O racismo religioso é um tema relevante e de urgente discussão em um ano eleitoral. Afinal, ele está presente na omissão das autoridades públicas em dar respostas à grande parte das cobranças feitas acerca dos casos de violência a terreiros, na morosidade em suas tratativas com a população negra e de axé do país e no desinteresse em fazer um debate amplo e qualificado para a construção de políticas públicas assertivas. Além de ocultarem que o protagonismo da barbárie, do racismo e da intolerância está, muitas vezes, em suas próprias mãos, seja por meio dos agentes de segurança pública, que não se furtam em invadir/ameaçar terreiros há décadas no país; do sistema judiciário, que ainda discute a permissão para a imolação de animais nas “casas de santo”, mas pouco faz para deter um genocídio da juventude negra em curso e, ainda é capaz de tentar tirar a guarda de crianças de suas mães, por escolherem iniciarem suas/seus filhos. 

A ideia de que o grande algoz dos cultos afro-brasileiros é o “traficante” ou o pastor, que as manchetes dos jornais sugerem, é insuficiente para dar conta de um fenômeno tão complexo e extenso, com raízes tão profundas em nossa mentalidade e em nossa história. São muitos fatores e atores combinados que acendem juntos o fósforo quando um terreiro é criminosamente incendiado. Os reducionismos e os binarismos, propositalmente construídos, seja nas literaturas acadêmicas ou nos debates públicos, contribuem de forma inflamatória para promover racismo, violência e exclusão. 

Não são raros os textos e autores que justificam o avanço do pentecostalismo no Brasil e a ofensiva aos terreiros, através da suposta falta de organização, de unidade e de homogeneidade das religiões de matriz africana ou, ainda, por uma falta de promoção de acolhimento às comunidades do seu entorno. Esses argumentos são frágeis e facilmente refutáveis, pois são oriundos de uma visão linear e uniforme do que é capacidade de organização política e do que é apoio e assistência coletiva. Além disso, também ignora que as forças de oposição são muito desiguais: como resistir, por exemplo, à violência de uma vertente religiosa que domina uma concessão pública de canal na televisão aberta? 

Os terreiros, ainda que dispostos em uma diversidade múltipla, nunca estiveram dissociados da vida e dos contextos social e político, pelo contrário, grandes matriarcas de axé no século 20 nos deram aulas da sua capacidade de mobilização/uso/entendimento de dispositivos políticos, conectando uma rede de apoio e de visibilidade calcada na influência assumida por personalidades próximas, como táticas de existência, sob pena de eliminação, inclusive, do candomblé, nessa sociedade. As Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro), conceito articulado por Sidnei Nogueira (2020), mostraram-se, ao longo de décadas, não sem contradições, cisões e interferências, como territórios de acolhimento, de assistências psicoterapêutica e médica (ainda que sem as credenciais oficiais das instituições), de formação, de educação, de promoção de cultura e de saberes negados na escola, de elaboração de tecnologias criativas e elevação da autoestima, deteriorada pela lógica racista, desigual, meritocrática e colonial.

No ativismo levantado por diversas casas de axé, por figuras públicas e por coletivos ligados à temática encontramos denúncias não apenas a respeito do racismo e da intolerância religiosa sofridos, mas também um posicionamento frontal contra o feminicídio, o genocídio indígena, a transfobia, a LGBTfobia, o machismo, a desigualdade social e todo tipo de arbitrariedade, criticando e incitando o debate, inclusive, entre seus próprios pares. 

É possível citar novas e antigas campanhas e iniciativas, tais como: Liberte o Nosso Sagrado (2017); Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa (anualmente desde 2008); Manifesto de entidades do movimento negro e povos de terreiro “Fora Bolsonaro e Mourão” (2020); Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões de Matriz Africana – Idafro (2019); Comissão de Combate à Intolerância Religiosa – CCIR (2008); a CPI da Intolerância Religiosa (2021); a aprovação da concessão da Medalha Pedro Ernesto, considerada a maior honraria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ao jogador de futebol José Paulo Bezerra Maciel Júnior, conhecido como Paulinho, campeão olímpico pela Seleção Brasileira nos jogos de Tóquio, no Japão, em 2021 – a homenagem ocorre após o atacante ter simulado uma flechada em homenagem ao orixá Oxóssi, do candomblé, durante a comemoração de um gol e por ele falar sobre Exu e outros orixás de forma recorrente em suas entrevistas, posicionamento que aqueceu o debate sobre intolerância religiosa no país; entre outras.  

Jornais, impressos e on-line, de grande circulação, têm dedicado algumas de suas páginas a fazer parte dessas denúncias por pressão da sociedade e do próprio “povo de santo” (expressão utilizada para designar os adeptos de religiões afro-brasileiras), ainda que diversos desses veículos continuem propagando ódio e preconceito às religiosidades de matriz africana em manchetes distorcidas. 

Basta lembrarmos do caso do chamado “serial killer do Distrito Federal”, Lázaro Barbosa, em 2021. Antes de o criminoso ser encontrado e assassinado, diversas reportagens associaram a sua facilidade para fugas a uma possível ligação com “bruxaria e rituais” e colocaram fotos de assentamentos religiosos com imagens de exu, como sendo oriundos da sua casa. Depois, sua esposa veio a público desmentir as informações, dizendo que Lázaro era cristão, inclusive, e que existiam imagens suas pregando dentro do espaço prisional, onde esteve tempos atrás. As investigações concluíram que as fotos divulgadas eram de um terreiro e foram usadas de forma indevida para tentar forjar uma ligação dele com as religiosidades de matriz africana, comumente associadas a rituais satânicos, que, por sua vez, são ligados a elementos negativos e a atos bárbaros. 

Por trás de todas essas histórias, existe racismo, preconceito e projetos de poder proselitistas que criminalizam todo poder fora da Cristandade. Após a captura e a morte de Lázaro, concluíram que, por trás dos assassinatos cometidos por ele, não existam “rituais”, mas sim o “coronelismo” presente em diversas regiões, notadamente rurais, do Brasil. Ele estava a serviço de grandes fazendeiros que ordenavam a morte e o estupro de várias pessoas para fazerem valer o que consideram ser a justiça. Até a verdade ser apurada, dezenas de terreiros foram ameaçados e invadidos na “caça” perpetrada para prendê-lo, acusados de acobertá-lo. Felizmente, uma grande e necessária mobilização de lideranças afrorreligiosas da região Centro-Oeste tratou de desmentir o boato criminoso.

Para mim, o maior inimigo das expressões espirituais, culturais e ritualísticas das populações de terreiro, neste país, é um polvo com dezenas de tentáculos: o racismo. Certamente, o racismo não opera enquanto conceito abstrato. É operacionalizado por instituições, manuais, livros, conceitos, órgãos e pessoas. Ouço de muitas pessoas “evangélicas” a pergunta de como se pode combater o preconceito contra os negros dentro da própria igreja. Porque os atores são críticos, não uma massa ignorante. 

Ainda que nem todas/os estejam abertas/os ao diálogo, as pessoas estão pensando, estão avaliando os governos eleitos, até porque sua situação é cada dia mais vulnerável: estamos com índices crescentes de fome, de insegurança alimentar, as ruas estão lotadas de pessoas sem acesso à moradia. Não são só as igrejas evangélicas, portanto, que ainda debatem pouco a questão racial, mas também a universidade, o próprio terreiro e a sociedade em geral. E existe gente preta com consciência do debate racial fazendo crítica dentro e fora dos terreiros, dentro e fora da igreja. 

Alivia-me quando o mestre Antônio Bispo dos Santos diz que trabalha “com a imagem de quem venceu. Mesmo que queimem a escrita, não queimam a oralidade, mesmo que queimem os símbolos, não queimam os significados, mesmo que queimem os corpos, não queimam a ancestralidade. Porque as nossas imagens também são ancestrais […] E o que é contracolonizar? É reeditar as nossas trajetórias a partir das nossas matrizes. E quem é capaz de fazer isso? Nós mesmos! (2018). 

O historiador Brian Levack (1988) observou uma ligação explícita entre o medo da rebelião e a crença culta na bruxaria organizada nos séculos XV-XVII na Europa. A bruxa, para essas sociedades, representou uma essência de rebeldia, pois, como adoradora do Diabo, ela também fez parte de uma conspiração política contra o Reino de Deus, praticando, assim, uma traição sem perdão. Quando apontamos um dedo para alguém, outros três se viram para nós. Quanto mais repressão, mais medo, mais reação, não necessariamente nessa ordem. 

Não só os ataques constantes em toda a história do Brasil geraram uma organização do povo de terreiro, em resistência à ofensiva, mas também o próprio crescimento do caráter político do terreiro e seu engajamento em lutas coletivas causou/causa uma maior opressão. Esses movimentos acontecem simultaneamente, de forma espiralar, do período colonial até os dias de hoje. 

Carolina Rocha é doutora em Sociologia, historiadora, escritora e pesquisadora

Foto: Representantes do movimento “Liberte nosso sagrado” comemoram transferência de acervo apreendido há 130 anos – Cleber Rodrigues/CNN (21.set.2020)

Saiba mais

https://theintercept.com/2022/05/02/maes-religioes-afro-guarda-filhos-intolerancia-religiosa/

https://revistaintoleranciareligiosa.com/

Referências

LEVACK, B. P. A caça às bruxas na Europa Moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988. 

NOGUEIRA, S. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2020. 

SANTOS, A. B. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília: INCTI/UnB, 2015.