Pesquisa do ISER revela que direitos reprodutivos e violência contra a mulher foram as principais pautas de gênero entre candidatos com identidade religiosa na campanha de 2020.
Evangélica e membro da Igreja Universal do Reino de Deus, a vereadora Ireuda Silva (Republicanos) apresenta o programa “Forte por ser mulher” na TV IURD. Em um dos episódios de 2020, recebeu a então candidata à vice-prefeita de Salvador na chapa com Bruno Reis (DEM), a católica Ana Paula Matos (PDT). Ambas trataram do papel das mulheres na gestão pública, falaram de violência contra as soteropolitanas e Silva aproveitou para destacar os projetos voltados para elas em seu primeiro mandato.
Nas eleições de 2020, o debate de gênero entre candidatos com identidade religiosa foi impulsionado principalmente por três temas: a defesa dos direitos das mulheres, o combate à violência contra a mulher e o incentivo à participação feminina na política. A conclusão é da pesquisa “Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020”, do Instituto de Estudos da Religião (ISER), publicada em abril.
A vereadora visava intensificar o combate à violência doméstica e familiar e fortalecer a rede de proteção à mulher através do projeto Guardiã Maria da Penha, a ser implantado junto à Guarda Civil Municipal. Além disso, ela propôs e conseguiu a aprovação do “Guardiã Maria da Penha nas Escolas”, com o objetivo de incluir atividades pedagógicas para conscientizar alunos e pais sobre a violência doméstica e familiar.
“A violência contra a mulher passou a ser uma questão dentro das igrejas e hoje ocupa uma posição central. Existem muitos programas de assistência social nas Igrejas voltados ao combate à violência doméstica. É uma pauta não só das mulheres, mas apropriada por homens e conservadores. O conservadorismo pode ser muito sutil e aparecer em pautas legítimas. Essa pauta encontra ressonância não só nas igrejas, como na vida cotidiana das pessoas”, comenta Lívia Reis, coordenadora da pesquisa e pesquisadora do ISER.
Para Simony dos Anjos, cientista social, doutoranda em Antropologia e integrante da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, a pauta da violência contra a mulher é tão importante, principalmente para candidaturas femininas evangélicas, porque que vem para as igrejas por conta de um movimento da sociedade:
“A Igreja tem que reagir de alguma maneira, porque é a capacidade de reação dessa instituição eclesiástica aos problemas do seu tempo que faz com que ela permaneça. E sua reação foi aderir às pautas da violência contra a mulher”, conta. “O discurso sobre violência doméstica é produzido sob a perspectiva de manter uma família funcional. Pai, mãe e filhos, um pai que não seja violento, mas uma mulher que esteja submissa e que cuide do seu lado. Mas qual a qualidade do debate de violência doméstica nas campanhas eleitorais? Aí entra a diferença de como os conservadores e progressistas discutem violência doméstica”.
Diferenças de gênero
Apesar de o debate de gênero estar presente nas candidaturas com identidade religiosa, o desequilíbrio de gênero é evidente. Dos 177 eleitos, 142 se declararam do gênero masculino e 35 do gênero feminino.
Os partidos que apresentaram maior paridade entre os eleitos foram Cidadania, DC e PRTB (50%), seguidos do PSDB (30%) e PSOL (28,5%). Oito partidos não elegeram nenhuma mulher com identidade religiosa, são eles: PCdoB, PL, PMB, PMN, PROS, PSL, PTC e SOLIDARIEDADE.
A religião que mais elegeu mulheres com identidade religiosa foi a evangélica, com 19 vereadoras. Em seguida, foram católicas (11), cristãs (10) e afro-religiosas (4).
“A Igreja Universal do Reino de Deus tem um peso muito importante na bancada evangélica. Ao observar o movimento de mulheres dentro da Igreja Universal do Reino de Deus, vemos que há programas muito interessantes, como o que orienta mulheres que sofreram violência doméstica. As mulheres são uma força importante dentro da Igreja, não são uma força tão submissa como a gente imagina”, destaca a integrante da Rede de Mulheres Negras Evangélicas.
Direitos reprodutivos: proteção à família e à fé cristã
“Em quatro anos na Câmara, impedi que mais de 50 projetos de lei de diversos outros vereadores, que queriam facilitar aborto, legalização das drogas e ideologia de gênero, fossem aprovados! (…) Vote 17.444 e proteja seus valores, sua fé e sua família! Ou em breve tudo ficará pior”, destacou o vereador reeleito Rinaldi Digilio (PSL), em postagem nas redes sociais na campanha eleitoral de 2020.
Apesar do aborto não ser matéria de competência municipal, o posicionamento explicitado nos materiais de campanha de candidaturas com identidade religiosa conservadoras cumpre a função de indicar a ligação daqueles candidatos com valores cristãos conservadores, apresentadas sob a ótica de proteção à família e à fé cristã.
“Essa pauta entra na chave da identificação do candidato. É uma forma do eleitor identificar a moral dessa candidatura, mas esse tema não é tratado em profundidade”, pontua Lívia Reis. Ela ainda lembra que acionar essa pauta nas campanhas também contribui para a produção de pânico moral e conecta o posicionamento antiaborto à ideia de trabalho e honestidade.
Durante o período eleitoral, houve entre os candidatos grande repercussão do caso da menina de dez anos, do Espírito Santo, cujo aborto previsto em lei não pôde ser realizado no estado após intervenção informal do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos e acabou sendo feito no Recife (PE).
Em Belo Horizonte, a vereadora eleita Flavia Borja (Avante), fez postagens sobre o tema. A solução apontada por ela para resolver a questão do aborto passava por “acolher” mulheres que vivem o que chamou de “gravidez indesejada”, indicando “a defesa da vida” como política pública.
Junto com vídeo divulgado em suas redes sociais, ela escreve: “Muitas vezes a gravidez acontece em um contexto inesperado e essas gestantes precisam ser acolhidas. São histórias diversas, que podem ser mudadas tanto na vida das mulheres quanto nos bebês que estão sendo gerados. Essa causa move o meu coração e presenciei de perto um programa que já salvou 841 bebês do aborto. Agora quero tornar essa realidade ‘política pública’ de Belo Horizonte, um programa específico de preservação da vida dando apoio social, psicológico e algumas vezes até econômico a essas mulheres. VENHA COMIGO LUTAR PELA VIDA EM BELO HORIZONTE!”
Debate racial para além do Dia da Consciência Negra
Em 2020, pela primeira vez um número maior de negros do que de brancos concorreu às eleições. No entanto, entre os eleitos com identidade religiosa, pessoas negras representam 36%. Os homens foram a maioria entre os negros eleitos (81%) e as mulheres negras foram apenas 19%. Dentre os eleitos negros, os evangélicos também dominaram (28), seguido de católicos (18), cristãos (12) e afro-religiosos (6).
Entre os candidatos, o debate racial apareceu nas eleições muito apoiado pelo dia da Consciência Negra, celebrado dia 20 de novembro, data próxima às eleições daquele ano, e por postagens sobre personalidades negras. Segundo Simony dos Anjos, assim como as igrejas produzem um discurso de gênero que não é emancipador, na questão racial não é diferente:
“A questão racial é resolvida dentro das igrejas com um discurso de que todos são iguais e filhos de Deus. Então a capacidade desses candidatos discutirem estes temas é praticamente nula, porque esse é um dos problemas basilares do racismo no Brasil”.
O vereador Bispo João Mendes de Jesus (Republicanos), do Rio de Janeiro, mobilizou a pauta racial em diversos momentos da campanha, tendo, inclusive, apresentado o tema a partir de sua trajetória pessoal, uma tendência identificada entre candidatos da Igreja Universal do Reino de Deus nas capitais. Ele foi autor da lei que instituiu cotas em concursos do município do Rio de Janeiro. Em 13/10, ao apresentar sua candidatura, escreveu nas redes sociais:
“Sou autor da Lei 5041/2012 que determina a reserva de 20% de vagas em concursos para negros e índios (sic) por um período de dez anos, podendo ser renovado conforme necessidade. E se você não entende a importância deste tema, vou explicar!
O Brasil tem uma dívida com os brasileiros negros e índios (sic) e por isso temos de promover o acesso desses cidadãos à educação, ao emprego, à saúde e ao consumo, enfim, à cidadania, por meio de ações que assegurem a igualdade de oportunidades. Essa lei tem um enorme impacto social, porque promove políticas públicas afirmativas, o desenvolvimento social e o crescimento econômico dos negros e índios”.
Já a pesquisadora Lívia Reis pontua que a questão do debate de raça é presente, principalmente, na identidade dos candidatos. “ É muito interessante ver como a Igreja Universal vem disputando mesmo a narrativa sobre raça, ainda muito na chave da igualdade, mas reconhecendo o racismo e as diferenças que corpos negros vivem na sociedade. Este debate está começando a entrar com mais força dentro das igrejas. Nessas eleições não conseguimos captar tudo, mas o que emergiu com mais força foi essa disputa na Igreja Universal”.
Imagem: Divulgação do encontro de mulheres negras cristãs 2021 – Reprodução: Instagram @negrasevangélicas.
Vitória Régia Gonzaga da Silva é editora-assistente de Gênero e Número