Dos rios ao sagrado: o canto da Terra e da fé

Foto: Ratão Diniz

Naiana Andrade

Por Naiana Andrade

  • 17 nov 2025
  • 10 min de leitura
Dos rios ao sagrado: o canto da Terra e da fé
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Espiritualidade e meio ambiente se reencontram no Brasil às vésperas da COP 30, em Belém, com vigílias e ações inter-religiosas que resgatam o espírito da ECO-92 e anunciam uma nova aliança entre fé e sustentabilidade

Cada rio que corre leva consigo histórias, memórias e esperanças. Cada gesto espiritual deixa marcas. Entre crença e ação, a fé brasileira redescobre seu papel na defesa do planeta. É nesse encontro de águas e rituais que diferentes tradições se juntam para preparar o país para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), que ocorrerá de 11 a 21 de novembro de 2025, em Belém do Pará, no coração da Amazônia.

O início dessa história remonta a junho de 1992, no Aterro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, sob tendas improvisadas que se moviam com a brisa do mar. Era a ECO-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que reuniu chefes de Estado, cientistas, ativistas e religiosos. Em meio a preces, cantos e assembleias, a espiritualidade se manifestou: a Terra não poderia ser apenas um assunto técnico, mas também uma questão de ética, fé e responsabilidade.

A mobilização foi registrada em detalhes pelos jornais da época. Em 13 de junho de 1992, A Tribuna da Imprensa destacou uma vigília promovida pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), que atraiu milhares de pessoas pela conservação ambiental. Com o título “Vigília Inter-Religiosa no Aterro do Flamengo mobiliza Rio pela Terra”, a reportagem retratava a variedade de rituais e o clima de esperança e tensão: “Entre cantos, velas e discursos, a sociedade civil pressiona líderes mundiais a agir”. 

No cume do Corcovado, sob a vigilância constante do Cristo Redentor, o cardeal Eusébio Scheid elevou as mãos em oração, representando a união entre a fé e o compromisso com o meio ambiente. 

Era uma representação da Rio-92, em que a espiritualidade coexistia com a política, enfatizando que a preservação do planeta também é um apelo ético. A jovem pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana Lusmarina Campos Garcia, então com 28 anos, observava tudo atentamente. “Naquela época, já estávamos cientes de que o planeta enfrentava uma grave degradação e que nosso estilo de vida era excessivamente agressivo. A fé precisava se converter em compromisso de cuidado”, recorda.

Do Acordo de Paris às novas vigílias

Duas décadas depois, em 2012, durante a Rio+20, a cidade voltou a ressoar cânticos inter-religiosos. Cristãos, indígenas, judeus, muçulmanos e representantes de religiões afro-brasileiras assinaram a Carta das Religiões e o Cuidado da Terra, um ato simples, mas significativo: converter a oração em ação e a espiritualidade em responsabilidade pública.

O Acordo de Paris, estabelecido em 2015, consolidou o compromisso global de combater o aquecimento global. No Brasil, o ISER implementou o programa Fé no Clima, que converteu a linguagem técnica da agenda climática em ações e práticas compreensíveis para os fiéis de igrejas, terreiros e comunidades. No mesmo ano, o Papa Francisco divulgou a Encíclica Laudato Si’, enfatizando que “tudo está interligado” — a devastação ambiental é um reflexo da violência espiritual e social.

Em sinal disso, Minas Gerais se tornou um símbolo de luto e alerta ambiental após as tragédias de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). Cada rio contaminado e cada vida perdida ecoaram como um chamado à mudança. Prova disso foi o que aconteceu em Mariana: vilarejos soterrados, rios envenenados, peixes boiando e, além dos 19 mortos na tragédia, o total de lama com resíduos da barragem de Fundão e de Santarém chegou a 62 milhões de metros cúbicos. Todos os 226 municípios da Bacia do Rio Doce, sendo 203 mineiros e 26 do Espírito Santo. 

LEGENDA: Sem condições financeiras para comprar água e por acreditar que a mineradora fornece água envenenada do Rio Doce com o rótulo de potável, a aposentada Delcina Pereira de Lima passou a coletar e armazenar a água da chuva (Foto: Thomas Byczkowski).

Assim como em Brumadinho e Mariana, onde a brutalidade da mineração deixou cicatrizes profundas, nas Alagoas, Maceió também sobrevive a um crime ambiental. No bairro do Pinheiro, o território foi devastado pelas crateras abertas pela exploração de sal-gema. Entre os escombros, a Igreja Batista do Pinheiro resiste como uma das últimas vozes da comunidade engolida pelo colapso. O templo, interditado por ordem judicial, tornou-se símbolo de fé e enfrentamento diante da Braskem, apontada como responsável pelo maior crime ambiental urbano da história do país.

O pastor Wellington Santos, líder da igreja, descreve o cenário como um “apocalipse contemporâneo”. Ele afirma que a destruição causada pela mineradora não atingiu apenas o solo, mas também o modo de vida das pessoas. “O complexo lagunar está morrendo. Os sururus sumiram. O que está acontecendo aqui é a morte de um modo de vida inteiro”, lamenta. 

Nesse contexto de impactos ambientais,  surge a atenta biofísica graduada pela UFRJ, Júlia Rossi, cuja história se entrelaça com a da Rede da Maré e a luta pelo meio ambiente. “O Brasil ainda é um país perigoso para ambientalistas. Mas a fé nos dá coragem e sentido”, diz Rossi, integrante do movimento global GreenFaith, que une religiões pela justiça climática. Já Ivanir dos Santos, Babalaô e doutor em História Comparada, fundador da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, é outro nome relevante nessa trajetória. Para ele, “o respeito à natureza sagrada precisa ganhar as ruas e o espaço público, pois é no caminhar, conversando e argumentando, que podemos salvar a natureza”.

Vigílias pela Terra

Em 2023, durante a COP 28, em Dubai, o Pavilhão da Fé colocou lideranças religiosas no centro das negociações climáticas. No Brasil esse movimento reacendeu a memória da primeira vigília do ISER, em 1992, e inspirou o projeto Vigílias pela Terra, que em 2024 percorreu o país em uma jornada espiritual e ambiental rumo à COP 30.

Segundo Paulo Ricardo Sampaio, articulador do ISER, o conceito das novas vigílias nasceu da escuta das comunidades. “Queríamos recriar o espírito da vigília de 92, mas com os rostos e vozes do Brasil de hoje — diverso, plural e consciente de sua responsabilidade ambiental”. Como um ponto de partida, em apoio à luta por direitos dos povos indígenas, o ISER reuniu diferentes lideranças religiosas em um ato simbólico durante a Marcha de Abertura do Acampamento Terra Livre, em Brasília, em 8 de abril de 2025, com o objetivo de promover um diálogo inter-religioso para ações no enfrentamento à crise climática e somar forças à causa indígena. 

A primeira vigília foi realizada em Porto Alegre, no dia 17 de maio, às margens do Guaíba, palco recente de tragédias climáticas. O pôr do sol dourado sobre o rio emoldurou um momento de preces, cânticos e homenagens às vítimas das enchentes de 2024. Em seguida, em 24 de maio, foi a vez do Rio de Janeiro, celebrando os dez anos do movimento Fé no Clima. A Baía de Guanabara virou cenário para um encontro de fé, música e oração. “Era uma mistura de celebração e urgência, com o mesmo espírito de 92”, lembra Sampaio. 

Depois, em 31 de maio, em Manaus, o coração da Amazônia pulsou com mitos, lendas e orações sob o lema “Desde a Amazônia, descendo vida pela cura da Terra”, unindo povos indígenas, terreiros e comunidades locais. A jornada seguiu para 7 de junho, em Natal, às margens do Rio Potengi, onde fiéis e lideranças refletiram sobre a importância das águas e dos rios como fonte de vida. “Era como se toda a água, o ar e até o vento participassem da oração coletiva”, descreve Sampaio.

Olhar adiante

A última vigília antes da COP30 ocorreu em Recife, no dia 11 de outubro de 2025, com a presença de centenas de fiéis e líderes religiosos no litoral de Pernambuco. Em entrevista à imprensa, o pastor Josias Kaeté, da Igreja Batista, resumiu o espírito do encontro: “sem a Terra, a gente não vai conseguir fazer nenhuma das nossas religiões existir. Hoje, ao mesmo tempo que comemoramos, fazemos um grito de alerta sobre a crise climática, para que possamos continuar vivos — e que o planeta Terra continue vivo”. No mesmo encontro, a Mãe Adriana Bezerra, presidente do Fórum Nacional de Umbanda, ressaltou que comunidades afro-ameríndias já estão implementando práticas sustentáveis. Possuímos um guia de sustentabilidade, no qual solicitamos aos irmãos de fé que ajustem suas oferendas utilizando produtos biodegradáveis. Não abandonamos nossa fé, mas também nos preocupamos com a saúde do planeta”.

O pastor Wellington Santos também esteve na vigília em Recife, e fez um apelo à união entre diferentes crenças: “A nossa fé precisa sair da plena plástica teatral e ir para uma atitude cidadã. As crianças não terão rios para falar de seus, não terão matas para cultivar seus orixás. Elas não terão nada mais que imagens vazias”, disse, em tom de alerta sobre o futuro comum das populações afetadas.

Clemir Fernandes, diretor executivo do ISER, esclarece que o trabalho realizado por todas as vigílias ao longo do ano transcende a celebração simbólica. “O que temos feito é reunir diversas lideranças e povos tradicionais para refletir tanto sobre suas comunidades quanto sobre o exterior, mobilizando, organizando, formando e aprimorando o debate. Nosso objetivo é um engajamento progressivamente mais profundo — inclusive político, no âmbito ético e público — com as pautas de justiça climática e transição justa”.

Fernandes afirma que essa articulação faz parte de um “consórcio de entidades da sociedade civil, religiosas ou não”, o Tapiri Ecumênico Inter-religioso (um espaço de diálogo e colaboração entre diversas religiões e povos tradicionais para enfrentar na Amazônia), além de estar presente na Cúpula dos Povos, que acontecerá simultaneamente à COP30. Em 13 de novembro, durante a COP 30, Belém será palco para a última vigília organizada por integrantes do ISER. “Temos um longo caminho pela frente, repleto de desafios e contradições, mas continuamos mobilizados com a fé que nos impulsiona nessa direção.” Além das ações do ISER, Fernandes ressalta os estudos que visam entender a percepção da agenda ambiental em comunidades religiosas. “Fizemos uma pesquisa em eventos evangélicos, como a Marcha para Jesus, e, surpreendentemente, os participantes demonstraram uma leitura muito positiva e comprometida com a agenda climática. É um espaço potente de formação e mobilização”, relata.

Entre rios, árvores e comunidades, cada gesto, oração e esperança contam a mesma história: fé, ciência e política ambiental precisam caminhar juntas. Como lembra a pastora Lusmarina Garcia: “A Terra vai sobreviver mesmo sem nós. O perigo é que nós sejamos a próxima espécie a desaparecer.” A biofísica Júlia Rossi completa: “A fé nos permite continuar, mesmo quando o mundo resiste à mudança. Cuidar da natureza é cuidar uns dos outros”.

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