Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 28 set 2022

A cilada do mérito é que ele nos faz reforçar o sistema que só existe estruturalmente baseado na desigualdade e na distinçãoAssisti recentemente ao longa “King Richard: criando campeãs”, um dos concorrentes ao Oscar em 2022, protagonizado por Will Smith no papel de pai e arquiteto das carreiras de suas filhas Vênus e Serena Williams. No filme, Richard Williams narra sua vida através de experiências traumáticas de humilhação e em todas elas a questão racial se pronunciava. Richard era atormentado pelas lembranças e pelo medo. Na criação de suas filhas, o medo se revelava diante da possibilidade do fracasso alcança-las, pois este seria o caminho desenhado para negros e negras do gueto, como ele diz: drogadição, prostituição, abandono escolar. Para superar o destino, ele investiu em disciplina, persistência, consciência racial, religião, planejamento. A narrativa captura nossas emoções porque se baseia num princípio presente na moral pública: o mérito. Esse princípio costura todas as viradas do roteiro provocando uma empatia na audiência. Em minha ótica, o mérito é uma ideologia produtora de esperança, sentimento fundamental para a vida cotidiana, tirando da religião seu monopólio, mas guarda em si uma cilada. Por quê?

Há excelentes estudos sobre o tema como o livro de Michael Sandel, “A tirania do mérito”. O mérito foi forjado no seio do capitalismo e se transformou em uma mola propulsora de sua reprodução e atualização. Digo que o mérito busca universalizar a motivação para a ação dentro de valores do sistema em direção a conquistas tomadas como certas mediante o exercício de três habilidades: sacrifício, perseverança e disciplina. Essa narrativa se torna cada vez mais poderosa na medida em que as desigualdades se acentuam no mundo. Parece contraditório, mas não é. Quanto mais desigualdade, mais ânimo é necessário para lidar com as explorações impostas pelo sistema. Sabemos que as religiões são instituições sociais importantíssimas, pois contribuem na produção de sentidos de vida e para a ação no mundo. Algumas delas são importantes também para a difusão do mérito. Através da fórmula sacrifício, perseverança e disciplina, o cristianismo, seja em sua face empreendedora jesuíta, carismática ou neopentecostal, faz crer na possibilidade de ser próspero nas mais variadas esferas da vida e não só econômica. E qual é o mal das pessoas quererem ter uma vida que parece tão mais organizada e inspiradora? Qual o mal do mérito em sua formulação seja religiosa, seja econômico-social? A cilada do mérito está em mascarar os problemas coletivos apostando em soluções individuais vendendo a ilusão de que os bens valorizados socialmente estão disponíveis para todos, basta querer e investir em sua conquista. Mais ainda, a cilada do mérito é que ele nos faz reforçar o sistema que só existe estruturalmente baseado na desigualdade, na distinção.

O mérito justifica e naturaliza a desigualdade e a distinção a tal ponto que todas as suas formas de existência são legítimas, desde programas vips nas companhias aéreas até poder comprar carne de primeira e não de segunda, ter ou não carro, comer com mais ou menos variedade. O princípio do mérito neoliberal, portanto, alimenta o sofrimento extremo – material e psíquico. Não se trata aqui de negar a importância da perseverança, da disciplina e do sacrifício estratégico dos desejos para viver o dia a dia ou para organizar algum projeto individual ou coletivo. Mas em direção ao quê? Ao reforço de sistemas como o neoliberal que, por sua vez, se baseiam na desigualdade? É preciso entender que o mérito como princípio moral em nossa sociedade alimenta essa roda porque para produzir a narrativa de superação é preciso que haja as condições difíceis e desiguais a serem superadas.

Novamente aqui o cristianismo, sobretudo em sua face evangélica, tem um ethos favorável ao mérito na medida em que, por exemplo, o testemunho tem um lugar importante no ritual e na reprodução das igrejas e nele as histórias de superação são marcadas por uma narrativa que anuncia a desgraça pretérita e a vida abundante após a conversão e a santificação do indivíduo que inclui, irremediavelmente, a fórmula do mérito. Mas a ideologia do mérito está direcionada somente para os mais pobres? Não. Ela é importante para justificar a dominação de classe na medida em que as elites, assim o seriam por terem a habilidade de equacionar de modo eficiente sacrifício, disciplina e perseverança. O mérito e o narcisismo dominam as narrativas de sucesso apresentadas em biografias ao longo da história, em particular agora, em plataformas na internet. As facilidades estruturais do sistema para o sucesso individual como origem familiar, especulação financeira, exploração de trabalhadores em países em desenvolvimento etc não são destacados, pois enfraqueceriam a ideologia do mérito.

Voltando nossa atenção para o Brasil, como o mérito atravessa projetos para negros e negras no país? Em qual medida o incentivo à ascensão social de negros e negras a cargos de chefia pode incorrer no reforço daquilo que alimenta o racismo estrutural? Como reagir coletivamente à cilada produzida por esta situação? Como ascender no sistema, dizer que os negros e negras são capazes, sem reforçar o que lhes enfraquece como coletivo? Em entrevista no podcast “Mano a Mano”, Djonga e Mano Brown falam sobre como estariam “perdendo os manos” para o bolsonarismo. Eles nos fazem pensar sobre o que a direita oferece a negros e negras, pessoas residentes em periferias e favelas.

Acompanhando os processos eleitorais e debates públicos ao longo de alguns anos, observo que as candidaturas de direita oferecem aos negros e negras, em geral, o que se vem chamando de “embranquecimento” em suas mais variadas formas, como a da ascensão econômica pelo mérito, sua valorização e livre ostentação como signo de sucesso. Diante de uma oferta como essas, subtexto da conversa de Djonga e Brown, eles perguntavam um ao outro: “O que estamos oferecendo aos manos”? Um incentivo ao empoderamento social pela via do cumprimento do tripé do mérito. E não viam problema nisso, claro. Disciplina, perseverança e sacrifício não são monopólio do neoliberalismo. São parte constitutiva da vida social, como já disse acima. O dilema parecia surgir quanto ao usufruto dos bens conquistados. Demonstravam uma confusão diante do incentivo prévio à aquisição de bens e sucesso pelo mérito e, por outro lado, uma dificuldade ou impossibilidade em lidar com os interditos à ostentação. Os manos estão ficando ricos, mas não podem mostrar que o tem? Um dilema moral e também político se torna evidente e já foi denunciado por muitos ativistas da questão racial, como a própria Sueli Carneiro. Contudo, a sedução do mérito ronda a sociedade e é manipulado eleitoralmente como forma até de negação do racismo no Brasil como vemos em campanhas e encontros promovidos por grupos de políticos auto identificados como conservadores.

Em igrejas evangélicas, o mérito secular e espiritual é recurso fundamental para a justificação de posições na hierarquia, além de servir como instrumento de negação da própria identidade racial e da ancestralidade africana como vemos nos estudos de John Burdik, Morana Reina, Regina Novaes e Marco Davi Oliveira. Nesse contexto, por questões partidárias e da força que a temática racial tem na sociedade brasileira, observamos um número cada vez maior de negros e negras se candidatando. As eleições de 2020 contaram com o maior número de candidaturas de pessoas negras já registradas na história do Tribunal Superior Eleitoral com um número de eleitos para a vereança na ordem de 51% do total.

Nessas eleições, a pauta racial tem grande importância nas candidaturas em partidos de esquerda e centro esquerda como vimos no pleito passado com pautas comuns em torno do combate ao racismo estrutural e todas as suas formas de expressão, combate às intolerâncias. E as candidaturas de negros e negras em partidos de direita? A questão racial aparece nessas campanhas? Como? Ou negros e negras nesses partidos atendem somente às cotas definidas pela legislação eleitoral? Como, enfim, a narrativa do mérito aparece em candidaturas à esquerda ou ligadas à direita? Estas eleições serão um bom momento de observação.

Christina Vital da Cunha é professora do PPGS (Programa de Pós-Graduação em Sociologia) da UFF (Universidade Federal Fluminense), coordenadora do LePar/UFF e pesquisadora do ISER.