Não é de hoje que cientistas sociais advertem sobre a diversidade existente no campo evangélico brasileiro. Mais recentemente, boa parte da mídia mais qualificada vem produzindo matérias, artigos de opinião reforçando esse princípio que começa a ressoar como mantra: os evangélicos são diversos entre si. No entanto, observo como a maioria desses jornalistas destacam uma diferença ao reforçarem oposições excludentes entre “esquerda evangélica” e “conservadores evangélicos”. 

No entanto, novamente nós, cientistas sociais, alertamos que as diferenças internas ao grupo não se circunscrevem a essas grandes chaves ideológicas. Entre os chamados e autointitulados conservadores há divergências, assim como entre esse grande grupo identificado como “à esquerda”. O recente debate em torno do Projeto de Lei 2/2019, de autoria do deputado federal Pastor Sargento Isidoro (Avante, BA) evidência, mais uma vez, a diversidade interna dos “conservadores evangélicos”. 

Este foi o primeiro projeto de lei ordinária apresentado na Câmara de Deputados, no então início do governo de Jair Bolsonaro. Emblemático! O PL 2/2019 tinha como objetivo, conforme sua redação original, proibir “o uso do nome e/ou título BÍBLIA ou BÍBLIA SAGRADA em qualquer publicação impressa e/ou eletrônica com conteúdo (livros, capítulos e versículos) diferente do já consagrado há milênios pelas diversas religiões Cristãs (Católicas, Evangélicas e outras que se orientam por este Livro -Bíblia)”. 

Em 10 de março de 2022, a Câmara dos Deputados colocou, como primeiro item da pauta de votações, o requerimento assinado por líderes e ex-líderes de 16 partidos, que pedia tramitação, em caráter de urgência, para o projeto do Pastor Isidoro. O requerimento de urgência permite à Câmara votar o mérito da proposta sem a necessidade de que ela tramite pelas comissões. O texto que solicita a tramitação expressa foi assinado por partidos da direita à esquerda. Segundo matérias veiculadas na grande imprensa, o requerimento de urgência foi assinado em dezembro de 2021 por líderes das bancadas do Avante, MDB, Patriota, PSC, PTB, PL, Solidariedade, PSB, PSD, PT, PCdoB, Republicanos, PSDB, Podemos, PP, DEM e PSL (esses dois últimos se fundiram no União Brasil).

Conforme o segundo parágrafo do PL 2/2019, podemos ler que “O uso indevido dos termos “Bíblia” e/ou “Bíblia Sagrada” será passível de punição seguindo a tipificação do crime de estelionato, por meio do Artigo nº 171 (obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento), e também com base no Artigo nº 208 (escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa, impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso), ambos previsto no Código Penal.

As justificativas dadas pelo deputado, autoidentificado como ex-homossexual, é que a palavra “traz consigo uma carga semântica fortíssima, principalmente quando é possível vislumbrar a intenção de alguém ou de algum grupo para mudar e/ou distorcer o conteúdo original e tradicional dos livros, capítulos e versículos sacros e já consagrados pela literatura cristã de todas as religiões. É o caso da polêmica do livro em edição que se especula chamar bíblia gay. Veja o absurdo: há indícios que tal livro pretende tirar as referências que condenam o homossexualismo. Seria uma verdadeira heresia e total desrespeito as autoridades eclesiásticas”. (PL 2/2019). 

Fortalecendo seu argumento a partir das estatísticas oficiais que contabilizam que mais de 90% da população brasileira é cristã, Pastor Isidoro constrói a ideia de que o desrespeito à Bíblia seria um desrespeito à maioria dos brasileiros e, no limite, uma ofensa à nação. Nas palavras do deputado, no texto original do PL: “O que o Parlamento e as instituições sérias desta Nação não poderão permitir! Sob pena de aviltarmos, vilipendiarmos e defraudarmos o Livro que mais orienta beneficamente a FAMÍLIA –célula mater de uma Nação, bem como toda a sociedade”. 

Embora desde 2019 a homofobia seja considerada crime no Brasil, equiparável ao racismo, o projeto seguiu a passos largos no Congresso Nacional. Segundo noticiado em alguns jornais, a motivação de assinatura do requerimento de urgência para o PL 2/2019 foi a solidariedade dos colegas em relação a Isidoro, que havia perdido um filho no mês anterior ao pedido das assinaturas, vítima de afogamento em uma praia da Bahia. Porém, dada a grande visibilidade do caso, alguns deputados resolveram se retratar solicitando retirada de suas assinaturas do projeto, como foi o caso do deputado Bohn Gass (PT-RS). 

Dimensões políticas do caso

Em minha análise, contudo, ao menos três dimensões políticas envolvem tanto a proposição deste PL, quando seu requerimento de tramitação em regime de urgência. Em primeiro lugar, um aceno do próprio proponente as suas bases eleitorais com vistas a  “prestar contas” do mandato ao mesmo tempo em que buscava se fortalecer junto a/fidelizar essas bases. 

Um segundo elemento a ser considerado na tentativa de emplacar vistas ao projeto neste ano eleitoral vem do interesse de diferentes líderes partidários em se mostrarem sensíveis às pautas de interesse da “comunidade evangélica” no Brasil, ainda que soubessem da inviabilidade de aprovação do texto. 

Um terceiro aspecto a se observar nesta proposta tem relação com um processo de mais longa data relativa a uma disputa interna aos evangélicos em torno da leitura da Bíblia, do que é ser evangélico ou evangélica, de como é ser um “verdadeiro cristão ou cristã”. 

Nesse sentido, acompanhamos como, nas eleições 2020, as disputas em torno da identidade evangélica ganharam contornos políticos relevantes. Assim, os mais conservadores arrogavam a si próprios esse lugar de verdadeiros evangélicos, que “guardam a Bíblia e os valores cristãos”, ao passo que os evangélicos à esquerda no espectro político, acusados pelos conservadores de quererem adaptar a Bíblia, de “distorcerem a Palavra”, chamavam publicamente seus opositores políticos e na fé de “falsos profetas”, “mensageiros do Império” (e não do Reino de Deus), “falsos cristãos”. 

O deputado federal Pastor Sargento Isidoro pareceu representar os interesses de um grupo de evangélicos que não aceita a diversidade no interior deste grupo religioso e se valeu de um recurso legal para tentar frear leituras da Bíblia que não sejam a sua própria e de seu grupo religioso em particular. Esse último argumento é também desenvolvido por Magali Cunha ao acentuar a dimensão fundamentalistas cristã do posicionamento de Isidoro em seu artigo na Carta Capital.

A posição da ANAJURE

Embora sejamos seduzidos a nos rendermos a uma avaliação que opõem simplesmente conservadores, fundamentalistas e extremistas de um lado e progressistas de outro, a diversidade interna a esses próprios “grandes grupos ideológicos” chama atenção. Sendo assim, antes mesmo do Pastor Sargento se pronunciar contrário à tramitação do PL 2/2019 (renovando seu interesse no prosseguimento do PL 4606/2019, cujo objetivo seria vedar “qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento em seus capítulos ou versículos, sendo garantida a pregação do seu conteúdo em todo território nacional”), a Associação de Juristas Evangélicos (ANAJURE) emitiu nota pública contrária ao texto do PL 2/2019. 

A ANAJURE, é uma entidade sem fins lucrativos, de abrangência nacional, em atividade desde 2012, formada por juristas que se autodeclaram evangélicos. A presidência da associação esteve a cargo do pastor Uziel Santana desde a sua fundação. Atualmente, dado o seu afastamento para assumir uma posição de destaque na campanha do presidenciável ex-juiz Sérgio Mouro, a presidência da entidade está a cargo da Drª. Edna Zilli, signatária, portanto, da nota que a entidade fez circular em 14 de março de 2022. 

Essa entidade, embora se apresente como integrada por evangélicos e evangélicas conservadores, pronunciou-se contrariamente a posicionamentos políticos e ações legais de outros evangélicos também reconhecidos como conservadores ou à direita no espectro político. Um exemplo é a forma como a associação se colocou diante da discussão sobre a abertura de templos religiosos para a realização de cultos em março de 2020, quando começamos a sofrer as consequências da pandemia de coronavírus no Brasil. 

Outro exemplo é o posicionamento contrário ao PL 2/2019 de autoria de um deputado integrante da Frente Parlamentar Evangélica. Neste caso, a ANAJURE argumenta que a redação do projeto de lei deixa margem para o cometimento de injustiças quando da possível criminalização do uso da palavra bíblia em seu sentido etimológico, não sagrado, compreendendo livro, registro, um sentido de compilação, de base, fundamentos mais importantes de uma determinada área de conhecimento ou prática. Sendo assim, defendem não ser razoável acusar, conforme indicaria a letra da lei, o uso indevido e desrespeitoso da Bíblia sagrada. 

A ANAJURE não comenta boa parte das justificativas dadas pelo deputado para a propositura da lei. Atem-se, contudo, aos aspectos legais que envolveriam um exagero, um desvio de função na medida em que concluem que “a redação empregada é excessivamente ampla e que a verificação do enquadramento da conduta em debate como estelionato ou crime contra o sentimento religioso é atividade que compete ao Judiciário”. 

Embora seu argumento tenha como base a defesa da liberdade do uso da palavra bíblia não sendo vedado o seu uso não religioso/sagrado, embora seja a questão da defesa da liberdade de expressão-chave na atuação da ANAJURE, no âmbito de todas as suas interfaces junto à sociedade civil e ao poder público, a palavra liberdade aparece somente duas vezes na Nota. Em primeiro lugar, para justificar a tomada de posição pública da entidade. Sendo assim, logo no início pode-se ler: “Diante da conexão do assunto com aspectos atinentes à liberdade religiosa, a ANAJURE aproveita o ensejo para se manifestar sobre a temática”. Mais à frente, citando o jurista, magistrado e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Professor da PUC-SP, Guilherme Nucci, evidencia seu posicionamento quanto ao direito penal. Neste caso, advertem, conforme Nucci, “que o direito penal não deve interferir em demasia na vida do indivíduo, retirando-lhe autonomia e liberdade” devendo ser mobilizado somente como “última cartada do sistema legislativo”. A liberdade de expressão não foi, deste modo, devidamente manifestada no texto da nota com vistas a subsidiar o posicionamento da entidade. 

O acompanhamento deste caso e sua repercussão nos convida, no mínimo, a considerar a miríade de interesses que regulam as ações de evangélicos na sociedade. Não é simples defini-los, enquadrá-los, seja com qual finalidade for. É preciso assumir a complexidade e a responsabilidade intelectual e política no tratamento das situações que envolvem esses atores na vida pública nacional valorizando os diálogos possíveis para a construção de uma sociedade mais justa. 

Christina Vital é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense e colaboradora do ISER desde 2002.

Foto: Reprodução Facebook Anajure.