“Desde Constantino, a história da política é essencialmente a história do cinismo político cristianizado que, depois dessa mudança de lado epocal, não cessou de dominar e atormentar a reflexão política como ideologia esquizóide dos senhores”
– Peter Sloterdijk
A presença de evangélicos na política institucional não constitui fenômeno recente, inovador, nem tão pouco pode ser compreendida como sendo integrada e/ou coesa. Após 21 anos de ditadura civil-militar, desde o final dos anos 80, período conhecido como “abertura democrática”, os evangélicos — em especial pentecostais e neopentecostais — ingressaram com mais força e notoriedade na política institucional. Inclusive, foi nos governos do Partido dos Trabalhadores que os evangélicos tiveram mais acesso às concessões de rádio e TV e, com isso, lograram êxito em ocupar os espaços públicos e em fazer circular um conjunto significativo de discursos, afetos e imaginários fundados na ideia transversal de que o Brasil, a Nação, seria salva, moralizada e próspera sob o domínio ou governo do “Senhor Jesus”, claro, por meio da representatividade da fé evangélica brasileira.
Com efeito, o que há de novo no contexto contemporâneo é o ativismo neoconservador de grupos de diferentes denominações e igrejas pentecostais, neopentecostais e, desta vez, históricas, numa mesma montagem político-religiosa que tem sido nomeada pelo professor e pesquisador Ronaldo de Almeida de direita religiosa. Adiciona-se à esta montagem, ainda, uma relação nunca antes experimentada entre fundamentalistas evangélicos e outras identidades religiosas tais como catolicismo, judaísmo e espíritismo, num tipo raro de ecumenismo de direita no Brasil.
Uma das características desta montagem da direita religiosa é o seu funcionamento na lógica de Think Tank, à semelhança de outras estruturas ideológicas ligadas à racionalidade do neoliberalismo mundial. Este modelo de operação, aliado às recentes revoluções midiáticas, oferecem as melhores condições materiais e simbólicas para a emergência desta nova modalidade de ativismo neoconservador. Por ativismos compreendemos aqueles engajamentos religiosos com tecnologias novas e diversas — fluidas, horizontais, ágeis e descentralizadas — que trabalham no nível ideológico construindo subjetividades e relações sociais, perpassando tanto o Estado, naquele núcleo pelo qual é tradicional e juridicamente identificado, chegando finalmente em regiões do plano político não imediatamente estatais: igrejas, escolas, cursos, seminários, faculdades, pequenos grupos de leitura bíblica, células e até grandes festivais de louvor e adoração que relacionam o governo Bolsonaro a uma espécie de avivamento espiritual no Brasil.
O engajamento que outrora estava restrito às negociações diretas entre atores políticos e lideranças religiosas, se torna matéria, pauta, motivo de disputa no interior das relações mais cotidianas da vida religiosa (ex: reuniões de famílias, liturgias e pregações em igrejas, associações privadas para sociabilidade religiosa, clínicas de saúde mental promovidas por teólogos e pastores, circuitos de formação de uma certa moral sexual etc) e cria uma massa-multidão disposta a se engajar na política institucional e nos rumos do Estado brasileiro. Por isso, para a manutenção deste funcionamento orgânico com impactos nas dinâmicas institucionais, a necessidade de atuar diretamente na Educação, na formação ideológica de novos ativistas. O auge do funcionamento daquilo que o filósofo francês Louis Althusser chamou de Aparelhos Ideológicos de Estado.
Neste cenário, onde esse ativismo neoconservador evangélico compreende o governo Bolsonaro e o conjunto das políticas de Estado como oportunidades missionárias de realizar uma “Revolução na Educação“, ou, em outras palavras, como uma vocação messiânica, pastoral e expiatória investida pelo próprio Deus, para “libertar a educação da intervenção das frações da esquerda autoritária”, “reinserindo Escola e Universidade pública em seu leito tradicional e conservador”, instituindo um “Ensino Moral como conteúdo transversal em todas as disciplinas para difundir os mais elevados e profundos princípios e valores da Civilização” e “reforçar as pautas tradicionais da preservação dos valores cristãos e de defesa da família”, é que devemos compreender a presença e participação de um pastor presbiteriano como ministro da Educação e o impacto dos escândalos recentes envolvendo a sua queda.
Convém lembrar quem é Milton Ribeiro. Pastor na Igreja Presbiteriana Jardim de Oração de Santos, no litoral de São Paulo, teólogo e advogado, mestre em Direito e doutor em Educação, o Rev. Ribeiro foi o quarto ministro da Educação do governo Jair Bolsonaro. Ele construiu uma carreira relacionando religião, teologia e pedagogia, tendo defendido, na USP, uma tese sobre “Calvinismo no Brasil e Organização: o poder estruturador da educação”. Antes de constar na folha de pagamento do governo, Milton Ribeiro foi reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Vale tomar nota de que boa parte dos ativistas neoconservadores evangélicos tiveram formação ou são docentes/pesquisadores nessa universidade, que tem fornecido quadros técnicos e ideológicos ao neoconservadorismo evangélico brasileiro.
À frente do Ministério da Educação (MEC), que chefiava desde julho de 2020, Milton Ribeiro colecionou polêmicas e crises. Em setembro de 2020, o ministro fez declarações homofóbicas ao relacionar a “homossexualidade a famílias desajustadas”: “Acho que o adolescente, que muitas vezes, opta por andar no caminho do homossexualismo, tem um contexto familiar muito próximo, basta fazer uma pesquisa. São famílias desajustadas, algumas. Falta atenção do pai, falta atenção da mãe“.
Sobre este episódio, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE, importante articulação de Milton Ribeiro) publicou uma nota dizendo que “os limites da liberdade de expressão não foram extrapolados“. Membros do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) também saíram em defesa do ministro. Em 2021, Ribeiro declarou que “a universidade deveria, na verdade, ser para poucos“. Além disso, afirmou que, quando um aluno com deficiência é incluído em salas de aula comuns, ele não aprende e ainda “atrapalha” a aprendizagem dos colegas.
Quando nenhum desses absurdos acontecimentos pareciam afetar a estabilidade do então ministro, surge o escândalo derradeiro, o apocalipse do predestinado. Em conversa gravada obtida pela Folha de S. Paulo, Milton Ribeiro afirmou que o governo federal priorizava prefeituras cujos pedidos de liberação de verba foram negociados por dois pastores que não têm cargo e atuam em um esquema informal de obtenção de verbas do MEC.
Os dois pastores envolvidos foram Gilmar Santos e Arilton Moura, figuras que já circulavam no Palácio do Planalto em reuniões e conversas paralelas com o presidente Jair Bolsonaro. Santos é presidente da Convenção Nacional de Igrejas e Ministros das Assembleias de Deus no Brasil e líder do Ministério Cristo para Todos, um ramo da Assembleia de Deus com sede em Goiânia. Moura é braço direito de Santos e assessor de assuntos políticos da Convenção Nacional de Igrejas e Ministros das Assembleias de Deus no Brasil. De acordo com documentos publicados pela grande mídia, Moura cobrou propina para dar celeridade às demandas da prefeitura de Luís Domingues (MA) no MEC. De acordo com o prefeito Gilberto Braga, o pastor pediu R$ 15 mil, mais um quilo de ouro. Prefeitos afirmam que esquema de propina do MEC envolvia inclusive compra de Bíblias.
O predestinado não resistiu. Mesmo sendo protegido pelo Messias, pela família Bolsonaro e defendido por boa parcela de irmãos e irmãs de ministério, perdeu a salvação política. Caiu no dia 28 de março de 2022, uma semana após os vazamentos, “sacrificado para salvar o presidente do inferno“.
O projeto neoconservador, porém, não pode ficar sem um funcionário. Afinal, a máquina sacrificial da “revolução conservadora”, aquela mesma da máquina de ressonância evangélica-capitalista, não pode ser desligada. Centrão e Bancada Evangélica seguem em guerra santa para ver qual dos dois destacamentos conseguirá consagrar um dos seus representantes à missão burocrática de “libertar o Brasil” por meio do governo pastoral de Bolsonaro.
Enquanto isso, como pesquisadoras e pesquisadores destes processos que envolvem religião e política no Brasil, temos que nos responsabilizar, em posição de atenção pluralista e democrática, pelas questões estruturais que restam destes eventos. A partir das teses de Talal Asad, por exemplo, pode-se configurar um jogo muito bem executado pelo protestantismo fundamentalista brasileiro, em especial pelos históricos: ao mesmo tempo que afirmam retoricamente um compromisso com a modernidade, a secularização e a laicidade do Estado, negam-as, bem como suas implicações éticas e políticas, em suas práticas e relações de poder mais cotidianas. As posições públicas do Ministro do STF, o pastor também presbiteriano André Mendonça, são evidências perturbadoras deste movimento.
No Brasil, assim como em territórios marcados por uma racionalidade neoliberal e neocolonial, muitas vezes e paradoxalmente, a defesa retórica da laicidade por parte de evangélicos pode se configurar como uma defesa do seu radical oposto, como uma defesa dissimulada do Cristianismo. É, inclusive, para reconstruir estratégias de defesa da supremacia política do Cristianismo que setores fundamentalistas fazem defesa retórica dos “princípios e valores da Civilização ocidental secular e moderna“.
É justamente por pressupor e confiar numa relação de afinidade radical entre modernidade secular e Cristianismo supremacistas que estes agentes chegam a acreditar que ao defender a laicidade estão indiretamente protegendo os “valores judaico-cristãos da família e da sociedade brasileira”. Portanto, acreditar [ingenuamente?] que estes sujeitos estariam comprometidos com uma laicidade real é, no fundo, fazer uma aposta de fé na fé dos neoconservadores cristãos ou, em outras palavras, fazer uma aposta de fé no cinismo moderno, racial, colonial e neoliberal do protestantismo branco brasileiro.
João Luiz Moura é Mestre em Ciências da Religião e pesquisador visitante no Instituto de Estudos da Religião (ISER). Tem pesquisado religião, neoliberalismo e direito
Fellipe dos Anjos é Mestre e Doutorando em Ciências da Religião. Tem pesquisado Violência, Biopolítica, Religião e Estado.