Os temas que ocuparam os debates na Câmara Federal no primeiro semestre de 2024 pelas lentes do monitoramento dos PLs pelo ISER

Todos os projetos de lei monitorados podem ser encontrados aqui.

Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 08 set 2024

No começo da 57ª Legislatura, iniciada em 2023, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) implementou um sistema de monitoramento de Projetos de Lei (PLs) da Câmara dos Deputados com o objetivo de identificar e acompanhar propostas legislativas cujos temas eram relevantes para o campo religioso. A seleção dos temas de interesse teve como base nossas próprias pesquisas qualitativas sobre identidade religiosa nas eleições, realizadas em 2018, 2020 e 2022, e nos permitiram classificar 17 categorias de interesse, que passaram a ser monitoradas a partir da análise qualitativa das ementas de cada projeto de lei apresentado. São elas: : 1) Direitos da Mulher; 2) Crimes e Segurança Pública; 3) Causa animal; 4) Ameaça ao Estado Democrático de Direito; 5) Imigração; 6) Educação; 7) Política de drogas; 8) Direitos da Criança e do Adolescente; 9) Regulação de mídias; 10) Família; 11) Direitos dos povos indígenas e Comunidades Tradicionais; 12) Direitos Humanos; 13) Calendários oficiais, patrimonialização e homenagens; 14) Religião, 15) Direitos Sexuais e Reprodutivos, 16) Raça e Racismo e 17) Meio Ambiente e Questões Climáticas. 

Alguns temas, vale dizer, embora estejam interrelacionados, foram classificados de forma separada devido à relevância assumida por eles nos diferentes contextos que envolvem as religiões, seja para a comunidades de fiéis, para lideranças religiosas ou lideranças políticas/religiosas eleitas. 

Os PLs analisados no primeiro semestre deste ano se destacaram por sua capacidade de gerar conflitos e disputas, além de moldar narrativas públicas sobre temas que afetam ou estão relacionados a valores religiosos, além de informar sobre os diferentes contextos que as permeiam. Esta atividade de monitoramento é crucial para antecipar mudanças no cenário legislativo que possam afetar as liberdades religiosas, a garantia de direitos fundamentais ou influenciar o debate público. Além disso, ajuda a desmistificar a ideia de que políticos que mobilizam sua identidade religiosa se restringem a apresentar projetos relacionados às pautas dos costumes. O monitoramento mostra, ao contrário, que o campo religioso é atravessado por temas de amplo interesse.

Neste texto de caráter informativo-descritivo, são apontadas as temáticas que se destacaram no monitoramento dos PLs no primeiro semestre. Entre fevereiro e junho de 2024, foram levantados 1.083 Projetos de Lei em tramitação conforme os critérios descritos acima. “Crimes e Segurança Pública” foi a categoria com mais projetos, 173 proposições, seguida de “Meio Ambiente e Questões Climáticas” (146), Educação (127), Causa Animal (97) e Direitos Humanos (87). O PL (199), o União Brasil (137), o PP (99), o Republicanos (96) e o PT (95) foram os partidos com mais projetos  

Ao revisitarmos cada um dos cinco boletins publicados na Plataforma Religião e Poder, no período, chama a atenção que a frequente interseção entre a atividade legislativa e as pautas midiáticas como um dos grandes destaques, padrão que já vem sendo identificado desde a implementação deste monitoramento, em 2023. Nesse sentido, temas de grande repercussão nacional acabam ocupando espaço no Parlamento por intermédio dos PLs. Há também outras pautas que se destacam, de acordo com os critérios de análise aplicados, que serão apresentadas mês a mês, a seguir. 

 Fevereiro: dengue, abuso sexual infantil e redução de direitos prisionais

O primeiro boletim do semestre considerou os PLs levantados em fevereiro, período de retorno do recesso parlamentar.  O Brasil registrava mais de um milhão de casos de dengue  nas primeiras semanas do ano, o que foi considerado uma emergência de saúde pública, e se tornou foco de proposições na Câmara Federal.  A pauta desperta particular interesse aos estudos do ISER porque, desde a pandemia, as vacinas  são alvo importante na disseminação de desinformação, principalmente entre grupos religiosos, como demonstram checagens  do Coletivo Bereia. Uma pesquisa  do Centro de Pesquisa em Comunicação Política e Saúde Pública da Universidade de Brasília (CPS/UnB)  revelou que “pessoas entre 35 anos e 44 anos de idade, educação inferior ao ensino médio, das classes D ou E, independente de sexo, e que frequentam igrejas evangélicas, são as que mais compartilham notícias falsas sobre vacinas no Brasil” (AGENCIA BRASIL, 2023). Assim como ocorreu com a vacina da covid-19, a circulação de notícias falsas sobre a vacina da dengue também foi intensa, como demonstrado pelo projeto de checagem de fatos da agência Reuters.

Outra pauta monitorada, que gerou debates e propostas parlamentares foi a dos Direitos da Criança e do Adolescente. A fonte foi a viralização, em redes digitais, de um extrato de vídeo de um reality show gospel, transmitido em canal de YouTube.  Uma das cantoras e compositora, ao se expressar criticamente em canção sobre a religião que não responde aos desafios da realidade social, citou a região de Marajó. A música abriu caminho para que os jurados do reality falassem sobre problemas sociais do local, com foco na exploração sexual e na comercialização de crianças. De imediato, antigas declarações da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), com pânico moral em torno da região, foram retomadas em publicações nas redes digitais. 

Ainda que o caso Marajó tenha provocado proposições específicas na Câmara Federal, neste monitoramento do ISER, a categoria que engloba Direitos da Criança e do Adolescente é uma pauta forte de proposições parlamentares na Câmara, sobretudo do bloco parlamentar da direita, que apresentou 68,18% dos projetos. Esses projetos têm ênfase no tema da exploração sexual, e vêm sendo mobilizados por atores religiosos, muitas vezes para gerar pânico moral e impedir não apenas a ampliação de direitos sexuais e reprodutivos, mas também criminalizar culturas periféricas, como no caso do funk – acusado de sexualizar crianças.  

Foram 24 projetos apresentados em fevereiro, com proposições em torno de diversas temáticas, entre elas proteger crianças de exposição à dita publicidade sexual, de bullying na internet e do consumo de álcool. Dentre os PLs levantados, destacamos o projeto que tinha como proposta criar o Fundo de Prevenção ao Tráfico Humano e Exploração Sexual Infantil na região do Marajó. Seguindo o rito ordinário de tramitação, não houve avanço na proposição, sendo apenas distribuída nas comissões temáticas pertinentes, como a Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais (CPOVOS).

Outro ponto importante em fevereiro de 2024, é que um significativo número de PLs protocolados, com intensidade expressiva de parlamentares de partidos da direita, teve como alvo a retirada ou a redução de direitos de presos e acusados, especificamente no que diz respeito à saída temporária de detentos do sistema prisional brasileiro e à audiência de custódia. O chamado “saídão de Natal” foi alvo intenso de campanhas punitivistas. Um conteúdo produzido pelo ISER para mídias sociais,  buscou informar corretamente sobre o assunto.

Março: sistema socioeducativo e motoristas de aplicativos

Ainda no início do ano legislativo, março teve 204 PLs na Câmara Federal nos critérios da pesquisa.  A agenda punitivista com foco no sistema socioeducativo foi um dos grandes destaques do mês, com projetos de parlamentares alinhados à direita, com vistas à ampliação da atuação de agentes das forças de segurança no sistema.

Outro importante destaque foi o Projeto de Lei Complementar, enviado ao Congresso Nacional, pelo governo federal, em regime de urgência, para regulamentação do trabalho de motoristas de aplicativos. A proposta de PLC é resultado das ações de um grupo de trabalho, criado em maio de 2023, com a participação de representantes do governo federal, trabalhadores e empresas, acompanhado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).  

Apesar do reconhecimento das injustiças trabalhistas com esta categoria de trabalhadores, nascida das novas dinâmicas sociais em torno da cultura digital,  a proposta de PLC não foi acolhida de forma unânime. Houve reações negativas de estudiosos do tema e muita desinformação produzida por grupos de oposição ao governo federal, o que criou pânico entre os próprios trabalhadores, e levou vários deles a realizarem manifestações de rua e até greve. 

Nesta pauta, o ISER observa, desde a pesquisa das candidaturas com identidade religiosa nas eleições municipais de 2020, o acionamento da noção de “empreendedorismo”. “Ser chefe de si mesmo” é a lógica que fez emergir “inovações” no trabalho como o “uberismo”. Nesta perspectiva, direitos e deveres básicos deixam de ser da conta do Estado, se tornam privatizados e responsabilidade de cada empreendedor. É uma pauta política intensamente alimentada, no contexto das igrejas evangélicas, pela Teologia da Prosperidade.

Abril: pautas da conjuntura, novo Plano Nacional de Educação e criminalização de movimentos sociais

Três casos amplamente divulgados na cena pública em abril se destacaram como pautas de Projetos de Lei: 

(1) O  caso do “Tio Paulo”, ocorrido na Zona Oeste do Rio de Janeiro, gerou um intenso debate sobre abuso de incapazes e direitos de pessoas idosas no Brasil

(2) O caso do cachorro Joca, que faleceu em voo da companhia aérea Gol por choque cardiogênico, foi a principal pauta dentro da categoria Causa Animal.  Uma ampla variedade de projetos que defendem melhores condições para pets em transportes, bem como maior responsabilização das agências de transporte sobre o animal circularam na Câmara. 

Desde o pleito de 2020 o debate em torno da causa animal vem ganhando cada vez mais proeminência no debate público. A pesquisa desenvolvida pelo ISER sobre candidaturas com identidade religiosa indica que, em alguns casos, a pauta aparece, como única plataforma de campanha de candidaturas eleitas para a Câmara, na maioria das vezes ligadas a partidos de direita.

O artigo de Ana Paula Perrota, publicado no espaço do ISER no Nexo Políticas Públicas mostra  uma linha do tempo, com os marcos regulatórios e transformações morais  da temática desde 1916, quando foi instituído o Código Civil brasileiro.  O aspecto jurídico inclui o debate sobre a constitucionalidade do sacrifício de animais em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, sendo considerado o direito fundamental à liberdade religiosa. O texto considera os PLs apresentados nesta Legislatura, com destaque para os que reivindicam o valor da vida animal nos moldes da humana, com ênfase no reconhecimento da família multiespécie.

(3) a morte de um adolescente de 13 anos, Carlos Teixeira,  em decorrência de bullying com violência física, em escola na cidade de Praia Grande (SP), em 18 de abril.  A educação e a segurança no ambiente escolar seguem como temas protagonistas desde o início do projeto de monitoramento. Ainda que um ano depois, os  ataques armados, realizados em escolas, no primeiro semestre de 2023, seguem repercutindo em projetos que preveem “medidas de seguranças” para alunos e professores, segurança obrigatória armada nas escolas, planos de prevenção a ataques, instituição de botão de pânico, sistemas de monitoramento, instalação de cercas elétricas, instituição de defesa pessoal nas escolas e acolhimento psicológico para alunos e professores. Outros projetos dispõem sobre a ocupação de funções de magistério por membros das forças armadas; educação sexual e em direitos humanos; coibição da linguagem neutra no âmbito da/na educação básica nacional; proibição de músicas que façam apologia ao crime e ao sexo, educação domiciliar, censura a livros são exemplos de temáticas que aparecem de forma recorrente. 

Além das três pautas da conjuntura, o conceito de “ideologia de gênero” voltou a protagonizar as discussões sobre a elaboração do novo Plano Nacional de Educação, na Câmara Federal. A exclusão dos termos identidade de gênero e orientação sexual no PNE em curso (2014-2024) se deve, em grande parte, à mobilização de atores religiosos na cena pública, dez anos atrás, conforme analisa Maria José Rosado Nunes, com destaque para o papel da hierarquia católica. 

As  discussões em torno do novo PNE, no Congresso Nacional, devem aumentar a intensidade do pânico moral em torno dos direitos de gênero, uma vez que a atual composição da Câmara e do Senado é marcada por uma hegemonia conservadora.

Foi também destaque nas proposições de abril, PLs que buscam enfraquecer e desmoralizar as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto (MTST), de lideranças indígenas e quilombolas e garantir propriedade a garimpeiros, grileiros e latifundiários. Em 2023, o monitoramento já havia identificado 33 projetos de criminalização de movimentos ligados às causas de reforma agrária, da reforma urbana, do direito à moradia e da demarcação de terras indígenas e quilombolas.

Maio: eventos climáticos e oposição a políticas públicas

Em maio, a comoção nacional com a tragédia no Rio Grande do Sul, resultante do alto volume de chuvas e da ausência de políticas de enfrentamento de eventos climáticos extremos, protagonizou o debate legislativo na Câmara Federal, com 103 projetos. 

Nesse mês, a atenção deste monitoramento se voltou também para proposições de decretos e leis, por parlamentares de direita, de identidade religiosa evangélica, em oposição a Resoluções, publicadas por conselhos de direitos, e a políticas públicas do governo federal.  Os temas são relacionados a práticas religiosas na assistência a dependentes químicos (comunidades terapêuticas) e a pessoas privadas de liberdade e a diretrizes do governo federal para a segurança pública (uso de câmeras corporais na segurança pública).

Junho: aborto legal e disputa por patrimônio cultural e calendário cívico

Junho foi marcado por manifestações populares, de rua e de grande ocupação nas mídias sociais, contra o PL 1904/2024, protocolado no mês anterior, maio, na Câmara Federal, por um grupo de deputados federais ultraconservadores, sendo boa parte, com identidade religiosa. A votação em plenário, em regime de urgência, foi articulada, no início de junho, pelo bloco parlamentar da extrema direita, defensor da retirada do direito ao aborto legal, inclusive nos casos de estupro, o que é previsto em lei desde 1940. Proposições com o tema se configuraram como uma resposta pró e contra o PL 1904. As manifestações contrárias foram bem sucedidas na contenção da votação em regime de urgência no Plenário, porém, a pauta está com a mesa da Câmara.

Outra pauta frequentemente destacada no monitoramento do ISER é o acionamento da religião como foco das disputas por patrimônio cultural e pela ocupação do calendário cívico. Em junho de 2024, houve um número acentuado de projetos parlamentares neste tema. Como  exposto em artigo de Izabella Bosisio, publicado na plataforma Religião e Poder do ISER,  estas ênfases são parte importante das tentativas de construção de uma identidade nacional e ajudam a compreender as disputas em torno de um  imaginário de nação, sobretudo entre aqueles que tentam emplacar a noção  de um Brasil cristão.  

A crescente discussão em torno do uso de novas tecnologias digitais, como deep fakes, reconhecimento facial, instalação de câmeras em fardas policiais e utilização de inteligência artificial em processos eleitorais também gerou amplo debate na Câmara Federal. O tema aparece, ainda, associado à produção de falsa pornografia.  A aproximação do período de campanha das eleições municipais de 2024, promoveu a apresentação de PLs sobre o enfrentamento da desinformação (fake news). 

Como isso nos ajuda a entender as Eleições de 2024

Os debates  na Câmara Federal, no segundo semestre de 2024, deverão ser marcados pelas disputas eleitorais municipais, cada vez mais nacionalizadas.  Os embates mais acirrados nos últimos dois pleitos nacionais entre a extrema direita e a esquerda, colocaram um peso nos pleitos municipais como “pré-eleições nacionais”, na busca de conquista de Prefeituras e vagas das Câmaras de capitais e de grandes cidades de vários estados, como um caminho de ocupação de governos de Estado, Congresso Nacional e Presidência da República. Isto faz com que candidatos da extrema direita que acionam a religião em campanha abdiquem de discutir as pautas relevantes para as cidades, tais como estrutura urbana, saúde, educação, transporte público, entre outras temáticas próprias da vida em um município, para manter a estratégia de captação de apoio eleitoral com base em assuntos que geram controvérsia, debate e apelo a emoções religiosas.

Com isso, temas que não estão sob o poder de decisão de Prefeitos e Vereadores, e que permeiam as pautas tratadas neste balanço dos projetos apresentados na Câmara, como aborto, direitos de gênero, ideologia na educação pública, criminalização de movimentos sociais, oposição a políticas públicas, assuntos conjunturais, para citar os principais, devem ganhar mais espaço nas campanhas desses candidatos, em detrimento do que, de fato, interessa aos eleitores das cidades para a decisão do voto. 

Sobre os autores:

Laryssa Owsiany é antropóloga, doutoranda em ciências sociais (PPGCS / UFRRJ) e pesquisadora no ISER.

Lívia Reis é antropóloga, pesquisadora de pós-doutorado no programa de pós-graduação em antropologia social do museu nacional/UFRJ e coordenadora de Religião e Política no ISER.

Magali Cunha é doutora em ciências da comunicação com estágio pós-doutoral em comunicação e política. Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Pesquisadora do ISER.

Matheus Cavalcanti Pestana é cientista político, professor na FGV-ECMI (Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas), doutorando em ciência política (IESP-UERJ) e pesquisador no ISER.