Uma novidade se anunciou nestas eleições no Brasil: a organização de vários coletivos de esquerda evangélica na disputa por cargos no executivo e legislativo municipais. Um destes coletivos se apresentou como movimento Bancada Evangélica Popular. Foi lançado oficialmente em 05/07/2020, em uma live no Facebook, por iniciativa de oito lideranças evangélicas: Ariovaldo Ramos (Pastor, Coordenador da Frente de Evangélicos Pelo Estado de Direito); Daniel Santos (Pastor na Comunidade Cristã na Zona Leste/SP); Eliad Dias (Pastora na Igreja Metodista da Luz/SP); João Paulo Berlofa (Pastor na Igreja da Garagem, Coordenador do Coletivo Inadequados); Ricardo Assunção (Pastor nas lutas por Moradia, Frente de Luta por Moradia, Igreja da comunidade Metropolitana de São Paulo); Samuel Oliveira (Ativista, membro da Frente de Evangélicos Pelo Estado de Direito, membro na Comunidade Cristã na Zona Leste/SP); Valéria Vilhena (Pastora, Coordenadora da EIG – Evangélicas Pela Igualdade de Gênero, Igreja Metodista da Luz) e William Carvalho (Presbítero na Comunidade Cristã na Zona Leste/SP).

A Bancada Evangélica Popular teve como propósito apoiar candidaturas de evangélicos e evangélicas de esquerda cuja bandeira de luta fossem, prioritariamente, a defesa da laicidade e a melhoria das condições de vida das pessoas mais pobres mediante uma perspectiva cristã igualitária. Na campanha, foi explorada uma interpretação bíblica comum a seus integrantes articulando afinidades políticas com um sentido de missão transformadora inspirados na figura de Cristo. As mensagens e passagens em cujo amor e a inclusão daqueles à margem da sociedade ganharam destaque no material de campanha e nas redes sociais dos que concorriam com apoio do BEP.  No manifesto de lançamento do movimento é possível ler: “Entendidos que nosso papel no Reino vai para além de nossas denominações, tomamos uma frente de luta direta. Entendidos de que nós somos missionários e missionárias do Reino de Deus para pregar justiça, paz, amor e misericórdia, contra todo tipo de injustiça, ódio, opressão e desigualdade. Entendidos que numa sociedade isso significa lutar por políticas públicas e governos que visem a igualde social e o bem do nosso povo”.

Nas entrevistas que realizamos e nas redes do movimento, apresentavam uma pretensão de abrangência nacional, embora os apoios ocorressem principalmente em São Paulo com incidência menor em outros estados do Sul e Sudeste. O caráter pluripartidário pretendido pelo movimento se fez valer com candidaturas em partidos como REDE, PT, PSOL e PcdoB. 

Como pautas prioritárias das candidaturas apoiadas podemos destacar a atenção à saúde e educação das populações mais pobres residentes em periferias, apoio à população de rua e reformulação nas políticas de atendimento e combate à drogadição, ampliação ao atendimento à mulher nos serviços públicos municipais, mobilidade urbana e combate ao extremismo conservador evangélico na política, a afirmação do Estado Laico e, dois pontos muito importantes em grande parte dessas candidaturas, o tema da ampliação de direitos e reconhecimento das mulheres e negros no Brasil.

Além da disputa institucional, o movimento tem como objetivo apresentar à sociedade um modo de ser evangélico ligado à defesa da justiça social e do amor ao próximo, como várias de suas lideranças declararam na mídia e em entrevistas realizadas em nossa pesquisa. Neste sentido, buscam, por exemplo, se opor política e teologicamente a evangélicos conservadores que formam o grupo hegemônico na Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional.

Durante a campanha 2020 foram alvo de líderes religiosos extremistas que se contrapunham à leitura bíblica feita pelos integrantes do BEP. Em lives, em matérias veiculadas nos canais de mídia de igrejas neopentecostais e em parte da mídia gospel foram acusados de falsos profetas, de distorcerem a Bíblia, de dividirem os evangélicos, de serem defensores da desordem e de solaparem os valores cristãos ao apoiarem pautas inclusivas. Argumentavam que seria incompatível ser de esquerda e ser evangélico sustentando esta perspectiva em pânicos morais sobre questões de gênero e aborto, distorcendo informações passadas sobre educação e projetos de lei em curso. Em reação, o BEP produziu novos materiais de campanha, uma nota de repúdio e fizeram lives com integrantes dos grupos integrantes do movimento, advogados e líderes religiosos. Nestes encontros virtuais falaram em favor da liberdade, do que seria o verdadeiro cristianismo voltado à justiça social, aos pobres, aos que foram postos à margem da sociedade, do amor contra os ódios, da verdade contra as falsas notícias e o medo.  

Foram cinco as candidaturas apoiadas pelo BEP – Ivanete Xavier (candidatura coletiva – REDE) em Curitiba; Dagmar Santos (PT) em Salvador; Samuel Oliveira (PCdoB) em São Paulo, Vinícius Lima (REDE) em São Paulo e Pastor Berlofa Bancada Popular (PSOL) em Mogi das Cruzes/SP. Nenhuma delas foi vitoriosa nas urnas (somente Dagmar Santos e Pastor Berlofa Bancada Popular conseguiram suplência). Inicialmente, se anunciava um número muito maior. No entanto, a partir do processo de burocratização que contatava com inscrição e assinatura de um termo de compromisso pelos candidatos, somente este quantitativo aderiu ao movimento. Nossa pesquisa acompanhou estas e outras candidaturas de esquerda evangélica não ligadas, necessariamente, a movimentos religiosos organizados. Os limites encontrados por todas elas foram inúmeros dos quais destacamos a questão da falta de investimento partidário (somente alguns poucos nomes contaram com apoio de mídia e recursos financeiros e humanos mais significativos dos partidos, caso de Willian Siri – PSOL/RJ, vitorioso nas urnas); a inexperiência de vários dos candidatos (muitos concorrendo pela primeira vez); a pouca mobilização dos recursos de mídia (alguns candidatos não tinham rede social ou, quando tinha, usavam precariamente sem impulsionamento ou padrão visual nas postagens); os ataques morais que sofreram de evangélicos conservadores na tentativa de deslegitimar suas imagens como candidatos e como religiosos. Certamente o contexto mais geral de ostensividade conservadora no Brasil configurou um desafio a todas as candidaturas de esquerda nestas eleições. No caso dos evangélicos, além deste contexto, a resistência encontrada às suas candidaturas entre partidários de esquerda tornou a remada contra a maré ainda mais penosa. 

Como as mídias sociais e a imprensa são tomadas por mensagens e notícias de líderes evangélicos conservadores, extremistas e vários fundamentalistas, as reportagens sobre a BEP receberam destaque no meio do ano e tinham um tom alvissareiro, como se uma mudança estivesse se iniciando, como se fosse uma onda “do bem”, um fenômeno significativo do vigor democrático. Esta metáfora da onda foi muito mobilizada por acadêmicos e pela mídia para falar sobre o conservadorismo recente no Brasil. A analogia política com a onda é eficiente na medida em que sua imagem guarda um sentido de algo grande e que se impõe pela força. Contudo, o sentido efêmero igualmente contido nela não corresponde em nada ao fenômeno do conservadorismo que não é novo. Pelo contrário, é correto dizer que o conservadorismo é estruturante das relações sociais no país. No caso do movimento BEP, a metáfora da onda seria um recurso analítico também limitado pelo efeito inverso da analogia com o conservadorismo: ela não foi vultosa e morreu na praia. Será? As pesquisas interdisciplinares e interinstitucionais são muito importantes para dar visibilidade e compreensão aos acontecimentos sociais que muitas vezes causam medos, apatias esvaziando sentidos de coletividade, segurança, como disseram clássicos como Durkheim e autores mais contemporâneos como Charles W. Mills. Os sentidos da história não estão definidos previamente. O jogo social e político deve ser acompanhado de perto, em suas minúcias nas quais desvendamos sentidos e potencialidades.

Christina Vital da Cunha é Professora Associada do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF. Coordena o Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião (LePar) e é colaboradora do ISER desde 2002.

João Luiz Moura é mestre em ciências da religião, pesquisador visitante no Instituto de Estudos da Religião (ISER). Tem pesquisado religião, economia política e direito.