Durante as duas últimas eleições presidenciais brasileiras, a opinião pública e os especialistas da política nacional se viram às voltas para compreender o comportamento eleitoral do grupo que passou a ser tratado como o fiel da balança em qualquer pleito: os evangélicos. Este amplo e diversificado grupo tornou-se um lugar comum das explicações sobre as intenções de voto, o resultado das eleições e a tendência do eleitorado brasileiro em direção a certo conservadorismo. A insistência diária nos evangélicos como fator decisivo da vida política nacional parece ter eclipsado um dado retumbante, o de que ainda somos a maior nação católica do mundo. Daí a justa pergunta que um grupo de sociólogos, historiadores, cientistas políticos e antropólogos passou a enunciar:  e os católicos? Qual é o lugar deles no conservadorismo brasileiro? 

Há pouco mais de um ano, esse grupo de pesquisadores passou a se reunir regularmente no ISER para debater o tema. Esta publicação inaugura uma série de outras, a partir das quais nos propomos a buscar caminhos para responder essas difíceis perguntas. 

De antemão, o que chamo de eclipse do Catolicismo surpreende, afinal, não é difícil de reconhecer a importância que os movimentos católicos leigos tiveram logo no início da história republicana do país para a fermentação de traços do nosso conservadorismo político. 

Foi a partir de uma  tradição contrarrevolucionária francesa que uma estirpe de pensamento e ação antimoderna brasileira foi sendo gestada desde a década de 1920, com, entre outros, Jackson de Figueiredo, Gustavo Corção e Plinio Corrêa de Oliveira. Este último liderou desde meados dos anos 1930 um grupo de militantes católicos, incluindo clérigos, desembocando na criação da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, a TFP, em 1960. O movimento teve destaque entre a direita religiosa brasileira, apoiando o golpe civil-militar de 1964 e o regime ditatorial ao longo de seus anos de existência. Assim, a pergunta inicial a ser feita é: por que, apesar desse reconhecido histórico, o Catolicismo não é pauta dos debates contemporâneos sobre conservadorismo no Brasil?

Três razões se destacam para explicar tal fenômeno. Em primeiro lugar, é possível identificar uma tendência mais geral nas análises sobre os catolicismos no Brasil, de preferência por focalizar as alas mais progressistas do campo, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e seus desdobramentos adjacentes. Ou então, mesmo quando o centro da análise está em segmentos sabidamente mais conservadores, como é o caso do movimento carismático, a opção é por análises internas, que enfatizam o que o fenômeno representa em termos de transformações internas ao próprio catolicismo. Ao que nos parece, essa invisibilidade do traço conservador do Catolicismo contemporâneo está associada à própria trajetória dos/as pesquisadores/as, muitas vezes vinculados aos campos católicos carismáticos e progressistas. 

Em segundo lugar, outra razão para o eclipse do Catolicismo diz respeito ao próprio corte analítico da relação entre religião e conservadorismo no Brasil, que tende a ser feito a partir do comportamento eleitoral, isto é, do voto. A insistência do voto como a única porta de entrada dos pesquisadores no fenômeno do conservadorismo termina por concentrar o olhar dos analistas quase exclusivamente na dinâmica político-partidária e nas eleições como evento chave de suas reflexões. 

Isto não significa que necessariamente os votos dos católicos sejam menos conservadores do que o de outros segmentos religiosos, mas que, talvez, estes votos se dissipem, seja pelo tamanho da população autoidentificada como católica, seja pela própria dinâmica de pertencimento desse grupo, cuja presença regular em atividades religiosas é sabidamente menos constante do que no campo evangélico, por exemplo. 

É a partir dessas observações que emerge a terceira razão para a invisibilidade do Catolicismo no conservadorismo brasileiro. Ela diz respeito à forma de atuação dos grupos conservadores católicos: menos barulhenta do que a evangélica e menos visível nas dinâmicas político-partidárias. Em outras palavras, enquanto olharmos exclusivamente para as eleições e para os atores que vocalizam de modo estridente o seu conservadorismo, não enxergaremos plenamente a atuação católica, que é mais silenciosa, menos atrelada aos pleitos nacionais e mais orgânica no Estado brasileiro. 

Assim, ao nos debruçarmos sobre as duas perguntas antes enunciadas “E os católicos? Qual é o lugar deles no conservadorismo brasileiro?” optamos por dar um passo ao lado, colocando no centro de nossa análise não as disputas eleitorais para o Executivo e Legislativo nacional, mas enfatizar sua atuação no Judiciário. Na esteira do que outros pesquisadores começaram a identificar em diferentes países da América Latina, nós apostamos em uma pesquisa que fosse capaz de captar e dimensionar a força da agenda conservadora católica a partir de sua atuação na esfera jurídica. 

É nesse ambiente institucional, o Judiciário, que a pauta moral dos debates sobre aborto, gênero, sexualidade e ideal de família tem se estabelecido no país. Essa agenda conservadora disputada na esfera jurídica tem ganhado contornos bastante precisos, não apenas em casos de visibilidade nacional disputadas no Supremo Tribunal Federal, como também em tribunais de primeira e segunda instância. 

Foi com esse ímpeto que surgiu a pesquisa cujos resultados serão apresentados numa série  inaugurada por esta publicação. Ao longo de um ano e meio mapeamos os grupos, os institutos, e as associações jurídicas declaradamente católicas que atuaram ao longo das últimas décadas no judiciário brasileiro pautando temas diversos. Os resultados surpreendem. Identificamos dezenas de associações dessa natureza que, como por exemplo, a União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP) e a União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro (UJUCARJ), atuam na esfera jurídic com regularidade, mas sem muita repercussão pública.

Destacamos três aspectos que nos parecem chave para compreendermos esse fenômeno. Em primeiro lugar, há uma temporalidade particular no surgimento desses grupos, fundados em sua maioria na década de 2010. Esse período parece marcar uma inflexão da atuação conservadora católica no Judiciário brasileiro. Em segundo lugar, o papel que esses grupos desempenham não apenas na atuação direta em algumas causas, como também na formação de advogados, promovendo cursos, vivências e seminários regulares. E, por fim, o financiamento dessas atuações, que apontam para uma ampla rede internacional de circulação de dinheiro capaz de inscrever os grupos católicos brasileiros em um ambiente global de judicialização da pauta moral religiosa.  

Desdobraremos todos estes temas nas próximas publicações desta série. Boa leitura. 

Rodrigo Toniol é professor do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ e em Antropologia da Unicamp. É Membro Afiliado da Academia Brasileira de Ciências.

Imagem de capa gerada por inteligência artificial com o prompt “justice symbol with rosary beads, ultrarrealistic, 4k”, com o modelo SDXL.