O Brasil do século 16 já havia testemunhado a chegada de missionários protestantes, como o luterano Heliodoro Heroboano que aportou na cidade de São Vicente, bem como a realização do primeiro culto protestante em 1557 na baía de Guanabara pelos calvinistas. Porém, foi no Brasil do século 19 que ocorreu a implantação definitiva do Protestantismo e, isso, em duas fases: com o Protestantismo de Imigração e com o Protestantismo de Missão.
O Tratado de Comércio e Navegação garantia a abertura nos portos brasileiros para navios ingleses, além de permitir certo nível de liberdade para crenças não católicas. Anglicanos e luteranos alemães vieram na esteira da política de incentivo de imigrantes com a finalidade de substituírem a mão de obra escrava. Esse primeiro movimento foi chamado de Protestantismo de Imigração e acredita-se que entre os anos de 1824 a 1974, foram organizadas cerca de 40 igrejas evangélicas “de colônia”.
Em 1836, o pastor da Igreja Metodista dos Estados Unidos Justus Spaulding organizou, no Rio de Janeiro, uma congregação inspirada nos avivamentos estadunidenses. Era inaugurado um tipo de ação puritano-pietista, por missionários de diferentes confissões, vindos daquele país, marcado por vasta distribuição de Bíblias por diversas regiões do Brasil, cujas principais características eram o proselitismo e a visão liberal-econômica. Estas experiências foram agrupadas como Protestantismo de Missão.
Além de estabelecer congregações, estas levas de missionários metodistas, congregacionais, presbiterianos, batistas, episcopais, fundaram escolas e centros comunitários sob a compreensão de que a religião também tinha por missão tirar o país-alvo do atraso. Da metade do século 19 às três primeiras décadas do 20, ocuparam espaço nas cidades, mas conseguiram se espalhar com mais força nos espaços deixados pela Igreja Católica, no âmbito rural, na chamada trilha do café, entre homens livres e pobres e suas famílias.
As bases teológicas destes grupos eram fortemente puritano-pietitas e, na chegada do século 20, ainda se alimentaram do movimento fundamentalista nascido no país das igrejas-mãe. No entanto, havia aqueles que atuavam com uma perspectiva social ancorados, não na perspectiva do american way of life, ideologia que orientou intensamente as missões protestantes dos EUA, mas na teologia do Evangelho Social, do cristianismo comprometido com a prática da justiça e o que entendiam como “Reino de Deus na terra”.
Nas primeiras décadas do século 20 chegaram ao país também grupos denominados “Pentecostais”, que passam a marcar ainda mais fortemente a pluralidade do protestantismo em terras brasileiras [verbetes específicos sobre os Pentecostalismos podem ser encontrados aqui e aqui].
Deste período de estabelecimento do protestantismo emergem marcas sociais relevantes para o Brasil como o trabalho das escolas paroquiais e das escolas dominicais na superação do analfabetismo. Esta ação pode ter tido alvos proselitistas, com vistas à leitura da Bíblia para evangelização e doutrinação, mas trouxe resultados importantes. Como também ocorreu a implantação da Cruz Vermelha no país, o enfrentamento da febre amarela e a fundação do Hospital Evangélico, entre outras ações sociais
Uma diversidade de grupos protestantes, desta forma, se instalou no Brasil, em diferentes regiões e pode perceber o cenário predominantemente católico e suas influências no setor político – fundamental para se discutir e tornar legais (ou limitar) as múltiplas expressões de fé. Na Constituição Federal de 1824, por exemplo, houve uma pequena abertura em relação aos cultos não-católicos. Preconizava-se que a perseguição religiosa não deveria ser uma realidade no país desde que a religião do Estado (catolicismo) fosse respeitada e não se ofendesse a moral pública.
A fase de consolidação do protestantismo no Brasil (1930-1960) também marca as transformações quanto ao perfil evangélico, uma vez que denominações começam a passar por cismas e discutir as diferentes interpretações acerca do papel da igreja na sociedade. Em um quadro geral, podemos aqui definir dois grupos: progressistas, que buscavam, diante das temáticas em evidência, realizar não apenas um papel religioso, mas também educacional e sociopolítico (nas bases do Evangelho Social), e conservadores, alinhados às bases puritano-pietistas e fundamentalistas.
Mesmo em meio à fragmentação do Protestantismo brasileiro durante o século 20, foi criada, neste período (1934), a Confederação Evangélica do Brasil (CEB), que se configurava na união das igrejas protestantes históricas estabelecidas no país. Articulações ecumênicas entre protestantes já existiam no Brasil desde o início do século 20, para o trabalho missionário conjunto e também para ações com a juventude, como a União Cristã de Estudantes do Brasil.
A CEB foi resultado destes esforços em articulação com o movimento ecumênico internacional, em especial, mais tarde, com o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), fundado em 1948. O CMI se estabeleceu com os objetivos a unidade visível das igrejas na comunhão e na prática de sua responsabilidade social. Importa registrar que apenas uma igreja entre as pentecostais brasileiras abriu-se para o diálogo ecumênico, não com a CEB mas com o CMI, a Igreja Pentecostal O Brasil para Cristo, cujo fundador, o missionário Manoel de Melo, estabeleceu relações com o organismo e tornou-a “igreja-membro” em 1969. Esta igreja, porém, se desligou do CMI em 1987.
Foi em 1934 que os evangélicos elegeram o primeiro deputado federal, para a Assembleia Constituinte: o pastor metodista de São Paulo Guaracy Silveira, pelo Partido Socialista do Brasil (PSB). Esta presença na política era pequena por conta da teologia isolacionista em relação aos temas sociais, mas vai se amplificar com a atuação da CEB a partir dos anos 1950.
A década de 1950, cujo quadro era de desenvolvimentismo e efetivação da revolução industrial do Brasil, provocou um profundo deslocamento populacional justificado pelos efeitos sociais em que as melhores terras ficaram nas mãos de agroindústrias e de poucas pessoas. Os camponeses perdiam suas propriedades e se convertiam em trabalhadores assalariados após migrarem para as cidades – resultando em ampliação da marginalização desses sujeitos. Deste modo, concentração de renda, êxodo rural, agressão ambiental, defasagem salarial, eram temas que estavam sobre a mesa.
Quem poderia garantir segurança à nação nesse período de transições? Na visão de uma parcela da população a força militar seria a única capaz de preservar a segurança nacional, pois protegeria a propriedade privada, além de intimidar oposições e quaisquer possíveis guerrilhas. É aqui que surge uma nova ofensiva do imperialismo com suas espionagens e propagandas ideológicas, uma vez que após a Segunda Guerra Mundial os EUA começaram a interpretar o comunismo soviético como uma ameaça não só para a Europa, mas também como um conflito entre Ocidente e Oriente.
Foi nos anos 50 que, em sintonia com o CMI, a CEB criou o Setor de Responsabilidade Social da Igreja, dentro do seu Departamento de Estudos, e promoveu consultas nacionais com a finalidade de informar e formar os cristãos numa linha de compromisso social diante de uma crise nacional.
A primeira consulta ocorreu em 1955 e discutiu-se sobre a responsabilidade social da Igreja, nome do recém-criado Setor da CEB. Em 1957, a segunda consulta pensou a Igreja diante das rápidas transformações sociais que ocorriam no Brasil. A terceira, em 1960, tratou da presença da Igreja na evolução da nacionalidade. Por fim, em 1962, o tema foi “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”. A cidade do Recife promoveu o congresso indicando grande interesse em colocar a teologia em diálogo com as ciências sociais. Foram convidados nomes como Gilberto Freyre, Paul Singer, Celso Furtado. A ideia era trabalhar numa direção de uma teologia pública cidadã, com iniciativas políticas inclusivas, preocupadas com as minorias e, consequentemente, com as condições sociopolíticas da época.
O clima reacionário instaurado no país no início da década de 1960, que levou ao golpe militar de 1964, e à ditadura que perdurou por 21 anos, se estabeleceu também no interior de igrejas evangélicas. A parcela de membros e lideranças conservadoras, sobretudo as de classe média, iniciou reações contra as posições ecumênicas que buscavam diálogo, justiça social e que, por isso, passaram a ser classificadas como “comunistas”.
A repressão interna e externa foi expressiva entre lideranças protestantes. A CEB teve sua sede no centro da cidade do Rio de Janeiro invadida por agentes do Estado e suas atividades foram suspensas. Na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) tornou-se comum a exoneração de pastores ligados à CEB, uma vez que a orientação era banir o discurso sociopolítico nas igrejas e intensificar a pregação pela “conversão de almas”. Na Igreja Batista, circularam documentos que criticavam a “desabusada minoria” (referindo-se aos “comunistas”), além de exaltarem o movimento realizado por militares em 1964. Já na Igreja Metodista, lideranças prestaram serviço de delação a órgãos de repressão, com o intuito de denunciarem membros que atuavam na oposição ao regime. Entre pentecostais, o missionário Manoel de Melo sofreu pressões de agentes do Estado.
Os anos 50 e 60 marcam a defesa e o distanciamento de determinados setores protestantes brasileiros por temas como superação do individualismo característico do protestantismo de missão rumo a uma teologia social; pobreza da maioria da população brasileira; preconceitos de toda sorte; defesa de liberdade de consciência e de expressão e os princípios democráticos; proteção à infância e à juventude; melhor distribuição das riquezas nacionais e reforma agrária; melhoria do sistema de saúde e ações de combate aos vícios; melhores condições de moradia nas áreas urbanas e rurais; trabalho das mulheres; reforma previdenciária; direito à greve.
O alinhamento das cúpulas das denominações evangélicas no Brasil com a ditadura militar provocou três movimentos que vão marcar o futuro das igrejas com reflexo que permanecem no presente. O primeiro, que José Bittencourt chama de “Idade das Trevas do Protestantismo Nacional”, é o da repressão, da perseguição de quadros progressistas, em especial da juventude. Este proporcionou a entrada de organizações paraeclesiásticas estadunidenses conservadoras no Brasil para atuação com esta parcela das igrejas e “formação de novos quadros”.
O segundo, a resistência da minoria progressista alinhada com a CEB e com o movimento ecumênico, que atuou pela sobrevivência da teologia do Evangelho Social e das ações por diálogo, defesa da vida e da democracia. Deste último nasceram organizações como o Centro Ecumênico de Informação, a Associação Seminários Teológicos Evangélicos, a Coordenadoria Ecumênica de Serviço, entre outras, ainda em atuação no século 21.
O terceiro, a explosão pentecostal, com o surgimento de um sem-número de igrejas autóctones, que ocupou a arena religiosa também a partir do vácuo resultante da perseguição interna e externa dos evangélicos históricos, e da falta de um projeto de igrejas para o Brasil.
Nelson Lellis é doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF); membro do grupo de pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião (CRELIG).
Para saber mais:
ARAÚJO, João Dias de. Inquisição sem fogueiras: a história sombria da Igreja Presbiteriana do Brasil. 3ª Ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.
BITTENCOURT FILHO, José. Caminhos do protestantismo militante: ISAL e Conferência do Nordeste – Série: Protestantismo e Sociedade Brasileira. Vitória-ES: Ed. Unida, 2014.
CNV – Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos. Vol. 2. Brasília: CNV, 2014. Disponível em: <http://www.cnv.bov.br>. Acesso em 16 out 2020.
LELLIS, Nelson. “Como se articula o golpe pela via (dolorosa) da religião?”. In: LELLIS, Nelson; PINEL, Hiran (orgs). Religião, Educação e Política: ensaios sobre os (des)comportamentos da sociedade brasileira. São Paulo: Ed. Recriar, 2019, p. 85-91.
ORO, Ari Pedro (org.). Religião e política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar, 2006.
ROSA, Wanderley Pereira da. Por uma fé encarnada: Uma Introdução à História do Protestantismo no Brasil. São Paulo-SP/Vitória-ES: Ed. Recriar/Ed. Unida, 2020.
SOUZA, Silas Luis de. Protestantismo & Ditadura: os presbiterianos e o governo militar no Brasil (1964-1985). São Paulo: Fonte Editorial, 2914.
VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa. Brasília: Ed. UNB, 1980.