Conteúdo produzido em parceria ISER / DATA_LABE. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em jan/2023

Atualizado em: 24/01/2023 às 12h

Após anos de protagonismo dos adeptos de religiões de matriz africana entre as vítimas de intolerância religiosa no Brasil, dados do Disque 100 indicam que cristãos passaram a ser maioria entre os denunciantes no canal a partir do segundo semestre de 2020. Diante desse quadro, apresentamos neste artigo dados e opiniões sobre como a ascensão de fundamentalistas religiosos à política institucional pode ter contribuído para a mudança nos dados existentes até então.

A média de registros entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2022 indica 46% de fiéis da religião católica, 30% de cristãos evangélicos, 12% que apontaram não ter religião, 6% que indicaram a opção “outras”, 3% de espíritas, e 2% de afrorreligiosos. O cenário é bem diferente do período compreendido entre 2011 e o primeiro semestre de 2018, como consta na reportagem Terreiros na Mira, lançada em 2019 pela Gênero e Número e pelo data_labe. Naquela análise, cerca de 60% das denúncias sobre intolerância religiosa recebidas pelo Disque 100 eram referentes a seguidores de religiões de matriz africana. 

Cristãos também eram minoria no último levantamento nacional e oficial produzido pelo governo. O Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011-2015), realizado pela Assessoria de Direitos Humanos e Diversidade Religiosa – que era ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos – foi lançado em 2017 e apontava que 33% das vítimas não tinham sua religião identificada. Em segundo lugar, com 27%, vinham cidadãos que professam as religiões de matriz africana, seguidos por evangélicos com 16% e católicos com 8%. 


A cientista social e pesquisadora Ana Paula Miranda participou do grupo consultivo do relatório e afirma que as dificuldades em trabalhar com dados sobre intolerância são antigas por conta de fatores como coleta regular com padronização, acesso à informação, atendimento padronizado e registro de ocorrência. Por conta disso, Ana Paula costuma recorrer a fontes alternativas. “Sempre trabalhei com fonte primária, muitas vezes pegando os casos nas delegacias e acompanhando esses casos no Judiciário”.

A metodologia utilizada pela pesquisadora é semelhante à escolhida na produção do Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil. Os profissionais usaram denúncias recebidas por ouvidorias e delegacias, autos policiais, reportagens da imprensa, além de entrevistas com casos emblemáticos. A partir daí, a pesquisa categorizou oito tipos de violências por motivação religiosa: psicológica, física, relativa à prática de atos religiosos, institucional, patrimonial, sexual e negligência.

Intolerância, influência e interesses 

Com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, especialistas da área passaram a ver um novo comportamento do governo federal em relação à intolerância religiosa. Em 2020, o ex-presidente levou à Assembleia Geral dos Líderes Internacionais da ONU um discurso já muito frequente em sua candidatura: um apelo à promoção da liberdade religiosa por conta dos perigos da “cristofobia”, conceito que se refere a uma suposta aversão ou perseguição aos cristãos e ao cristianismo.

Na mesma linha e naquele mesmo ano, o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos publicou em seu canal no Youtube um vídeo no qual a ex-ministra Damares Alves apelava para que a população denunciasse violações de direitos por parte de agentes públicos que tivessem como justificativa a prevenção à pandemia de covid. Durante o discurso, a pastora da Igreja Batista da Lagoinha informou que o ministério estaria recebendo milhares de denúncias com este viés, feitas por pessoas que estariam sendo impedidas de professarem sua fé por conta da determinação dos governadores de fechar estabelecimento – incluindo igrejas – a fim de evitar aglomerações. A ex-gestora, senadora eleita e diplomada pelo Republicanos do Distrito Federal, ainda citou supostas agressões a pastores e líderes religiosos que se recusavam a seguir as determinações, mesmo sem apresentar evidências ou registros destes casos. 

Segundo Lívia Reis, antropóloga e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), a estratégia do governo Bolsonaro era aparelhar o Disque 100 a fim de que o canal de denúncias justificasse a intolerância contra cristãos. Referenciando o conceito de “minoritização” criado por Joanildo Burity, a especialista explica que existe uma percepção, por parte dos evangélicos, de que eles constituem uma minoria política. Assim, a demanda por mais participação desses grupos no debate público e na política institucional materializa a ideia de “batalha espiritual” e tenta validar a ideia de “cristofobia” no Brasil.  “Nos últimos anos, a narrativa persecutória foi estendida aos cristãos em geral, incluindo católicos e desigrejados, e tem como base a defesa incondicional da liberdade religiosa e da família, que supostamente a ‘esquerda’ quer destruir”. 

A pesquisa “Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020”, realizada pelo Iser, apontou tal movimentação. O estudo analisou a construção das identidades religiosas de mais de dez mil candidaturas ao Poder Legislativo em oito cidades e identificou que casos envolvendo religiosidade e de grande repercussão nos noticiários nacionais e internacionais foram difundidos de forma massiva por políticos que centralizavam suas campanhas no tema da religião, divulgando a existência da “cristofobia” em suas redes sociais. De acordo com a antropóloga, a narrativa conecta a promoção do pânico com a aversão a governos de esquerda, a exemplo das imagens amplamente divulgadas por esses políticos e lideranças religiosas de uma igreja incendiada no Chile durante os protestos sobre a nova Constituinte. “Por esta perspectiva, ataques a igrejas, a moralidades e a símbolos religiosos seriam consequência da vitória de governos de esquerda no mundo, algo que poderia ser evitado no Brasil, caso os cristãos assumissem sua responsabilidade cidadã de votar e apoiar candidaturas conservadoras”, contextualiza Livia.

Vítimas, mas em proporções diferentes

O Pastor Alonso Gonçalves, sacerdote da Igreja Batista desde 2004, rechaça a possibilidade de se praticar cristofobia no Brasil. “Temos uma indústria de moda evangélica, uma indústria fonográfica voltada para o cristianismo, então falar sobre essa fobia no Brasil é impraticável”.

Formado em Teologia e em Filosofia, o líder religioso acrescenta que o contexto histórico da América Latina e dos Estados Unidos impede que suas realidades sejam equiparadas a de países de outros continentes, onde de fato existe proibição de culto ou perseguição a religiões cristãs. Para Alonso, é muito importante que a comunidade evangélica se mobilize contra falácias e que pregue o respeito pelas outras religiões. “Os batistas surgiram no século XVII na Inglaterra com o discurso de que era necessário lutar pela liberdade religiosa porque isso garantiria a eles e a outros grupos essa liberdade. Isso precisa ser praticado”, exemplifica.

Em um país majoritariamente cristão, onde religiosidades de matriz africana e indígenas são atacadas todos os dias, a narrativa da perseguição a cristãos está posta como um projeto político que busca frear os avanços dos direitos de minorias e é beneficiado pela ausência de dados, falta de padronização na coleta e influência de interesses políticos. O novo governo ganha como herança o desafio de fortalecer os canais de denúncia, aprimorar a sistematização dos dados e investir em estratégias de combate à intolerância junto à sociedade brasileira. 

Edilana Damasceno é graduanda em jornalismo pela UFRJ e repórter no data_labe. Este conteúdo tem colaboração de Elena Wesley, Paulo Mota e Samantha Reis

Saiba mais:

KOINONIA. Revista de intolerância religiosa nº: 5, 2023

II Relatório sobre intolerância religiosa: Brasil, América Latina e Caribe

Racismo e Intolerância Religiosa: um debate público