Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 20 jun 2023

Observar as dinâmicas do campo jurídico é fundamental para analisar o papel que a Igreja Católica e os leigos cumprem na judicialização dos debates morais e nas disputas pela “catolicização” de temas do direito laico. Entenda quatro pontos deste debate:

Desde 2021 o Grupo de Trabalho “Catolicismo e Conservadorismo” do ISER (Instituto de Estudos da Religião), tem se reunido para discutir textos, ouvir pesquisadores(as) e imaginar horizontes de investigação, tendo direcionado o campo de investigação para catolicismos antidireitos com foco em suas incidências e articulações no ordenamento jurídico brasileiro no que tange a gênero e sexualidade.

A partir do GT “Catolicismos Jurídicos Antidireitos” vinculado ao Iser, reconhecemos o universo gramatical-jurídico que vem sendo mobilizado por grupos católicos na disputa do ordenamento jurídico em diferentes instâncias da sociedade. Conectados com uma perspectiva internacional, estimulada pelo Vaticano 1, são grupos/pessoas jurídicas que através da base filosófica do Direito Natural impõe uma perspectiva reacionária do Direito. Quanto aos recursos e estratégias de ação desses grupos católicos antidireitos, apresentaremos 4 pontos que refletem parte dos achados da pesquisa.

1. No que consiste o argumento jurídico-filosófico do direito natural mobilizado pelo universo do catolicismo jurídico antidireitos?

Desde 2005, Papa Bento 16 fez da defesa e ilustração da lei natural um dos eixos de seu ensinamento vocacional. Partindo do direito natural como ferramenta teórico-jurídica de denúncia do “relativismo ético” frente aos fundamentos da lei moral natural (Fassin, 2010, p. 213-216) 2. Este jusnaturalismo é a versão bíblica secularizada (do direito divino-natural) que toma de empréstimo da filosofia grega a noção de lei natural, manifestando a universalidade do pensamento católico.

A associação entre cultura e natureza, espelha uma forma de rejeição moral (religiosa e secular simultaneamente) à extensão dos princípios democráticos de liberdade e igualdade às questões sexuais e de gênero. Reiteradamente, os juristas católicos conservadores recorrem aos discursos oficiais do Vaticano sobre a ideia de ordem natural e natureza humana, afirmando a defesa de uma “universalidade antropológica”, uma “universalidade pré-social” ancorada na imutabilidade das leis da natureza. Nesse sentido, o direito natural representa a reafirmação, para as questões sexuais e de gênero, das leis da natureza. Do ponto de vista organizativo, apontamos que estes grupos de juristas católicos se apropriam de estratégias de advocacy com base filosófica no jusnaturalismo e se organizam em um formato de associativismo jurídico.

2. Como este associativismo jurídico católico se relaciona com a doutrina social da Igreja Católica?

Durante a pesquisa foi possível mapear 29 pessoas jurídicas que no Brasil atuam para converterem suas pautas relativas à moral religiosa católica em suas plataformas jurídico-políticas. E o fazem, através de uma teia de relações estabelecida por clero, laicato e juristas que se articulam tanto via atuações legislativas, parceria com organizações sociais filantrópicas, estímulo à grupos de estudos em direito e religião, como no atendimento paroquial às fiés via Pastorais e Dioceses locais e estabelecimento de conexões, ecumênicas, com evangélicos juristas conservadores. Trata-se de associativismos jurídicos extra-eclesiais que ocorrem para além dos tribunais, tendo seus elos formativos educacionais em universidades e atuação no campo econômico.

Essas teias de relações permitem enquadrarmos a atuação jurídica católica operada para além das instâncias eclesiásticas, tratando-se de formas de associativismos que reúnem ativismos antidireitos com objetivo de disputar o viés conservador do ordenamento jurídico. Com perspectiva jurídica baseada no direito natural, grupos católicos (vinculados tanto diretamente à Igreja Católica ou semi-vinculados) atuam em instâncias eclesiásticas com objetivo de reforçar o firmamento e regulação das normas jurídicas presentes tanto nos Tribunais Apostólicos de Roma, que são instâncias superiores da Sé Apostólica que atuam com jurisprudência católica, como no Código de Direito Canônico, criado em 1917 e atualizado em 1983 pelo Papa João Paulo 2º. Um meio para evidenciar a juridificação católica antidireitos é justamente por meio da organização e impulsionamento das Uniões de Juristas Católicos.

3. No que consiste as Uniões de Juristas Católicos e quais são suas reivindicações e inspirações eclesiásticas?

Com inspiração na “União dos Juristas Católicos Italianos” a Igreja Católica formalizou em 1986, através de um Decreto Pontifício, a “União Internacional dos Juristas Católicos”, atualmente com sede em Roma. A partir deste estabelecimento, observa-se a organização de grupos de juristas católicos com atuação jurídica em atividades judiciárias, legislativas e administrativas. A pesquisa, que analisou a atuação de 29 pessoas jurídicas, reconheceu a presença de dois atores jurídicos católicos cujas atuações são relevantes e articuladas no Brasil. São eles: a UBRAJUC (União Brasileira de Juristas Católicos) e a UJUCASP (União de Juristas Católicos de São Paulo).

A UBRAJUC (União Brasileira de Juristas Católicos) foi formalizada em 8 de setembro de 2018 na cidade do Rio de Janeiro, por ocasião da 2º Liga Cristo Rei (organizada pela associação ultraconservadora Centro Dom Bosco) e é dirigida pela deputada federal católica, Chris Tonietto (Partido Liberal), reeleita pelo Rio de Janeiro. A UJUCASP (União de Juristas Católicos de São Paulo) foi fundada em 2012 na cidade de São Paulo, impulsionado pelo jurista católico Ives Gandra Martins, agente fundamental na mobilização deste corpus associativo jurídico. Atualmente a UJUCASP é dirigida pelo consultor de empresas e Presidente do Conselho Diretor do CIEE Nacional, o católico Luiz Gonzaga Bertelli. Ambas associações reúnem tanto fiéis que estão cursando direito, em sua maioria jovens na composição, como bispos e juristas católicos que atuam em órgãos jurídicos como Ministério Público, Tribunal de Justiça, comissões da OAB e etc. Suas últimas atuações católico-jurídicas centraram esforços nas discussões contrárias ao projeto de lei n. 2630/20220 (das Fake News), na distribuição de modelos de mandato de segurança para católicos que não quisessem tomar vacina da covid-19, como extensa atuação contra a Ação de Descruprimento de Preceito Fundamental 442, que visa descriminalizar o aborto no STF (Supremo Tribunal Federal) .

4. Qual papel dos leigos nas Uniões de Juristas Católicos e quais são suas fontes formativas?

No decreto Apostolicam Actuositatem sobre o apostolado dos leigos (1965) do Papa Paulo 6º , o Concílio trata do apostolado dos leigos e elenca os princípios e orientações para sua atuação. Segundo o decreto, os leigos exercem o apostolado ao buscar evangelizar e santificar os homens, alistando-se a associações ou institutos aprovados pela Igreja, somando-se às iniciativas diocesanas. Devendo se posicionar para responder às ameaças que buscam “subverter a religião, a ordem moral e a própria sociedade humana”, estabelece como princípio a não conformação da sua cooperação aos limites da paróquia ou da diocese, devendo se esforçar para estender sua atuação “aos campos interparoquial, interdiocesano, nacional ou internacional”.

Segundo o Concílio, os leigos têm um modo próprio de participação na missão da Igreja, tendo em vista que sua atuação apostólica possui características especiais atribuídas por uma índole secular própria do laicato e da sua espiritualidade. Prevendo a necessidade de uma preparação doutrinal, teológica, ética e filosófica dos leigos, determina a competência das escolas, colégios, instituições católicas destinadas à formação, grupos e associações, de fomentar nos jovens o sentido católico e a ação apostólica. Quanto aos meios para o exercício dessa formação, elencam como meios “sessões, congressos, recolecções, exercícios espirituais, reuniões frequentes, conferências, livros, revistas”, a criação de “centros ou institutos superiores” e de “centros de documentação e de estudo não só de teologia, mas também de antropologia, psicologia, sociologia, metodologia, para fomentar mais as qualidades dos leigos, homens e mulheres, jovens e adultos, em todos os campos do apostolado.” Observar as teias associativas do campo jurídico é fundamental para decifrar o papel doutrinal que a Igreja Católica cumpre na judicialização dos debates morais e na orientação laical baseada no Direito Romano, cujo objetivo é disputar a “catolicização” do direito secularizado.

Ana Carolina Marsicano é pesquisadora e socióloga feminista, doutoranda em sociologia pela PPGS/UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Integra o Laberp/FUNDAJ/UFPE (Laboratório de Estudos de Religião e Política) e o GT Catolicismos Conservadores do Iser (Instituto de Estudos da Religião).

Tabata Pastore Tesser é doutoranda em sociologia no Programa de Pós-Graduação da USP (Universidade de São Paulo). Integra o GREPO (Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica) e o GT Catolicismos Conservadores do Iser (Instituto de Estudos da Religião).