Enquanto escrevo este ensaio um fato terrível tomou conta da imprensa nacional: o assassinato de quatro crianças à golpes de machado, em creche no sul do país, por um homem jovem, com passagem pela polícia. Nas semanas anteriores, semelhante barbárie aconteceu: um adolescente de 13 anos, repreendido em sala por atitude racista, assassinou a facadas a professora de 71 anos e feriu outras pessoas e colegas. O que tudo isso teria a ver com religião, poder e política pública, temática que orienta este artigo?
Fez parte de nosso cotidiano nacional nos últimos anos o que nomeamos como fundamentalismos, extremismos, intolerâncias, fascismos, racismos e terrorismos religiosos, cultura do ódio. Fomos interpelados, assim, a tomadas de posição na defesa da democracia.
Vimos o surgimento de associações, mobilizações, condutas e pensamentos que não faziam parte da vida brasileira tão explicitamente desde a redemocratização: negacionismo científico e campanhas antivacina, protestos por “intervenção militar” e “volta da ditadura”, clamores armamentistas e aumento da aquisição de armas e munição sob a rótulo de Cacs. Na Internet, proliferaram células e grupos neonazistas e viralizaram as fake News.
Em paralelo, insuflou-se o pânico moral das esquerdas, do feminismo e dos Direitos Humanos, da diversidade sexual e de gênero, acompanhados do real crescimento de vulnerabilidades e violências cotidianas contra mulheres, indígenas, LGBTQIA+, negros e negras, crianças e adolescentes, idosos, pobres e comunidades periféricas. Tudo acompanhado do esdrúxulo apelo para “Direitos Humanos cristãos”. Mas como chegamos a isso?
Observatório da Política LGBT
Em 2018, recebi o convite da deputada federal Luizziane Lins (PT-CE) para uma colaboração com o seu mandato parlamentar por meio da produção de um diagnóstico de avanços e retrocessos na política sexual brasileira. Isso seria feito através da construção de debates públicos, mas principalmente da criação de um núcleo de pesquisa de avaliação da política pública na Universidade, que resultou na criação do Observatório Nacional da Política LGBT, na Universidade Federal do Ceará.
Com a instalação de uma equipe local, levantamos volumoso material documental e etnográfico entre os anos de 2018 e 2020. Parte das ações se voltou para o fomento da relação entre centros de pesquisa no nordeste e sudeste brasileiros que incluíram articulações e entrevistas com lideranças dos movimentos sociais, com técnicos e gestores da política pública e também para a participação em fóruns LGBTQIA+ regionais e nacionais.
Essa movimentação envolveu contatos e depoimentos em Brasília, Salvador, Rio de Janeiro e Fortaleza, além da tomada de relatos de atores de outras regiões durante incursões a campo, incluindo a região interiorana do Cariri cearense. Outra frente de atuação foi a proposição de grupos de trabalho temáticos em encontros das ciências sociais e das ciências sociais da religião para discussão dos avanços e resultados, mas também da produção do estado da arte.
Então, acompanhado de assistentes e colaboradores, levantei dados sobre a política sexual, mas fomos além, ao perceber que ela estava inserida em um tipo específico de atuação que tivera início no golpe que afastou a Presidenta Dilma Rousseff, mas ganhou intensidade e capilaridade na passagem ao governo Bolsonaro: combater minorias e fazer desaparecer do Estado a preocupação com suas demandas.
Era possível classificar o quadro como um verdadeiro ataque à proteção social e aos ideais de laicidade e democracia, na produção de infinitas fórmulas e estratégias de abandono do Estado e de perpetuação das desigualdades sociais que deveriam, ao contrário, ser compromisso do governo brasileiro combater.
A pesquisa consolidou uma ampla base de dados, localizando, incorporando, arquivando e sistematizando materiais de mídias, documentos oficiais (decretos presidenciais, portarias, decretos locais, projetos de lei, decisões judiciais, notas públicas, informações publicadas nas redes sociais) e entrevistas diversas.
Em seguida, coordenei a decupagem de informações e a organização delas em dossiês, reunindo notícias sobre temas diversos da governança implicados em controvérsias públicas: meio ambiente, segurança pública, educação e ciência, saúde, participação social, cultura e arte, sendo que gênero e sexualidade ou as violações dos direitos sexuais compreendiam uma espécie de tema transversal, presente sob a forma de controvérsias dentro das áreas específicas, ligados ao escopo da política pública brasileira.
Por conta do limite de espaço, farei aqui brevíssimo comentário sobre o que descobrimos, pesquisando e produzindo em tempos de bolsonarismo e pandemia de covid-19.
Os desmontes e a violação de direitos
Em meio ao avanço da pandemia, aconteceu o planejado apagão informacional na política governamental: foram ocultos números de mortos e infectados pela Covid, páginas oficiais de informação em HIV-aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTS), dados do desmatamento, grilagem e outros crimes ambientais, pari passu à desarticulação de órgãos de fiscalização ambiental, do trabalho escravo e da exploração sexual, dentre outras graves ameaças às nossas populações e diversidade, incluindo a biodiversidade da floresta amazônica.
Um dos alertas que mais chocou foram notícias sobre as adolescentes Yanomami que fugiam para se esconder nas florestas, depois de divulgar vídeos com pedidos de ajuda para escapar ao estupro e morte por garimpeiros. Posteriormente, soubemos das mortes do fotógrafo Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira que investigavam tão graves fatos ligados à proteção das populações indígenas.
Os desmontes em questão se faziam acompanhar de cenários de violação de direitos e incremento de múltiplas violências. Um cenário de terra devastada.
Nos direitos sexuais, o fim do Departamento de AIDS e das coordenações de Saúde do Homem e Saúde da Mulher, dificultaram o acesso às políticas sexuais por grupos subalternos, incluindo mulheres em situação de abortamento por motivo de estupro. O silêncio do governo sobre profilaxias pré e pós-exposição ao vírus HIV (Prep e PEP) complicou o acesso a testes, diagnósticos e tratamentos. Cresceram o diagnóstico tardio e a Aids avançada, sem resposta a tratamentos existentes, segundo a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids.
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, hoje senadora da República, articulou-se com outros ministérios para campanhas moralizadoras. Em 2021, emplacou um “esperar no Senhor” como método de prevenção ao HIV e outras ISTS e da gravidez na adolescência, pregando éticas de abstinência e castidade e o retardo da iniciação sexual. Seguindo essa linha, conteúdos e mensagens das campanhas foram afetados por aidsfobia e preconceito, difundindo medo e estigma, contrariando as políticas de visibilidade e reconhecimento dos governos anteriores.
A política LGBTQIA+, também enquadrada, beneficiou-se de investimentos na formação profissional para travestis e transexuais como regeneração da prostituição nas ruas, contradições e ambivalências da relação entre Estado, direitos e movimentos.
Na cultura quase emplacou a “arte conservadora”. Para a presidência da Fundação Palmares foi nomeado gestor racista e semelhante foi na Casa de Rui Barbosa e no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), resultando em ataques às políticas de igualdade racial e diversidade cultural.
Em ação concertada, foi dificultada a participação da sociedade civil nas instâncias decisórias do país, amplamente fomentadas desde a Constituição Cidadã, por meio de decretos presidenciais que encerravam Conselhos e outros órgãos de controle social, alterando suas composições e estabelecendo limitações para a atuação.
Sob o slogan “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, assistimos ao projeto de poder da extrema direita e suas redes de influência no Congresso Nacional, alcançar o Executivo Federal e sua máquina e emplacar a antipolítica pública, violadora da concepção dessa política presente na Constituição de 1988. O ataque e desmonte organizado da proteção social é sem precedentes na historiografia brasileira.
Que esse período de trevas tenha passado e equitativismo, igualitarismo e liberdades sejam estabelecidos como ética e responsabilidade do Estado. Mas ainda é preciso elucidar nexos entre o ódio do Estado, a religião e as hostilidades alimentadas no nível das relações interpessoais, materializados nas notícias sobre ondas de violência recorrentes que vitimam populações vulneráveis. Basta!
Equipe de projeto:
- Marcelo Natividade – coordenador
- Júnior Ratts – assistente de coordenação
- Bruno Alves de Souza – pesquisador
- Caiala Mariana Quixadá Monteiro – bolsista
- Rômulo Rocha – bolsista
- Aline Jubim – colaboradora
Marcelo Natividade, antropólogo, jornalista e artivista, Comissão de Laicidade e Democracia da Associação Brasileira de Antropologia, Núcleo de estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH-UFRJ) e Observatório Nacional da Política LGBT (UFC-CE)
Para aprofundar:
NATIVIDADE, Marcelo. Refazendo centros e margens: notas de pesquisa para avaliação da política sexual no Brasil atual. Revista Aval. Fortaleza: MAPP-UFC, v. 5, n. 19, p. 68-97, jan./jun. 2021. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/tomo/article/view/15105.
NATIVIDADE, Marcelo; GUSSI, Alcides; SOUZA, Bruno de; MONTEIRO, Caiala Mariana Quixadá. Avaliação da política sexual para população LGBTQIA+. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura (REBEH). Dossiê Temático Participação Política LGBTI no Brasil: passado, presente e projetos de futuro. UFMT. v. 14, n.14, p. 364-392, 2021. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/12322
NATIVIDADE, Marcelo; SOUSA, Bruno Alves de; ROCHA, Rômulo. Politicas sexuais, saúde e violência em tempos de pandemia de Covid-19. Revista Tomo. Dossiê Ciências Sociais e Saúde, n. 39, São Cristóvão: UFSE, p. 45-84, 2021. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/tomo/article/view/15105.
LUNA, Naara; NATIVIDADE, Marcelo. Apresentação. Religião, direitos humanos e política: balanço das temáticas e pesquisas. Revista Contemporânea. v.10, n.2.: São Carlos: UFSCAR, 2020. Disponível em: http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/894/pdf.