controvérsias.

Um dia após a postagem do vídeo, a ANAJI emitiu uma nota de repúdio aos comentários de Bolsonaro. A associação mostrou-se preocupada com as palavras do presidente e lembrou que o Brasil tem um dos maiores índices de assassinato de mulheres por homens que não são muçulmanos. Ressaltou, ainda, que desde o princípio da religião islâmica, os muçulmanos são instruídos a promover a mensagem do Islã através do diálogo religioso com não-muçulmanos. A nota também destaca a figura de muçulmanos desde “o descobrimento (sic) do Brasil, (…) sem nunca haver qualquer ato de incitação ao ódio, intolerância e desrespeito.” 

Polarização política brasileira e o Islã

As eleições de 2018 e os desdobramentos do governo Bolsonaro evidenciaram uma divisão nas reações e atuações de diferentes comunidades islâmicas do Brasil. É fato que a polarização da política institucional brasileira é um componente conflituoso dentro desse segmento religioso. Se, por um lado, há preocupação em virtude das declarações intolerantes do presidente contra minorias como os muçulmanos, por outro, o discurso a favor da família, da segurança pública e do crescimento econômico atrai adeptos islâmicos para a esfera bolsonarista.  

Como demonstrado, o fenômeno das tensões e negociações entre os brasileiros muçulmanos convertidos e os “nascidos muçulmanos”, amplamente estudado por antropólogos no âmbito acadêmico, é uma importante chave de análise para entender de que forma a comunidade islâmica se articula e atua politicamente no Brasil. Elementos nacionais e étnicos, sem dúvidas, interferem neste processo de forma bastante visível. Como nos atesta Hajj Mangolim, “há um descompasso entre os discursos das instituições islâmicas, dirigida majoritariamente por muçulmanos de procedência árabe, com as expressões políticas de brasileiros convertidos”. 

Eduardo Freitas é historiador e mestrando em Antropologia Social pela UFF.

Foto: Pixabay.

SAIBA MAIS

MONTENEGRO, Sílvia Maria. Dilemas Identitários do Islam no Brasil: A Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado, UFRJ, Rio de Janeiro, 2000. 

MARQUES, Vera Lúcia Maia. Conversão ao Islam: O Olhar Brasileiro, a Construção de Novas Identidades e o Retorno à Tradição. Dissertação de Mestrado, PUC, São Paulo, 2000. 

RAMOS, Vlademir Lúcio. Conversão ao Islã: Uma Análise Sociológica da Assimilação do Ethos Religioso na Sociedade Muçulmana Sunita em São Bernardo do Campo na Região do Grande ABC. Dissertação de Mestrado, UMESP, São Bernardo do Campo, São Paulo, 2003. 

CHAGAS, Gisele Fonseca. Conhecimento, identidade e poder na comunidade sunita do Rio de Janeiro. Niterói: Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense (UFF), 2006. 

FERREIRA, Francisrosy Campos. Entre arabescos, luas e tâmaras – performances islâmicas em São Paulo. São Paulo: Tese de Doutorado, Universidade São Paulo (USP), 2007.