Atualizado em: 07/12/2022 às 13h42
ISER promove roda de conversa para identificar elementos para futuros estudos e pesquisas na temática
“Religião se tornou um tema incontornável na política”; “não é mais possível prescindir da categoria ‘gênero’ na análise sobre religião e política do Brasil, da mesma forma como não se pode deixar de reconhecer a dimensão étnica presente nesta interface”; “um substrato conservador e autoritário que marca a sociedade brasileira está se ressignificando com a transição religiosa que o país vive”. Estas foram algumas das afirmações que emergiram da “Roda de Conversa Religião e Eleições”, organizada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), em 28 de novembro passado.
O encontro on-line, com duas horas de duração, reuniu 34 participantes, entre pesquisadoras, pesquisadores e analistas políticos, de diferentes partes do Brasil, que se dedicam à compreensão das dinâmicas que permeiam o cenário religioso do país. De acordo com a Direção Executiva do ISER, representada no evento por Ana Carolina Evangelista e Clemir Fernandes, o objetivo foi reunir o grupo, ainda no clima pós-eleições brasileiras, para dialogar a partir de primeiras observações, incertezas e elucidações a fim de identificar elementos para futuros estudos e pesquisas na temática “religião e política”.
Para isso, três participantes, em uma primeira parte do evento, expuseram reflexões, com base nas próprias pesquisas, a fim de estimularem reações e novas ponderações, em um segundo momento.
Calcificação perigosa
A primeira exposição foi oferecida pelo antropólogo Ronaldo de Almeida (Unicamp/Cebrap). Ele abriu o momento com o reconhecimento de que a religião tem um papel importante nos processos eleitorais há tempos no Brasil. Porém, ela se tornou um tema incontornável, “calcificado” na disputa política (com base no termo cunhado por Felipe Nunes e Thomas Traumann em artigo), tendo tomado um caminho que o pesquisador classifica como “perigoso”.
O reconhecimento da “calcificação perigosa” expressa nas eleições de 2022, tem lugar, segundo Ronaldo Almeida, na observação do fenômeno da polarização na política configurado em um movimento “conservador e cristão”. Pessoas identificadas com tal posicionamento, marcadamente branco, ‘bolsonarista’ e evangélico, em linha similar ao que ocorreu nos Estados Unidos, com brancos, republicanos e trumpistas, tornaram-se radicais a ponto de promoverem ataques armados a opostos, fato inédito no país.
Um segundo ponto indicado pelo antropólogo, foi a lacuna que observou na campanha das esquerdas durante as eleições: o foco fortemente direcionado aos evangélicos, com atividades e textos analíticos, teria descartado importante atenção aos católicos. Ele lembrou as pesquisas de voto, no início de 2022, que mostravam uma adesão destacada de católicos à campanha do ex-presidente Lula.
A desatenção ao voto católico à esquerda e a um trabalho com a história do alinhamento progressista deste segmento cristão no país, na avaliação do pesquisador, fez com que a campanha pela reeleição de Jair Bolsonaro investisse neste grupo e mais ainda no campo evangélico. Isto teria contribuído para gerar maior resistência eleitoral ao Partido dos Trabalhadores (PT), e produzido número de votos próximos aos de 2018 para o atual presidente.
Por fim, Ronaldo Almeida relacionou aos evangélicos de direita o tema preocupante da calcificação da relação religião e política. Ele avalia que este grupo “saiu pior destas eleições”, pois o mandato de Jair Bolsonaro conduziu o segmento para a extrema-direita.
Para o antropólogo, o fenômeno é semelhante ao que o historiador do Judaísmo Michel Gherman chama de dupla conversão: manifestação política de direita com o uso de simbologia judaica. Ele reconhece que o mesmo ocorreu com os evangélicos brasileiros, que se converteram, por exemplo, à pauta das armas, na direção ao que ocorre nos EUA, antes estranha a este grupo.
Neste sentido, pensar uma “desbolsonarização do campo evangélico” se torna tarefa urgente, segundo Almeida. A adesão à extrema-direita promovida por lideranças religiosas gerou um populismo idólatra, com demonização do diferente (esquerdas e religiões de matriz afro) e assédio espiritual contra irmãos de fé, com forte violência. Os crimes praticados por estes líderes precisam ser estudados e denunciados, de acordo com o antropólogo, por conta do uso dos púlpitos para campanha eleitoral, mas também durante a pandemia de covid-19, com rejeição das medidas sanitárias e negação da eficácia das vacinas.
Ronaldo Almeida ressalta que, neste processo, é relevante observar, compreender e fortalecer as novas expressões do campo progressista evangélico, com jovens ativistas pró-feminismo e direitos de gênero, pró-ambientalismo e anti-racistas.
Gênero como categoria de destaque
A apresentação da antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira (UNB, colaboradora do ISER) aprofundou o tema “gênero” como um marcador fundamental na política. A pesquisadora, que conduziu, com a coordenadora de Religião e Política do ISER Lívia Reis, a pesquisa “Mulheres evangélicas, política e cotidiano”, ancorou sua reflexão na circulação de dois enquadramentos no processo eleitoral: (1) o engajamento das mulheres cônjuges dos principais candidatos – Michele Bolsonaro e Rosângela da Silva (Janja); (2) a emergência do movimento Mulheres com Bolsonaro, no início da disputa no segundo turno, construído por Michele e com atuação direta da senadora eleita Damares Alves (PL/DF), ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro, e de outras parlamentares eleitas para o Congresso Nacional.
Para Jacqueline Teixeira, não é possível abordar os efeitos das eleições 2022 sem considerar o engajamento de Michele Bolsonaro e de Janja, como cônjuges dos principais candidatos, a partir de uma posição específica, a heterossexualidade. A pesquisadora destaca o fato de a imagem das duas ter circulado no cenário político, a despeito dos maridos. Com isto, ela indica, o processo eleitoral acabou por impor aos eleitores a decisão sobre em qual primeira-dama votar.
Jacqueline Teixeira analisou a inédita extensão da polarização política, demonstrando que Michele Bolsonaro, uma mulher do lar, investiu na imagem de fiel cristã, representante do voto ético em Jair Bolsonaro. Do outro lado, apontou, estava Janja, uma socióloga de esquerda, que respondia ao que se tornou uma necessidade de se colocar no papel mulher que incide na política. A pesquisadora ressalta, porém, que encerradas as eleições, este papel se tornou um incômodo e alvo de críticas, de mulheres jornalistas, inclusive.
De acordo com a antropóloga, Michele e Janja foram identificadas pelo público, em cada polo, com suas imagens de pertencimento religioso construídas. Neste ponto, Michele se valeu positivamente da identidade evangélica e Janja foi negativada por sua relação com religiões de matriz africana, em um reflexo do que comumente ocorre na arena pública.
No que diz respeito ao movimento Mulheres com Bolsonaro, a pesquisadora identifica nele a construção da materialidade e de importância de políticas do atual governo para mulheres. Para ela, este processo representou um impulso importante à categoria “mulher” como foco eleitoral, e na busca da garantia de reconhecimento de algumas demandas políticas, em especial, o combate às violências de gênero.
Ao mesmo tempo, foi avaliado que Michele Bolsonaro foi consolidada como mulher que combate o feminismo (elemento de alta rejeição entre evangélicas, de acordo com a pesquisa do ISER) e a categoria “mulher cristã” passou a circular com mais força. Neste aspecto se destaca a articulação de uma aliança entre mulheres evangélicas e católicas para reeleger Bolsonaro, com a categoria “mãe” adicionada como um ponto de engajamento.
O movimento Mulheres com Bolsonaro, de acordo com Jacqueline Teixeira, mobilizou, ainda, a construção da imagem de Jair Bolsonaro como “homem simples e sincero”, “que não sabe o que fala”, que deve ser acolhido e perdoado por mulheres. Ela mostrou como imagens de idosas foram acionadas para este papel conciliador.
Este corpus de análise operou, na roda de conversa, como indicador de como não é mais possível prescindir da categoria gênero nos estudos em religião e política.
Um substrato conservador e autoritário se atualiza
A terceira exposição de ideias foi oferecida pela socióloga da religião Maria das Dores Campos Machado (UFRJ). Com base em seus estudos sobre “Sionismo Cristão”, a pesquisadora demarcou de início a necessidade de se aprofundar investigações sobre a adesão de setores evangélicos à Teologia do Domínio para apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro e o estreitamento de laços entre neointegralistas e católicos tradicionalistas.
Neste processo, a socióloga observa o fortalecimento de teorias da conspiração entre cristãos de direita que articulam o ideário neointegralista e o neoconservadorismo evangélico. Ela observa que o crescimento dos evangélicos, ancorado na Teologia do Domínio, evidencia o conservadorismo que marca a sociedade brasileira.
As Marchas para Jesus e as Marchas pela Família, promovidas nos últimos anos, foram relacionadas, na apresentação de Maria das Dores Machado, com as manifestações de rua conduzidas por católicos integralistas no passado. Ela aponta que católicos e evangélicos trabalham no presente questões que permeiam o imaginário da população (comunismo, aborto, homossexualidade, por exemplo) e embasaram lutas conservadoras no passado, por meio de outras performances.
Para a pesquisadora, a partir desta constatação, é possível identificar um substrato conservador e autoritário que se atualiza com a transição religiosa em meio a continuidades e descontinuidades. Compreender o que é específico da religião e o que diz respeito à cultura brasileira torna-se imprescindível neste quadro, diz Maria das Dores Machado.
Com base nesta afirmação, a socióloga da religião reafirma a necessidade de se desenvolver estudos sobre gênero e o peso do voto feminino, e acrescenta que não é possível considerar os fiéis cristãos, suas paixões, medos, afetos distintos sem reconhecer a dimensão étnica. Para ela, o movimento negro interrelacionado com o feminista – com as articulações de negras evangélicas – é fundamental para futuras pesquisas. Maria das Dores Machado reconhece que estes são elementos que contrastam com as teologias hegemônicas, com atenção especial à Teologia Negra e sua importância na mobilização pentecostal.
Em outra frente, afirma a socióloga, é preciso estudar o Catolicismo conservador. Ele tem movimentos que são camuflados nas mídias, pelo destaque da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) e de padres progressistas. É fundamental, para ela, trabalhar as diferenças no Catolicismo e compreender a liderança conservadora formada por diferentes etnias e gerações.
Nesse sentido, a pesquisadora conclui que é preciso considerar as distinções de postura política entre lideranças, membresia e diferentes grupos que participam das articulações religiosas. Importa olhar as diferentes dimensões de interesses organizacionais e dos demais participantes do cenário que têm cor, gênero e afetos.
Um instigante mosaico
O momento aberto ao diálogo foi oportunidade de reafirmação de pontos destacados nas três exposições, com indicações de aprofundamento, de novas perspectivas e de atenção a elementos não mencionados, com a construção de um mosaico de possibilidades.
Entre as reafirmações está a relevância da temática racial, que, segundo o grupo, demanda mais investimento em estudos sobre o campo afrorreligioso. Abordagens como as de Joana Bahia, Marcelo Camurça e Camila Aguiar, foram indicadas como elucidativas para futuras pesquisas. Neste ponto, foi feito o alerta que não se pode deixar de considerar as tensões, como a polarização direita vs. esquerda, entre expressões de matriz africana, bem como as divergências, entre elas as questões de gênero, especialmente em relação a cargos no Candomblé.
Outra reafirmação é o desafio de se garantir a interdisciplinaridade nos estudos em religião e política, e foi acrescentada a relevância da diversidade regional neste diálogo. Destacou-se a necessidade de se incluir nele estudiosos do Nordeste, a fim de se superar a hegemonia “sudestina”.
Um terceiro elemento sublinhado é a atenção aos níveis diferenciados de relação de grupos religiosos com a política. A distinção entre a posição das lideranças clérigas e leigas da membresia politizada e não-mobilizada, fora do período eleitoral, configura-se um desafio para novas pesquisas. Com isso, foi ressaltada a importância de se explorar as pautas populares que escapam à calcificação da religião radicalizada.
Nesse sentido, foram levantados temas como gênero, raça e território, com relação à vida, à sobrevivência, aos medos, às relações de família não tradicionais que imperam e às relações de classe, fora da cristalização da extrema-direita. Indicou-se a necessidade de se direcionar pesquisas para o cotidiano, reconhecido como potencialmente progressista, com atenção às ações sociais e às práticas religiosas que constroem cidadania e democracia.
O caso de jovens católicos militantes que ficam constrangidos com a “religiosização da política” e agem a partir de outras identidades e marcadores sociais foi utilizado como exemplo.
Deste debate emergiu a avaliação de que há pouca atenção de pesquisa às pautas sociais dos evangélicos. Entre elas estão, segundo participantes, o encarceramento e as drogas, com a temática da “violência” como pauta central.
Outro elemento relacionado ao cotidiano religioso que deve ser estudado, de acordo com a roda de conversa, são os grandes eventos que acontecem há um tempo significativo, como as marchas e manifestações públicas religiosas, que são periodicamente ressignificadas e reconstruídas. Neste contexto deve-se considerar o crescimento do número de eventos direcionados a mulheres, organizados por denominações evangélicas em conjunto.
O tema da desinformação e da manipulação de crenças é um elemento que preocupa participantes da roda de conversa promovida pelo ISER, com a indicação da relevância de projetos de formação para enfrentamento. Neste ponto, estudos sobre a vivência de fiéis em ambientes digitais se revestem de importância. A compreensão de como se configura o cotidiano digital dos grupos religiosos, não apenas na relação com a política, mas com o campo religioso em sua abrangência, como ambientes de informação e de confiança, foi indicada como um objeto de pesquisa relevante.
Relacionada a esta temática das mídias está a da apropriação de categorias como “comunismo”, por grupos cristãos conservadores. Participantes apontaram que é preciso compreender qual o sentido atribuído a estas categorias e a função que elas ganham na arena política. Foram recordadas as pesquisas de Rosana Pinheiro-Machado que têm indicado a noção de “comunismo” significadas como medo da pobreza, de voltar a ser pobre, de temor pela re-precarização da vida, na direção da perda de poder aquisitivo das camadas que foram incluídas pelo consumo. Foi também demarcada a função de “comunismo” com o significado de reforçar a “ameaça da perseguição às igrejas”.
Sobre a retórica da perseguição, foi ressaltado que ela nunca desapareceu, apenas se transformou e se radicalizou no processo eleitoral. Ao mesmo tempo em que o grupo indica a necessidade de evitar conflitos e extremos e manter pontes de diálogo, a calcificação da religião radicalizada exige posicionamento incisivo para não permitir que se percam direitos já garantidos. Para isto, foi indicado que as pesquisas precisam ser instrumentos mais efetivos de ação e intervenção.
É neste sentido que se apontou a necessidade de compreender o lugar do nacionalismo atrelado ao discurso e às práticas religiosas, tanto referentes à noção de pátria brasileira quanto ao Israel imaginário. Ele é expresso em elementos simbólicos que precisam ser estudados, de acordo com participantes da roda de conversa.
A equipe de Religião e Política do ISER [composta por por Agnes Alencar, Ana Carolina Evangelista, Clemir Fernandes, Christina Vital, João Luiz Moura, Laryssa Owsiany, Lívia Reis (coordenadora), Magali Cunha, Matheus Pestana, Regina Novaes, Viviane Costa], avalia muito positivamente o conteúdo emergente desta roda de conversa. Em diálogo posterior à reunião, o grupo considerou não apenas a excelente qualidade das questões tratadas no evento, mas também identificou que muitos pontos elencados já orientam projetos do ISER e o planejamento para 2023.
Elementos como as preocupantes consequências da radicalização entre grupos religiosos; o lugar imprescindível das categorias gênero e raça nos estudos em religião e política, com destaque para mulheres evangélicas e expressões de matriz africana; atenção às articulações políticas ligadas ao Catolicismo; a necessidade de compreensão do cotidiano dos fiéis; visibilização das mobilizações evangélicas e inter-religiosas progressistas, com ênfase nas novas práticas políticas promovidas pela juventude, instigam e fazem parte de projetos, de pesquisas em curso e de ações de incidência do ISER.
A constatação desta sintonia da dinâmica de Religião e Política no ISER com as abordagens da roda de conversa, que incluíram também diferentes perspectivas e controvérsias, animadoras e enriquecedoras do debate, representam importante estímulo para novas ações, conforme avaliação da equipe. Uma segunda edição do evento deverá ocorrer nos primeiros meses de 2023.
Foto: Banco de imagens iStock.
Participantes da Roda de Conversa Religião e Eleições:
Agnes Alencar (UFJF / ISER) – Alexandre Brasil (UFRJ) – Ana Carolina Evangelista (ISER) – Ana Carolina Marsicano (UFPE) – Andréa Laís (Casa Galiléia) – Betina Sarue (Quid) – Beto Vasques (Democracia em Xeque) – Carly Machado (UFRRJ) – Cecília Mariz (UERJ) – Christina Vital (UFF / ISER) – Clemir Fernandes (ISER) – Flávio Conrado (Casa Galiléia) – Gabi Juns (Fanta) – Isabel Pereira (ISER) – Jacqueline Moraes Teixeira (UnB) – Joana Bahia (UERJ) – João Luiz Moura (Mackenzie/ISER) – Laryssa Owsiany (UFRRJ /ISER) – Lívia Reis (ISER) – Luna Rozenbaum (ISER) – Lyndon Santos (UFMA) – Matheus Pestana (IESP/ISER) – Magali Cunha (ISER) – Maria das Dores Campos Machado (UFRJ) – Mariana Côrtes (UFU) – Mariana Ramos de Morais (MN – UFRJ) – Moema Salgado (ISER) – Patrícia Birman (UERJ) – Pedro Strozenberg (ISER) – Regina Novaes (UNIRIO /ISER) – Ricardo Mariano (USP) – Rodrigo Toniol (UFRJ) – Ronaldo Almeida (Unicamp) – Sharah Luciano (ISER) – Tabata Tesser (Católicas pelo Direito de Decidir). |
Magali Cunha é doutora em Ciências da Comunicação com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. Pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Pesquisadora do ISER.