Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 05 mai 2023
Neste artigo, publicado na revista Religião & Sociedade, é apresentada uma análise sobre a presença afrorreligiosa na PNPIR (Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial), entre 2003 e 2018. Observo que, no mencionado artigo, a grafia da palavra “afrorreligiosa” é deliberadamente distinta das atuais normas ortográficas da língua portuguesa. Optei, naquela ocasião, pelo uso intencional e alternativo da versão hifenizada, “afro-religiosa”, para salientar o prefixo “afro-” enquanto um qualificativo de “religiosa”. Tal recurso é também utilizado neste artigo.
Diante dos ataques às religiões afro-brasileiras, o movimento afro-religioso se viu impelido a reformular seu modo de ação e também a ampliar sua atuação no espaço público. Nesse contexto, a PNPIR ganhou destaque uma vez que se tornou lócus privilegiado para o movimento afro-religioso apresentar sua agenda e desenvolver novas estratégias para tentar assegurar que seus representados possam continuar praticando suas religiões.
A QUAL PERGUNTA A PESQUISA RESPONDE?
O artigo “‘Povos e comunidades tradicionais de matriz africana’ no combate ao ‘racismo religioso’: a presença afro-religiosa na Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial” (Morais, 2021) é um desdobramento da minha tese de doutorado publicada no livro “De religião a cultura, de cultura a religião: travessias afro-religiosas no espaço público” (Morais, 2018). Nesse livro, discorro sobre a conformação das religiões afro-brasileiras no espaço público, com especial atenção aos processos de patrimonialização que envolvem tais religiões, bem como à mobilização delas em políticas públicas.
No artigo, me ative a uma política pública específica, qual seja, a PNPIR (Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial), que determina “reconhecimento das religiões de matriz africana como um direito dos afro-brasileiros” (Brasil, 2003). Três questões nortearam minha análise: Como as religiões afro-brasileiras são mobilizadas no discurso do combate ao racismo? De que forma o movimento afro-religioso apresenta sua agenda nesse contexto? Quais estratégias são elaboradas pelos afro-religiosos no âmbito dessa política pública no intuito de garantirem seus direitos?
POR QUE ISSO É RELEVANTE?
Os adeptos das religiões afro-brasileiras, como sabido, já foram alvo de ativa perseguição e ainda lutam contra a repressão a suas práticas. Muitos atos violentos contra os adeptos dessas religiões e seus espaços de culto advêm de grupos evangélicos, que também investem em ações na arena jurídica e na produção legislativa no intento de coibir as práticas afro-religiosas. Há de se ressaltar que esses grupos contam com o apoio massivo de seu arsenal midiático para difundirem suas ideias.
Diante desses ataques às religiões afro-brasileiras, o movimento afro-religioso se viu impelido a reformular seu modo de ação e também a ampliar sua atuação no espaço público. Especialmente a partir dos anos 2000, atos públicos, como passeatas, começaram a fazer parte do cotidiano dos religiosos envolvidos nesse movimento social, como uma reação aos ataques evangélicos. A reação dos afro-religiosos também se manifesta pela via judicial e na busca de alianças junto a parlamentares ditos progressistas. Uma outra frente foi acionada: a atuação no âmbito governamental, via políticas públicas que requerem a participação popular na sua elaboração e implementação.
Nesse contexto, a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, foco do artigo em questão, ganhou destaque uma vez que se tornou lócus privilegiado para o movimento afro-religioso apresentar sua agenda e desenvolver novas estratégias para tentar assegurar que seus representados possam continuar praticando suas religiões. Esse artigo lança luz, assim, a uma nova forma de os afro-religiosos lutarem pela garantia de sua prática religiosa.
RESUMO DA PESQUISA
Neste artigo, apresento uma análise sobre a presença afro-religiosa na Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, entre 2003 e 2018, tendo como base documentos produzidos pelo governo federal, na bibliografia a respeito do tema em tela e na minha experiência de campo junto ao movimento afro-religioso. O período escolhido para análise, de 2003 a 2018, compreende os dois mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006, 2007-2010), seguidos de outros dois mandatos presidenciais de Dilma Rousseff (2011-2014, 2015-2016), finalizando com o curto governo de Michel Temer (2016-2018) – que assumiu a presidência da República após o processo de impeachment sofrido pela presidenta Dilma em agosto de 2016.
Uma escolha à primeira vista arbitrária ou talvez oportuna por contemplar praticamente quatro mandatos presidenciais do PT (Partido dos Trabalhadores), que se manteve, apesar dos percalços, alinhado à pauta antirracista. No entanto, a escolha desse período justifica-se também devido ao acirramento dos ataques de grupos evangélicos às religiões afro-brasileiras. Inicio o texto apontando como as religiões afro-brasileiras são mobilizadas no discurso do combate ao racismo no contexto da política pública em questão. Na sequência, destaco a construção da categoria discursiva “povos e comunidades tradicionais de matriz africana”, contextualizando o momento político em que foi proposta. Finalizo o artigo com uma reflexão sobre a classificação dos ataques de grupos evangélicos contra essas religiões enquanto “racismo religioso”, com base em argumentos construídos por parte dos afro-religiosos no âmbito da PNPIR.
QUAIS FORAM AS CONCLUSÕES?
A associação entre religiões afro-brasileiras e cultura tem sido acionada pelos afro-religiosos no processo continuado de legitimação de suas práticas. Nessa busca por legitimação, o termo “cultura” é acompanhado de um adjetivo que lhe confere uma marca racial: “negra”. Quando juntos, “cultura negra”, soma-se uma característica: “tradicional”, remetendo a uma herança ancestral que tem a África como origem. Uma ideia que reverbera na categoria discursiva “povos e comunidades tradicionais de matriz africana”. Essa categoria foi construída pelos afro-religiosos no âmbito da PNPIR e passou a ser adotada em seus documentos, a partir de 2013, em substituição a expressões que davam ênfase ao caráter “religioso” dessas práticas.
Ao marcarem presença no debate racial, os afro-religiosos se organizaram em uma outra frente para se defenderem dos ataques advindos de grupos evangélicos, classificados, nesse contexto, como “racismo religioso”. Essa forma de classificar tais ataques, antes enquadrados como atos de intolerância religiosa, também foi elaborada por parte dos integrantes do movimento afro-religioso e se fez ecoar na execução da referida política pública.
A expressão “intolerância religiosa” continua a ser adotada por parte do movimento afro-religioso. Também não há uma concordância geral no uso da expressão “povos e comunidades tradicionais de matriz africana”. Há quem prefira seguir afirmando suas práticas como “religião”. Visto que são variadas as religiões afro-brasileiras, é plural o movimento social delas emanado, embora uno em seu objetivo primeiro: garantir a prática religiosa de seus representados.
QUEM DEVERIA CONHECER OS SEUS RESULTADOS?
O artigo “’Povos e comunidades tradicionais de matriz africana’ no combate ao ‘racismo religioso’: a presença afro-religiosa na Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial” foi publicado em um periódico científico especializado em estudos sobre religião. Dessa maneira, estaria voltado para o público acadêmico interessado nessa temática. No entanto, uma vez que nesse texto religião está em interface com política e com raça, leitores de outras áreas também podem se interessar, pensando não apenas no público acadêmico como também em gestores públicos e em integrantes de movimentos sociais. De forma mais ampla, esse artigo pode ser indicado às pessoas que combatem todas as formas de preconceito, em especial o racismo religioso.
REFERÊNCIAS
Brasil. (2003), Decreto n. 4.886, de 20 de novembro de 2003. Institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PNPIR e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília. Disponível aqui. Acesso em: 15/02/2023.
Morais, Mariana Ramos de. (2021), “Povos e comunidades tradicionais de matriz africana” no combate ao “racismo religioso”: a presença afro-religiosa na Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Rio de Janeiro: Religião e Sociedade, 41(3): 51-73.
Morais, Mariana Ramos de. (2018), De religião a cultura, de cultura a religião: travessias afro-religiosas no espaço público. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.