Atualizado em: 14/11/2023 às 20h57

As eleições de 2022 tiveram o maior número de candidaturas para a Câmara Federal desde a redemocratização nos anos 1980. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foram 10.629 inscrições para deputados federais, número bem superior aos 8.588 registrados nas eleições de 2018 para o mesmo cargo.  Houve um crescimento, de inscrições de mulheres e pessoas negras. Do total, 35% dos inscritos em 2022 eram mulheres e 14% pessoas negras. 

Ao analisarmos os dados do TSE em 2022 para todos os cargos, um total de 27.600 candidaturas deferidas, identificamos 588 com nome de urna religioso (considerados católicos, evangélicos e afrorreligiosos). Dessas, 555 eram evangélicas, 21 afrorreligiosas e 12 católicas. Na disputa para  uma vaga na Câmara Federal, tivemos, entre estes, com nome de urna com identidade religiosa, 171 candidaturas evangélicas, cinco católicas e cinco afrorreligiosas. 

Em partidos de esquerda e centro-esquerda (PSB, REDE, PDT, PT, PSOL, PSTU, PCdoB, UP), identificamos, entre os nomes de urna com identidade religiosa, um total de nove candidaturas evangélicas, duas afrorreligiosas e uma católica. Esses números não representam o total de ofertas de candidaturas de religiosos à esquerda, pois sabemos, inclusive, que neste espectro político, a identidade religiosa é menos mobilizada como capital nas disputas políticas. Ao menos foi assim até aqui (Vital da Cunha, 2021; Vital da Cunha e Moura, 2021; Reis, Cunha, Pestana e Abreu, 2022). Um caso excepcional e vitorioso foi o de Henrique Vieira (PSOL-RJ), cujo nome de urna registrado no TSE trazia seu título religioso como pastor. 

Para a Câmara Federal, em 2022, foram eleitos cinco parlamentares evangélicos em partidos de esquerda e centro-esquerda. Evidentemente a oposição à extrema-direita e ao extremismo religioso não está circunscrita a esses partidos e nem somente os autodeclarados fizeram papel de oposição naquele pleito e na atual legislatura, com é o caso da senadora Eliziane Gama (PSD-MA) e do deputado federal André Janones (AVANTE – MG). 

A vida parlamentar é muito dinâmica e o fluxo de suplência desafia constantemente os retratos que as pesquisas conseguem fazer desses números. No entanto, tomando outubro de 2023 como nosso presente etnográfico, e levando em conta a importância de pensarmos as regularidades e as singularidades dos perfis desses parlamentares, vamos a eles e elas.  

Dos cinco parlamentares evangélicos à esquerda eleitos em 2022, três são do Rio de Janeiro. A maioria são mulheres e pessoas negras (entre autodeclarados e hetoroidentificados). Em contraposição ao perfil dos evangélicos engajados nos trabalhos da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), os políticos à esquerda têm uma trajetória comum: foram formados através da participação em movimentos sociais, urbanos ou do campo, em torno de causas sindicais, ambientais, animais, de moradia/favelas, no combate à fome e à pobreza. Ao longo dos anos, a defesa do acesso à cultura, o combate ao racismo e a defesa da igualdade de gênero e da diversidade sexual ganharam força em termos da atuação política de parlamentares evangélicos à esquerda. O engajamento social ocorreu, na maior parte dos casos, pela experiência religiosa ligada ao Cristianismo da Libertação (Lowy, 2016), espaço teológico de reunião de evangélicos progressistas, populares ou à esquerda. 

Uma experiência comum aos políticos apresentados a seguir é o drama de serem, ora descreditados por suas comunidades religiosas de origem, muitas vezes refratárias ao engajamento político partidário, ora pela “esquerda tradicional” ou “não religiosa”. A desconfiança em torno deles no ambiente partidário e religioso vai sendo contornada, mas não superada completamente diante da hegemonia conservadora cristã que reforça estigmas em relação ao grupo como um todo (Vital da Cunha, 2021).  

Observa-se nos casos acompanhados durante a pesquisa realizada pelo ISER e a Fundação Heinrich Boll, em parceria com o LePar/UFF, e nos que se seguem, uma atuação política voltada às questões sociais tratadas como as verdadeiras “questões do Reino”. É uma visão baseada no Evangelho da Libertação que relaciona o exercício da prática religiosa à defesa dos mais pobres, das minorias estigmatizadas, da igualdade de direitos para todos, da vida comunitária.   

Alguns dos parlamentares com mandatos por partidos à esquerda estão integrados formalmente à FPE. Outros recusam esta vinculação e não participam das atividades litúrgicas semanais realizadas pelos líderes da frente na câmara. 

A maior parte desses parlamentares evangélicos à esquerda eleitos para a Câmara Federal são políticos de projeção nacional. Vejamos:

  1. Benedita da Silva (PT-RJ), 81 anos 

Bené, como é conhecida desde a juventude, possui formação superior como assistente social, tendo anteriormente concluído o curso de auxiliar de enfermagem.  Foi batizada na Assembleia de Deus, aos 26 anos de idade (1968), e já há alguns anos congrega na Igreja Presbiteriana do Brasil. 

Iniciou suas atividades de luta política durante a Ditadura Militar. No movimento de favelas, militava em prol da melhoria nas condições de vida dos moradores do morro Chapéu Mangueira, onde residia. Era responsável, “pela organização de mulheres e crianças em projetos de alfabetização, pela criação dos comitês de favela que reivindicavam melhores condições de moradia e saneamento básico, pela fundação do Movimento de Mulheres de Favela, pela criação da Federação das Favelas do Rio de Janeiro” (Machado 2002:140).

Está na política partidária pelo PT desde sua fundação, nos anos 1980. Foi vereadora, na cidade do Rio de Janeiro, em 1982, e candidata eleita deputada federal pelo Estado do Rio, em 1986, sendo constituinte e a primeira mulher negra eleita para a Câmara Federal no país. Na Constituinte, atuou como titular da Subcomissão dos Negros, das Populações Indígenas e Minorias. Em seguida, passou à Comissão de Ordem Social e da Comissão dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher.

Benedita foi candidata à prefeitura do Rio em 1992 e em 2020. Foi a primeira senadora negra da história do país durante a 50ª e 51ª legislaturas (início em 1995). Em 1998, foi eleita vice-governadora na chapa com Anthony Garotinho (PDT). Assumiu o governo por alguns meses, em 2002, durante o afastamento do governador para concorrer à Presidência da República.  Em 2003, assumiu o Ministério da Assistência e Promoção Social no primeiro governo Lula. Foi eleita deputada federal em 2010, 2014, 2018 e 2022. 

Foi autora do projeto que inscreveu Zumbi dos Palmares no panteão dos heróis nacionais, instituiu o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, além de outros projetos que propõem a inclusão de negros nas produções das emissoras de televisão, filmes e peças publicitárias. Também criou delegacias especiais para apurar crimes raciais, cota mínima em instituições de ensino superior e foi autora da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. 

  1. Marina Silva (REDE- SP), 65 anos

Marina Silva é uma das políticas brasileiras de maior projeção nacional e internacional. É evangélica da Assembleia de Deus. Tem uma sólida e conhecida trajetória política que remonta à atividade nos seringais do Acre, seu estado natal. O movimento ao mesmo tempo trabalhista e ambiental, assim como a Teologia da Libertação, na Igreja Católica, formaram o interesse e o modo de atuação de Marina desde sua juventude. 

Ao lado de Chico Mendes ajudou a liderar o movimento sindical e ambiental no Acre. No ano da chocante e tão noticiada morte do líder seringueiro ambientalista, 1988, Marina se elegeu vereadora por Rio Branco, no PT. Em seguida, sempre pelo PT, foi deputada estadual e depois foi eleita senadora pelo Acre em 1994, aos 36 anos, a mais nova a se eleger para este cargo na história do país. Foi ministra do Meio Ambiente nos dois primeiros mandatos da Presidência da República de Lula, entre 2003 e 2008.  

Foi filiada ao PT entre 1986 e 2009, quando se transferiu para o Partido Verde (PV), pelo qual concorreu duas vezes à Presidência da República (2010 e 2014). Desde 2015 fundou e segue filiada à Rede Sustentabilidade, partido pelo qual concorreu ao principal cargo Executivo em 2018.  

Em 2022 elegeu-se deputada federal por São Paulo, na Rede Sustentabilidade.  Com o novo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado em 2023, foi, novamente, nomeada Ministra do Meio Ambiente. 

Marina é historiadora formada pela Universidade Federal do Acre e realizou pós-graduações nas áreas de Psicanálise e Psicopedagogia. Foi laureada com inúmeros prêmios e menções e é uma das principais vozes globais na defesa do meio ambiente.

  1. Henrique Vieira (PSOL-RJ), 36 anos 

Henrique dos Santos Vieira Lima, ator, pastor da Igreja Batista do Caminho, bacharel em Ciências Sociais, historiador e teólogo, é um dos parlamentares de maior destaque no Congresso Nacional na atualidade. Sua identidade evangélica emerge como capital político e social, no entanto, com notória atuação no combate ao racismo, às desigualdades sociais, de gênero e sexuais. As “agendas do Reino, segundo os integrantes da Frente Parlamentar Evangélica, são aquelas de principal interesse desse grupo religioso e se circunscreveriam às pautas de costume e tradição” (Vital da Cunha 2017). No entanto, Vieira disputa o sentido dessas “agendas do Reino” denunciando o tratamento dado por parlamentares evangélicos conservadores a elas e imprimindo-lhes um outro sentido, o verdadeiro sentido que seria de integração e de inclusão, respeitando o que ensina o chamado “Evangelho da Libertação” (Vital da Cunha, 2021).  

Henrique Vieira está no primeiro mandato na Câmara Federal, mas sua atuação política começou há mais de uma década. Na juventude, ainda como estudante do Ensino Médio, teve Marcelo Freixo como professor de História e suas aulas consolidaram seu interesse nas questões sociais. Posteriormente, integrou movimentos estudantis que ajudaram a formar seu interesse e modo de ação política como o coletivo “Nós não vamos pagar nada”, entre outros, além do engajamento no “Cristianismo da Libertação”. Foi assim que, mesmo em meio a um grande descrédito público em relação à política institucional no Brasil, Henrique Vieira se candidatou pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) à vereança, por Niterói ,em 2012, aos 25 anos de idade. Como vereador presidiu a Comissão de Meio Ambiente da casa e integrou a Comissão Parlamentar de Inquérito dos Transportes. 

Ao contrário de Benedita da Silva, Vieira cresceu em lar evangélico. É uma questão sociológica importante na medida em que é indicativa da consolidação da reprodução religiosa familiar em marcos evangélicos e não mais, hegemonicamente católico como era até então, sobretudo em se tratando dos residentes e/ou nascidos em favelas e periferias urbanas (Vital da Cunha, 2021). 

Na atual legislatura Henrique Vieira tem se destacado pela participação em Comissões como a da Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família e naquela que ficou conhecida como Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Golpe, do 8 de janeiro, ou, ainda, como CPMI dos Atos Antidemocráticos. Parlamentares e internautas em geral enfatizam nas mídias sociais a atuação de Vieira como consistente e sensata.  Dentro e fora do Congresso Nacional tem sido uma voz importante no combate ao discurso de ódio. 

Como artista, participou de peças, shows de música e do longa-metragem nacional de grande sucesso, Marighella (2021). É também poeta e autor de livros de grande circulação como Jesus Negro: o grito antirracista da Bíblia (Ed. Planeta) e O amor como revolução (Ed. Objetiva), entre outros títulos. 

  1. Rejane Ribeiro Dias (PT-PI), 51 anos

Rejane Dias é formada em Administração e Direito e evangélica da Igreja Batista. Concorreu pela primeira vez a deputada estadual pelo PT do Piauí, em 2010, sendo vitoriosa. Concorreu pela primeira vez a deputada estadual pelo PT do Piauí, em 2010, sendo vitoriosa. Foi, pela primeira vez, deputada federal, pelo PT-PI, em 2014, sendo reeleita em 2018 e 2022. Durante a vida parlamentar muito ativa, esteve envolvida em comissões da mulher, saúde e pessoas com deficiência, foi licenciada do cargo de deputada federal para assumir a Secretaria de Educação e Cultura de seu estado. Na atual legislatura renunciou ao cargo para assumir o Tribunal de Contas do Estado do Piauí.

Sua militância na defesa aos direitos das pessoas com deficiência é grande. Atuou pela revisão de impostos para aquisição de veículos pessoas com deficiência; pela regulação do direito ao uso prioritário no transporte público de pessoas autistas, durante a pandemia de Covid-19; por medidas para tornar essencial o serviço de organizações sem fins lucrativos que prestam ação social ou atendimento a pessoas com deficiência; foi coautora do PL para determinar que o Dia Nacional de Combate e Prevenção da Hanseníase seja comemorado no Brasil, anualmente, em 7 de maio; requereu a realização de atividades comemorativas em alusão ao Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. A defesa das mulheres também foi muito significativa durante seus mandatos com, por exemplo, solicitação de dotação orçamentária destinada à Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência. 

  1. Marcos Paulo Barbosa Tavares (PDT-RJ), 45 anos

Marcos Tavares é bacharel em direito. Nas mídias sociais revela que foi durante o estágio na Defensoria Pública à época de sua formação na Unigranrio que despertou nele a vontade de atuar em causas sociais. Foi eleito vereador pelo município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, em 2012. Reelegeu-se por três mandatos consecutivos. Em 2022 candidatou-se à Câmara Federal com êxito. A pesquisa do ISER levantou que Tavares mobilizou uma identidade religiosa evangélica na campanha eleitoral por meio da participação em cultos, não tendo sido identificado o pertencimento a determinada denominação.

Em sua carreira político-partidária, iniciada em 2003, foi filiado ao PT, ao PSDC, ao AVANTE e agora integra o PDT. Foi secretário de Meio Ambiente e Proteção Animal em Duque de Caxias. Levou esta bandeira de luta pelos animais para o Congresso Nacional, propondo a criação de postos de saúde para atendimento de animais, unidades móveis veterinárias, assim como farmácias populares veterinárias. É impulsionador de inúmeras campanhas em favor do cuidado e da vida dos animais. Também é antigo defensor da causa dos idosos, inclusive, da criação do Hospital do Idoso. A causa da saúde pública de qualidade e da defesa animal são suas agendas prioritárias.

Na atual legislatura é membro titular da Comissão de Constituição e Justiça, a comissão permanente mais estratégica da casa, e da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa. 

Christina Vital da Cunha é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Coordenadora do LePar – Laboratório de Estudos sócio antropológicos em política, arte e religião (UFF) e editora da revista Religião & Sociedade.

Referências:

LOWY, Michel. O  que é o cristianismo da libertação?. São Paulo: Perseu Abramo, 2016. 

MACHADO, M. D. C.; FIGUEIREDO, F. M. . Gênero, religião e política: as evangélicas nas disputas eleitorais da cidade do Rio de Janeiro. Ciencias Sociales y Religión, Porto Alegre, v. 4, p. 125-148, 2002.

VITAL DA CUNHA, Christina. Televisão para salvar: religião, mídia e democracia no Brasil contemporâneo. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, v.42, p.199 – 235, 2017.

VITAL DA CUNHA, Christina.  MOURA, J. L. . Identidades, números e histórias de evangélicos nas eleições 2020. COMUNICAÇÕES DO ISER, v. 40, p. 7-11, 2021.

VITAL DA CUNHA, Christina. Cultura pentecostal em periferias cariocas: grafites e agenciamentos políticos nacionais. Disponível em: https://doi.org/10.11606 , v.28, p.80 – 108, 2021.

VITAL DA CUNHA, Christina. Irmãos contra o império: evangélicos de esquerda nas eleições 2020 no brasil. Debates do NER, v. 21, n. 39, Porto Alegre, 2021a. p. 13-80.