Na semana passada foi bastante divulgada a notícia sobre o projeto de Lei 2/2019, do deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) – que foi, inclusive, promovido a capitão, mesmo estando aposentado, segundo informou a imprensa. Pessoalmente, ao receber a primeira informação, via mídias sociais, não dei crédito, achei tão estapafúrdia a notícia que pensei tratar-se de fakenews. Mais uma. Entretanto, para minha surpresa e, certamente, a de muitas pessoas, não só era verdade, como estava prestes a entrar no plenário.

Diante dessa possibilidade, considero importante analisar o fato de a Bíblia entrar no centro desse debate, ou ainda, conflito, sobre o papel da religião no Estado. Em primeiro lugar, o que trata o PL: em um texto curto e com pouca justificativa substancial, a proposta do deputado: “Proíbe o uso o nome e/ou título BÍBLIA ou BÍBLIA SAGRADA em qualquer publicação impressa e/ou eletrônica com conteúdo (livros, capítulos e versículos) diferente do já consagrado há milênios pelas diversas religiões Cristãs (Católicas, Evangélicas e outras que se orientam por este Livro – Bíblia)”. ver https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190408

Junta-se a essa proposta outro projeto, que parece ser um complemento, a ponto de ter sido apensado (tramitação em paralelo com a anterior), de n. 4606/19 e autoria do mesmo deputado Pastor Isidório, que propõe: “Veda qualquer alteração, edição, supressão, adição ou adaptação aos textos dos livros da Bíblia Sagrada, mantendo a inviolabilidade de capítulos e versículos proibindo modificar o texto sagrado garantindo a pregação do seu conteúdo em todo territorio (sic) nacional.” ver https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2216376 

Em ambos os casos, vemos uma determinação proibitória, que coloca sob a tutela do Estado a definição do uso da Bíblia dentro do Brasil. Só por isso o PL já se apresenta com problemas (alguns afirmam que é inconstitucional, inclusive), pois coloca o Estado laico como tutor do uso de uma obra literária considerada sagrada pela grande parte da população, é verdade, que, entretanto, não pode ficar sob tutela de qualquer poder. 

A Bíblia não precisa de um guardião do livro: está mais que consagrada no imaginário do povo. Mesmo quem não a lê regularmente sabe de seu valor e importância. Mesmo assim, é importante considerar alguns pontos de reflexão sobre o tema.

Em primeiro lugar está o fato de a Bíblia ser um livro de partilha de ideias, tradições e fé em Deus, não um compêndio de dogmas e rituais de uma religião. Ela está acima disso. Mesmo o Judaísmo, herdeiro natural da parte que foi escrita primeiro, equivalente ao Antigo Testamento da Bíblia cristã, denominada por este grupo religioso de Tanach (se lê tanar), não tomou uma atitude de tal nível de intolerância. Caso o fizesse, o Cristianismo não poderia ter usado o Antigo Testamento no seu livro, já que seu tal uso contradiz os ensinos rabínicos. Para eles, os cristãos se desviaram da verdadeira fé, e ainda levaram a sua Bíblia com eles. 

Por outro lado, ao escrever os textos, os autores bíblicos nem imaginavam que seu material faria parte de um conjunto chamado Bíblia. Este termo, aliás, não existia no tempo de Jesus, de Paulo e dos demais apóstolos. Logo, é uma construção posterior, fruto de uma política de seleção realizada entre os séculos 2 a 4 d.C, que finalmente chegou em sua definição após alguns concílios da Igreja nos seus primórdios. 

Um caso curioso é o fato de que os cristãos adotaram o Antigo Testamento grego, onde constavam livros que não existiam na versão hebraica. Quando o reformador cristão protestante Martinho Lutero fez sua versão da Bíblia para o alemão, traduziu o Antigo Testamento do hebraico. Por isso, a Bíblia católica tem sete livros a mais que a versão protestante. Durante séculos, os protestantes afirmaram (alguns ainda afirmam) que a Bíblia católica é falsa, e esses sete livros a mais são apócrifos (o mesmo que livros heréticos).

Esses aspectos históricos são importantes para colocar a Bíblia em um contexto: de um livro que não nasceu pronto, mas que foi construído em um longo e complexo processo, até que se tornou objeto de culto. E é exatamente isso que move o autor do Projeto de Lei 2/2019: a bibliolatria. O livro se torna um artefato sacrossanto que não pode ser questionado, sob pena de o ofensor ser punido severamente. No caso, sanções penais seriam aplicadas pela lei brasileira. 

Na Idade Média, atitudes que ofendessem a honra da Igreja eram respondidas com tortura e fogueira. Em nosso tempo, não se podendo impor fogueiras reais, erigem-se as simbólicas. O PL do deputado Pastor Sargento Isidório vai um pouco além: penaliza na forma da lei quem, de acordo com sua proposta, falar de modo diferente daquele consagrado por confissões religiosas.

É preciso ser dito que essa atitude de resguardar a “verdade” é bem antiga, data do século 2 d.C. Os chamados Pais da Igreja começaram a denunciar obras que consideravam apócrifas, porque contrariavam coisas que os textos apostólicos (os que entraram no Novo Testamento) ensinavam. Por conta disso, muitas obras foram queimadas e proscritas. 

Em 1945, um conjunto de obras foi descoberto, por pesquisadores arqueólogos, em Nag Hammadi, Alto Egito, desvelando um Cristianismo plural, que alguns dizem ser gnóstico, e que ficou oculto justamente por causa da perseguição a esse material. Isso não é teoria da conspiração; é um fato histórico. 

As autoridades cristãs eclesiásticas sempre se portaram com mais intolerância do que o povo. Logo, o que o Pastor Sargento, que também é deputado federal, propõe, está na linha mais ortodoxa do Cristianismo. Uma ortodoxia que matou, perseguiu, queimou e destruiu comunidades inteiras, como os Cátaros, todo um segmento social, como os judeus, e implementou um banho de sangue na Palestina durante as Cruzadas. Talvez, no tempo em que religião e Estado seguiam juntas, isso pudesse ser considerado adequado. Talvez. Porém, não cabe no atual momento, no qual a Constituição brasileira garante liberdade de expressão junto com a liberdade religiosa e que a religião cristã não é oficial no país. 

Circunscrever uma obra universal a um grupo específico, mesmo que a intenção seja boa (não é!), torna o livro uma “caixa-preta”. Quem será o guardião para afirmar que alguém está saindo do ponto? 

No bojo da proposta está um elemento homofóbico: o medo do movimento LGBTQIA+ produzir sua própria versão da Bíblia, em que seria eliminada a proibição da homossexualidade, em oito (!) passagens, de 35.527 versículos que a compõem. Entretanto, e depois? Se um religioso não gostar de uma pesquisa acadêmica que trabalhe o texto bíblico e use o termo Bíblia, o pesquisador será preso? As novas maneiras de ler a Bíblia, inclusive entre católicos e protestantes, também serão alvo dessa “guerra santa”? 

O pedido de urgência da proposta não passou. Nesse caso ela terá que passar por comissões e, quem sabe, morra ali mesmo. Ainda assim, a conclusão a que se chega é que silenciar vozes dissonantes é anular justamente o que tornou a Bíblia possível. A maior contradição que se pode ter em relação a esse livro.

Marcelo da Silva Carneiro é Doutor em Ciências da Religião (UMESP-SP), com estágio pós-doutoral na mesma área. Especialista em exegese bíblica e pesquisa sobre o Cristianismo Primitivo. Líder do Grupo de Pesquisa Rastros – Estudos de Memórias e Tradições Cristãs e Judaicas (CNPq).

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