Em 05 de outubro de 2020, o governador do Rio de Janeiro Claudio Castro (PL) sancionou uma lei que reconhece o “Movimento Pentecostal ou pentecostalismo” como patrimônio imaterial do estado. A Lei nº 9431/2021, que já está em vigor, é de autoria do deputado estadual Samuel Malafaia (DEM), irmão do pastor presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, e revela algumas dinâmicas importantes no que diz respeito à relação entre religião e poder no Brasil de hoje.

Antes de continuar, entretanto, é preciso reconhecer que a reivindicação da religião e das religiosidades como aspectos culturais da nossa sociedade não é novidade, seja pela chave do “patrimônio”, seja pelas disputas em torno do reconhecimento de [algumas] práticas religiosas como parte constitutiva da identidade nacional brasileira. Trata-se de uma estratégia histórica do catolicismo, inicialmente impulsionada pelo reconhecimento das igrejas e conjuntos arquitetônicos católicos como patrimônios culturais brasileiro, ratificada pelo Acordo Brasil-Vaticano, Decreto nº 7.107, de 11/02/2010. Posteriormente, a mesma estratégia passou a ser mobilizada também pelas religiões de matriz africana, e, mais recentemente, pelo segmento evangélico. 

Por um lado, o movimento de culturalização da religião (religião é cultura e cultura é religião) é uma importante ferramenta de disputa por legitimidade das religiões no espaço público. Para além de gerar visibilidade e reconhecimento, ele fornece caminhos alternativos para a busca de apoio financeiro e melhorias de infraestrutura para as práticas religiosas, além de, em muitos casos, incentivar o turismo. No caso de um país majoritariamente cristão como o Brasil, essa estratégia também é uma forma de garantir a continuidade de religiões minoritárias. Não por acaso, as religiões de matriz africana, que sofrem perseguição e violências sistemáticas desde que o Brasil é Brasil, são o segmento religioso que melhor utilizou essa estratégia para promover a manutenção e a valorização de suas práticas religiosas. 

Por outro lado, isso significa também que as religiões precisaram se adaptar e se relacionar com um conjunto de agentes, sobretudo estatais, que estão fora do campo religioso – os burocratas da cultura e agentes políticos. Eventualmente, também precisaram negociar alguma perda de domínio e poder de decisão sobre suas próprias práticas ou bens – como no caso de espaços religiosos tombados, por exemplo. Porém, ainda que muitos religiosos questionem a eficiência dessa estratégia por conta da suposta perda de autonomia ou pela simples recusa em se relacionar com o Estado, a mobilização da cultura como arma tem se apresentado como um elemento incontornável de disputa nos campos político e religioso não só no Brasil, mas em outros países do mundo.

A “arma da cultura”, expressão da antropóloga Clara Mafra, foi cunhada em artigo publicado na revista Mana que aborda justamente as disputas em torno da categoria “cultura” pelas diferentes matrizes religiosas no Brasil. Nesse texto, escrito em 2011, a pesquisadora argumentou que os evangélicos, ao contrário de católicos e afrorreligiosos, tinham, até então, uma atuação desastrosa no campo da cultura. De lá para cá, dez anos se passaram, a configuração do campo religioso brasileiro mudou, a configuração do campo político também mudou e, consequentemente, os agentes que mobilizam a arma da cultura mudaram também. Hoje, o pentecostalismo figura, ao lado da Umbanda, das Festas de Iemanjá, da Procissão de São Sebastião, e também das Escolas de Samba e da Bossa Nova, como mais um das dezenas de patrimônios imateriais do Estado do Rio de Janeiro. 

É importante frisar algumas tentativas pontuais por parte de grupos evangélicos em adotar a estratégia da arma da cultura. Em 2005, Marcelo Crivella tentou incluir os templos religiosos no rol de beneficiários do Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), a Lei Rouanet, sem sucesso. Em 2012, ainda no governo de Dilma Rousseff (PT), a lei foi alterada e passou a reconhecer a “música gospel” como expressão cultural e, consequentemente, autorizar o financiamento de eventos religiosos como shows, festivais e eventos ligados a este gênero musical. Naquele momento, ainda não era possível o financiamento de eventos religiosos promovidos por igrejas, mas um projeto de lei de autoria do deputado federal Vavá Martins (Republicanos/PA), que visa incluir eventos religiosos promovidos por igrejas no rol de beneficiários da Lei Rouanet, foi aprovado pela Comissão de Cultura da Câmara em 2019 e tramita na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Nos últimos anos, durante o governo de Jair Bolsonaro, a própria Secretaria Especial de Cultura (ex-Ministério da Cultura) passou a ser um espaço de disputas e controvérsias sobre cultura e religião. Em live sobre a Lei Rouanet para artistas cristãos, realizada em maio deste ano, o secretário especial de cultura Mário Frias criticou artistas de funk e afirmou que o Estado não teria obrigação de “bancar marmanjo”, referindo-se à captação de recursos por artistas via Lei Rouanet. Além de reproduzir argumentos errôneos sobre a lei, Mário Frias, ali um representante do Estado, apresentou ao público quais tipos de arte considerava legítimos ou não como movimentos culturais: a música gospel era uma delas, o funk, não. 

Em  outro caso de repercussão, o Festival de Jazz do Capão, na Bahia, teve seu pedido de captação de recursos negado. De acordo com o jornal Folha de São Paulo, no parecer produzido no âmbito da Fundação Nacional das Artes (FUNARTE) combinavam-se “citações de gosto duvidoso, versos em latim e frases como ‘o objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma’”. O Festival acabou sendo financiado por recursos privados.

Em resumo, a discussão gerada pelo reconhecimento do pentecostalismo como patrimônio imaterial do Rio de Janeiro chama atenção para alguns pontos. Em primeiro lugar, que a abertura estatal para reconhecimento de manifestações religiosas como culturais é um processo histórico inaugurado por católicos, apropriado com sucesso por outras expressões religiosas. Depois, que o interesse dos evangélicos em aderir à estratégia da “religião como cultura” vem aumentando, agora em um contexto mais favorável para isso, e tem na expressão mais característica desse segmento religioso sua centralidade: a música. Por fim, no caso do Rio de Janeiro, revela também os esforços do governador Claudio Castro, cantor católico e até então vereador com único mandato, em estreitar suas alianças com lideranças evangélicas nas tentativas de garantir sua reeleição. Todos eles, no entanto, indicam que a “arma da cultura” é um instrumento eficiente de disputa que precisa ser observado atentamente à luz das transformações do campo religioso brasileiro. 

Lívia Reis é antropóloga, pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e coordenadora de Religião e Política no ISER.

Rodrigo Toniol é professor de antropologia da UFRJ, pesquisador do CNPq e presidente da Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul.

Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil

SAIBA MAIS:

MAFRA, Clara. A “arma da cultura” e seus “universalismos parciais”. MANA 17(3): 607-624, 2011.

SANTA’ANA, Raquel. A nação cujo Deus é o Senhor: a imaginação de uma coletividade evangélica a partir da Marcha para Jesus. 2017. 263 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

GIUMBELLI, Emerson. Sentidos da Cultura em suas Relações com a Religião: Políticas Culturais e Diversidade Religiosa no Brasil. Dados rev. ciênc. sociais 64 (4) • 2021.