Segundo pesquisa do ISER, candidaturas afrorreligiosas ainda enfrentam barreiras para ingressarem na arena eleitoral e serem eleitas; Porto Alegre e Salvador se destacam no número de eleitos 

Na capital do estado do Rio Grande do Sul, a afrorreligiosa Karen Santos (PSOL) foi a vereadora mais votada nas eleições de 2020, eleita com mais de 15 mil votos. Mulher preta afrorreligiosa, ela mobilizou o antirracismo como uma de suas bandeiras de campanha. Nas redes sociais, Santos falava em preservação da cultura afrorreligiosa, de quilombos urbanos e das associações negras.

Ela foi uma das sete eleitas entre 64 candidaturas afrorreligiosas nas eleições municipais de 2020, segundo a pesquisa “Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020”, do Instituto de Estudos da Religião (ISER), publicada em abril. A pesquisa analisa como candidatos ao Poder Legislativo mobilizaram sua identidade religiosa nas eleições municipais em oito capitais: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Recife, Belém e Goiânia.

“Afrorreligiosos declaram menos seu pertencimento religioso nas urnas do que candidatos de outras religiões. E isso tem relação com o número de brasileiros que se declararam afrorreligiosos no IBGE, um grupo menor do que católicos e evangélicos. Portanto, o número de candidaturas é pequeno em relação a católicos e evangélicos e o sucesso eleitoral dos religiosos de matriz africana também é muito menor”, destaca Christina Vital, professora do Programa de Pós-graduação e sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e colaboradora do ISER.

As religiões afro-brasileiras têm baixa eficácia eleitoral (proporcionalidade entre número de candidatos e de eleitos) entre as candidaturas  com identidade religiosa em comparação com outras religiões. Segundo o índice do ISER, católicos se saíram melhor: 31%. Em seguida, com 16%, vêm candidatos que se apresentaram como cristãos (sem especificar a igreja ou denominação); 13% para evangélicos e apenas 11% para afrorreligiosos. 

“De um modo geral, aqueles que apresentam nome religioso na urna têm menos sucesso eleitoral do que aqueles não declaram. Isso vale para todas as religiões. Considerando também que as religiões de matriz afro-brasileira sofrem um preconceito histórico, a vinculação dessas religiões ao nome de urna foi menos utilizada”, pontua Vital. 

“A partir de campanhas de conscientização desses grupos religiosos e de grupos contra a intolerância religiosa, começou-se a estimular a vinculação e declaração de pertencimento de candidatos que têm vinculação com umbanda, candomblé e outras religiões ligadas à tradição afro-brasileira”, completa.

Entre eleitos com identidade afrorreligiosa, mulheres representam 57% e pessoas negras 86%, o que dialoga com o perfil de membros deste segmento religioso. “No Brasil, o número de afrorreligiosos é majoritariamente feminino e negro — mas é bom lembrar que em todos os segmentos religiosos a predominância feminina se evidencia”, diz a professora da UFF.

Segundo a pesquisadora, a legislação eleitoral vem buscando reparar a desigualdade de gênero e raça na política a partir do incentivo aos partidos, com a obrigatoriedade da oferta de candidaturas de mulheres e negros. Entretanto,  a colaboradora do ISER alerta que, nos partidos, entre as candidaturas que recebem investimento financeiro e divulgação, poucas têm perfil negro, feminino e de classe socioeconômica mais baixa.

“Além do preconceito em relação às religiões de matriz afro-brasileira, o desafio é relacionado ao perfil de raça e classe. O preconceito está ligado a dimensões estruturais”, explica. 

Esse preconceito é conhecido como “racismo religioso”, termo que ainda está em construção na academia, e no país tem sido caracterizado por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, os principais alvos de violência religiosa no país, segundo Carolina Rocha, pesquisadora doutora em Sociologia, historiadora e escritora.

Porto Alegre e Salvador: as capitais com afrorreligiosos eleitos

Salvador é considerada a “cidade mais negra do mundo fora da África”: pretos e pardos somam mais de 80% da população soteropolitana, em um dos berços das religiões de matriz africana no Brasil. Em 2020, a capital elegeu a candidatura coletiva  “Laina – Pretas por Salvador” (PSOL), com 3.635 votos. Duas das integrantes são candomblecistas bastante atuantes,  Laina Crisóstomo e Gleide Davis, já Cleide Coutinho, terceira integrante da candidatura coletiva, é evangélica de igreja não identificada. As duas primeiras são, respectivamente, lésbica e bissexual. A candidatura apresentou pautas inter-religiosas e enfatizou temas como a representatividade e a laicidade. 

Segundo o levantamento realizado pelo ISER, de um total de 128 candidatos com identidade religiosa em Salvador, 14 eram ligados a religiões de matriz africana. Vale lembrar que este número fica atrás, apenas, da cidade de Porto Alegre, capital com mais candidatos afrorreligiosos no Brasil, nestas últimas eleições municipais, 30. 

Das candidaturas em Salvador, cinco foram eleitas: Edvaldo Brito (PSD), Luiz Carlos Sauíca (PT), Marta Rodrigues (PT), Silvio Humberto (PSB) e Laina – Pretas por Salvador (PSOL). Este é o maior número de eleitos deste segmento religioso entre as capitais analisadas. A maioria apresentou pautas ligadas ao campo progressista, como a luta contra intolerância e racismo religiosos, direitos para a população LGBTQIA+, educação, cultura e redução de desigualdades sociais.

Segundo a pesquisa do ISER, e como observado nas práticas religiosas dos soteropolitanos, o diálogo entre religiões de matriz africana e catolicismo também apareceu em algumas candidaturas, como no caso dos vereadores Luiz Carlos Sauíca (PT) e Marta Rodrigues (PT). Ambos demonstraram boas relações com lideranças católicas e frequentaram espaços católicos durante a campanha eleitoral. 

O Rio Grande do Sul é o estado com maior concentração de afrorreligiosos no país. Em 2020, Porto Alegre foi também a cidade com maior número de candidaturas desse segmento  — 28. No entanto,apenas duas foram eleitas: Cláudia Araújo (PSD) e Karen Santos (PSOL), o que revela uma eficácia eleitoral de 7%.

Segundo o antropólogo Norton Correa (2007), existem cerca de 30 mil terreiros em todo o território gaúcho, com maior concentração em Porto Alegre. E enquanto afrorreligiosos representavam 1,62% da população gaúcha, o Rio de Janeiro tinha 1,31% deste grupo e a Bahia, apenas 0,08% de habitantes assim autodeclarados.

Segundo artigo publicado pelos pesquisadores do ISER Matheus Pestana e Gabrielle Abreu, uma das possíveis justificativas da alta concentração é que “há maior liberdade entre sua população para afirmar seus credos, independentemente de quais sejam, com menor possibilidade de sofrer estigmas ou ser alvo de preconceito”.

Em Porto Alegre, entre as candidaturas com identidade religiosa, 28 foram identificadas como afrorreligiosas,  18 como cristãs, 34 como evangélicas, 18 como católicas, duas como espíritas, duas como judias e uma como budista.  

Pelo alto número de candidaturas com identidade afrorreligiosa na capital gaúcha, muitos candidatos deste grupo publicaram, nas mídias sociais, elementos que explicitavam esta vinculação. Este foi o caso de Jorge Soares (PDT), que postou fotos com seus companheiros de terreiro, e Iyá Vera Soares (PT), que expôs sua campanha nesses espaços religiosos. A candidata também compartilhou santinho onde se apresentava como “mais velha da tradição do axé” e apareceu vestida com indumentária própria do candomblé, destacando a importância de se ter representantes afrorreligiosos na Câmara Municipal de Porto Alegre. Porém, tanto Vera Soares quanto Jorge Soares não foram eleitos.

Vitória Régia Gonzaga da Silva é editora-assistente de Gênero e Número