O Clube A Hebraica do Rio de Janeiro é um marco comunitário importante para judeus do Rio de Janeiro. Sede de festivais de dança, campeonatos esportivos e cerimônias de memória, o Clube sempre foi endereço de uma impressionante pluralidade judaica presente na cidade. Ali, judeus de esquerda, jovens dos movimentos juvenis sionistas dividiam o lugar com judeus conservadores da comunidade, membros de setores ligados à direita institucional judaica da cidade. 

Judeus religiosos e seculares, sionistas e não sionistas, de direita e de esquerda costumavam se esbarrar nos corredores do clube. A tentativa foi sempre de, apesar de tensionamentos e polêmicas eventuais, manter o lugar como uma referência aberta a todos os grupos judeus da cidade.

Com o decorrer dos anos, o clube “A Hebraica Rio” pode, entretanto, servir também de referência dos processos de polarização política que aconteciam na cidade e no país. O fortalecimento de perspectivas excludentes e extremistas fora do clube, acabaram por invadir, aos poucos, os muros da instituição e, consequentemente, da coletividade judaica brasileira.

 A ilusão dos encontros e dos debates entre as diferentes correntes judaicas da cidade, que parecia algo natural e garantido, começa a se “desmanchar no ar”. Tal como acontecia em vários cantos no país, também entre os judeus, a polarização e o esgarçamento das relações passam a ocupar espaço central na estrutura comunitária.

Isso já acontecia quando, em 2013, nas origens das grandes manifestações das Jornadas de Junho, membros do movimento sionista socialista Hashomer  Hatsair foram agredidos por terem levado uma bandeira palestina ao festival de dança israeli (folclore israelense). A agressão foi cometida  por membros conservadores da comunidade judaica.

A partir de então, o tensionamento entre grupos comunitários de cores ideológicas diferentes foi apenas crescendo e se tornando mais aberto e claro. O mesmo Clube foi palco do que talvez possa ser chamado de maior enfrentamento comunitário da história dos judeus da cidade.

Em abril de 2017, dirigentes comunitários convidaram o então pré-candidato a presidente da República Jair Messias Bolsonaro para uma palestra. 

As reações foram instantâneas. Judeus progressistas se mobilizaram para tentar evitar que Bolsonaro fosse ao clube. Quando notaram não ser mais possível inviabilizar o convite, esses grupos organizaram uma manifestação diante da entrada da Hebraica- Rio. 

Munidos de bandeiras de Israel e camisas dos movimentos sionistas de esquerda, os que estavam na porta tratavam os que chegavam para assistir Bolsonaro como “fascistas” e “apoiadores de nazista”, além disso, eles acusavam os que entravam no Clube de terem “esquecido as lições do Holocausto”. 

Por outro lado, os que entravam no clube para assistir a palestra do então deputado, também levavam, muitas vezes, bandeiras de Israel e símbolos judaicos. Percebendo as manifestações na frente da Hebraica, os que entravam tratavam o que estavam fora como “traidores” e “inimigos do povo judeu”.

Dentro do clube, Jair Messias Bolsonaro, surgia parado justamente diante de uma bandeira de Israel. Falando dali, o deputado fazia juras de amor aos judeus e produzia, o que talvez fosse um de seus discursos mais odiosos e racistas entre todos que vez. Sob gritos de apoio entusiasmados da plateia, Bolsonaro atacava indígenas e comunidades quilombolas. 

Sobre os segundos, o deputado chegou a compará-los com animais de corte, afirmando: “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriar ele serve mais”. Mesmo com esses comentários racistas e ofensivos, as reações na plateia foram de apoio. Os comentários não terminavam aí, se houve comentários generalizantes negativos contra grupos específicos, Bolsonaro também fez comentários generalizantes positivos sobre grupos específicos. No caso, o pré-deputado elogiava os japoneses por serem “uma raça digna”.

Os comentários racistas e preconceituosos de dentro, acabavam indignando os manifestantes que estavam na porta do Clube. Do lado de fora, os gritos e a virulência dos protestos aumentava em consonância com as frases ditas dentro.

Em algum sentido, e falaremos sobre isso em breve, o “judeu imaginário do bolsonarismo” nasce na Hebraica. Um judeu que se percebe como conservador, de direita e que enxerga o idioma bolsonarista como sua língua. Porém, acredito, há mais do que isto nesse evento. 

A ordem da maioria moral

Há um radical processo, dentro da comunidade judaica, que pode ser considerado de “conversão e desconversão” naquele momento. Esse processo produz uma transformação pouco conhecida na história das comunidades judaicas, onde referências étnicas e culturais são substituídas por referências ideológicas e políticas. Judeus de esquerda e progressistas são retirados da nova comunidade política, enquanto que não judeus ideologicamente vinculados à direita, são aceitos na tal comunidade.

Importante notar — esses processos vão além das consequências dentro da comunidade judaica do Rio de Janeiro — a compreensão dos movimentos de “conversão e desconversão” vão ser importantes para a compreensão do próprio bolsonarismo, de seu movimento e da ascensão da extrema direita no Brasil, onde a construção de novas comunidades políticas surgem e substituem lógicas tradicionais de cidadania inclusiva.

Foi naquele evento, na porta da hebraica que se consolidou, por um lado, o Judaísmo Bolsonarista. Por outro, ali também surgiu o grupo Judeus pela Democracia (JpD), que se consolidou como coletivo, quase uma entidade representativa dos judeus progressistas na cidade. Ambos os setores representam elementos fundamentais para entender o desenvolvimento dos judeus do Brasil, e do próprio bolsonarismo, nos próximos anos.

As articulações de grupos conservadores com setores religiosos brasileiros é algo importante e fundamental na compreensão do fortalecimento das agendas de extrema-direita. No imaginário político dessa extrema-direita o secularismo, a laicidade e a separação entre Estado e religião, são ameaças existenciais que devem ser definitivamente derrotadas no sentido de garantir a sobrevivência dos valores defendidos pela “maioria moral”. Nesta compreensão, essa maioria  vive cotidianamente ameaçada pelo avanço de agendas progressistas e seculares.  

Na perspectiva desses setores, alianças e rupturas políticas devem ter como elemento fundamental valores e lógicas que coloquem frente a frente grupos que defendam a laicidade versus grupos que aceitem valores morais religiosos como definidores de políticas de estado. 

Assim, bandeiras como a de direitos humanos, defesa de direitos reprodutivos, de direitos de LGBTQIA+ ou de gênero não podem coadunar com valores religiosos e espirituais. De forma que grupos religiosos e progressistas seriam tratados como adversários, estando fora da “comunidade de maioria moral”. 

Não seria, portanto, a prática religiosa ou a crença espiritual que determinaria ou não o pertencimento às comunidades de credo específicas. Ao contrário, seriam justamente os vínculos ideológicos e políticos que garantiriam a entrada ou não à comunidade. Cristãos de esquerda, nesse sentido, seriam excluídos do, pertencimento pleno comunitário. 

Na gramática religiosa da nova extrema direita, a crença metafísica ou a prática doutrinária seriam menos importantes do que vínculos ideológicos e práticas políticas. Estar dentro e estar fora seria perpassado por essas determinações. 

Ademais, nos arranjos de um futuro que reproduzisse o “passado salvador”, as religiões ideológicas e políticas seriam estabelecidas a partir de um discurso civilizatório.  Assim, o Cristianismo ultra-conservador tentaria resgatar referências de um “Cristianismo original e puro”, vinculado à civilização judaico-cristã, ao Templo de Jerusalém e ao reino de Salomão e de Davi. 

A gramática Bolsonarista e o Judeu Imaginário

Nesse contexto, a relação da nova direita brasileira com o Judaísmo é diferenciada em relação a outras práticas doutrinárias e religiosas. A recuperação do vínculo com os judeus brasileiros é, na perspectiva dessa direita, a recuperação ao projeto da civilização judaico-cristã e o investimento em um futuro no qual esse elemento seja um dos determinadores de uma nova brasilidade, religiosa e conservadora; judaica e cristã.

Na contramão desse complexo processo, os judeus-bolsonaristas percebem a aproximação com a extrema direita de forma distinta.  Longe de ser uma identidade exclusivamente religiosa, o Judaísmo (ou a Judaidade nos termos Arendtianos), tem uma relação de pertencimento baseada em perspectivas étnicas e culturais. Nas diásporas judaicas, a noção de minoria demográfica e de perseguição antissemita acompanhou a história dessa coletividade. 

Nesse contexto, quando bandeiras e israelenses surgem nas manifestações de extrema direita brasileira e, especificamente, em atos bolsonaristas, os judeus conservadores têm uma impressão inovadora: o candidato de seus vizinhos (brancos de classe média e moradores de grandes centros urbanos) é um candidato pró-Israel e pró-judeu (não há muita diferença entre Israel e os judeus em nenhum dos dois lados). 

Em algum sentido, isso representava um convite difícil de ser recusado, os judeus estavam sendo chamados para ingressar na “comunidade da maioria”. Nesse contexto, as perspectivas da extrema direita produziam a impressão de uma inversão de tendência. Bandeiras de Israel, símbolos judaicos e discursos pró-sionistas os incluíam em uma gramática conhecida e acalentada por eles. Essa gramática agora era compartilhada com uma grande candidatura, uma candidatura de maioria.

A aproximação dos judeus com o Bolsonarismo era, nesse sentido, mais do que um apoio apenas eleitoral; era um tipo de conversão a uma comunidade política que os convidava a fazer parte dela. Por outro lado, os judeus bolsonaristas articulados aos discursos de civilização judaico-cristã, percebiam que não eram apenas eles que se convertiam ao Bolsonarismo, mas acreditavam que era ele  próprio que se convertia ao Judaísmo. 

Pragmaticamente, Bolsonaro via a aproximação dos judeus com sua agenda como uma referência importante para relativizar as constantes acusações de que ele seria nazista ou simpatizante de Hitler. Afinal de contas, como manter essa tese se o diante do apoio vindo de setores importantes da comunidade judaica?

Mas para entender a profundidade desta relação precisamos pensar além das questões pragmáticas. Ideologicamente, a aproximação do Bolsonarismo com o Judaísmo mobilizava diversos elementos caros à nova direita e da extrema direita brasileira. 

O primeiro desses elementos estava vinculado com setores conservadores das religiões cristãs, fossem protestantes ou católicas, que idealizavam a Israel bíblica como seu modelo para o Brasil contemporâneo (me refiro aqui ao Reino de Salomão e a Jerusalém do Templo). 

Em segundo lugar, estava a branquitude. Os judeus no Brasil são vistos como brancos, europeus e vítimas (Antissemitismo e Holocausto), o que parecia ser um importante arranjo para quem via as ações afirmativas, o multiculturalismo e o politicamente correto como ameaça. 

Em terceiro lugar vinha o ultraliberalismo, que apostava nos judeus como bem sucedidos e em Israel como terra do empreendedorismo (o conceito de start up nation). 

Por fim, surgia a ideia de Israel (e dos judeus — não havia muita diferença)  como paraíso das armas e do militarismo. Nesse contexto, Israel, branco, armado, capitalista e cristão se constituiria uma barreira contra a invasão do Oriente e do Islã (ou da esquerda, dos comunistas, da ditadura gay;tudo dependia da imaginação do formulador de plantão).

Interessante perceber que essas referências constitutivas dos quatro grupos bolsonaristas, eram fortemente relacionadas com o “continente antissemita”. Os estigmas do judeu rico e financista, do judeu violento e ameaçador, do judeu racista e que não se misturava e do judeu que não reconhecia Cristo como Messias estavam presentes em cada uma das formulações acima apresentadas. Entretanto, havia agora uma desconexão entre o judeu e o estigma sobre o judeu. Ou melhor dizendo, os estigmas judaicos passavam a ser (com exceção do último, mais complexo), qualidades positivas.

Judeus anti-bolsonaristas

Tudo parecia um casamento perfeito. O Judaísmo como elemento central do Bolsonarismo aproximava judeus a fazerem parte de uma comunidade de maioria. O que atrapalhou o processo foi a firme e potente oposição de setores importantes da comunidade judaica brasileira: os judeus progressistas. Aqueles que se mantinham alinhados com perspectivas tradicionais da etnicidade e da cultura, viam os processos de “conversão política e ideológica à direita” como uma traição ao Judaísmo histórico. Enquanto isso, para os bolsonaristas, a traição vinha desses, agora vistos como falsos judeus.

Ao se sentirem excluídos das entidades comunitárias pelos processos de “conversão e desconversão”, judeus anti-bolsonaristas produziram uma institucionalidade própria. Apontando o bolsonarismo como uma forma de Fascismo, denunciando o Antissemitismo em seu suposto filossemitismo e os posicionamentos anti-democráticos do candidato a presidente, os grupos de Judeus pela Democracia acabaram desafiando os discursos hegemonistas de entidades centrais, principalmente no Rio de Janeiro.

Foi, como exemplo, em um evento dos Judeus pela Democracia, na Associação Sholem Aleichem no Rio, que o candidato à Presidência da República, pelo Partido dos Trabalhadores, encerrou sua campanha em 2018.

 Depois da derrota eleitoral, o grupo de Judeus pela Democracia foi fundamental para a expressão pública de um Judaísmo de esquerda, progressista e anti-bolsonarista. Suas atividades surpreenderam pelo engajamento e pelos resultados. Hoje estas entidades heterodoxas desafiam lógicas tradicionais das instituições representativas judaicas.

Michel Gherman é historiador, professor e coordenador de pesquisa do NIEJ (Núcleo Interdisciplinar de Estudo Judaico) no Instituto de História da UFRJ.