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Radialistas, apresentadores e muitos apadrinhados por grandes nomes das comunidades evangélicas: este é o perfil dos parlamentares que articulam as pautas da religião no Congresso Nacional, mas não só. Se ao senso comum as pautas religiosas e conservadoras auxiliam a manter uma unidade inabalável, os caminhos rotineiros da política mostram que não é bem assim.
A atual composição da Frente Parlamentar Evangélica contém 203 parlamentares, e é presidida por Silas Câmara. Todos os parlamentares signatários têm trajetória e mandatos consistentes o suficientes para promover um “racha” no período de (re)eleição da presidência da frente, afastando a ideia de “evangélico único”. É importante destacar que frente não é sinônimo de bancada, como define bem a plataforma Religião e Poder. Frentes parlamentares são associações de parlamentares, de caráter formal e suprapartidário. As frentes se diferem das bancadas, que não são institucionalizadas, mas estabelecem, de fato, uma articulação em torno da religião no Congresso Nacional, seja em forma de reuniões específicas, elaboração de Projetos de Lei relacionados a pautas religiosas, ou, ainda, de produção de conteúdo com caráter religioso, como documentos na forma de manifestos e registros em mídias sociais.
Ainda assim, a presidência da Frente é alvo de disputa entre diferentes grupos de evangélicos. Câmara é deputado federal já há cinco mandatos consecutivos, pastor da Assembleia de Deus e irmão de Samuel Câmara, dono da rede evangélica de TV Boas Novas, no Amazonas. A estreita relação do parlamentar com a mídia e com a igreja pautam diretamente a sua atuação. Em 2020, Câmara apresentou 14 propostas legislativas, entre elas o PL 2912/2020, que “dispõe sobre a concessão de benefícios emergenciais às Instituições Sem Fins Lucrativos de Radiodifusão comunitária” durante a pandemia de covid-19. O texto prevê auxílio de R$ 10 mil a rádios comunitárias a cada trimestre, durante a pandemia, com a contrapartida de divulgação de informações sobre prevenção e combate ao vírus.
Na atual legislatura, Câmara também já propôs moção de aplauso pelo 109º aniversário da Assembleia de Deus no Brasil, a criação do Dia Nacional do Pastor e Pastora Evangélico e o Dia de Oração pelas Autoridades da Nação. A Assembleia de Deus, de Câmara, é a igreja com mais representantes no núcleo duro da Frente Parlamentar Evangélica. Mas a sua reeleição não foi fácil, e outros nomes se colocaram na disputa.
Abílio Santana (PL/BA) foi um deles. Deputado federal em seu primeiro mandato, na 56ª legislatura, no plenário ele quase não fala. Nos primeiros dois anos de Câmara dos Deputados, até agora, só teve um discurso. Nele, reafirma o seu compromisso com a “ética e a família tradicional”. Baiano, em seu discurso ele agradeceu os votos que teve na maioria dos municípios do estado, e se coloca como um dos representantes do povo evangélico porque, diz, sua fé é proferida em um único Deus.
Em 2019, ano que tentou presidir a Frente Parlamentar Evangélica, também foi autor ou coautor de 273 propostas legislativas, sendo três destes projetos de lei e todos com afinidade com pautas evangélicas. O PL 5799/2019 é mais uma tentativa de barrar os avanços do aborto em casos já permitidos por lei, já que busca “estabelecer o início da personalidade civil com a concepção do embrião vivo”, o PL 4832/2019 pretende instaurar o “Dia Nacional do Orgulho Cristão” e o PL 2552/2019 “dispõe sobre a proibição do uso de recursos públicos para realização de eventos artístico-culturais que contenham manifestações de desvalorização, escárnio e discriminação contra quaisquer religiões ou cultos religiosos”. Na justificativa deste último, Santana usa como exemplo o desfile do Carnaval 2019 da escola de samba Gaviões da Fiel, em São Paulo. Na ocasião, a agremiação levou à avenida um “duelo” entre Jesus Cristo e o Diabo, fato que, de acordo com o parlamentar, causou indignação e constrangimento à comunidade cristã.
Em 2020, Santana está com atividade parlamentar mais tímida: não houve qualquer proposta legislativa ou discurso em plenário. Em ano de eleição municipal, o presidente da setorial baiana do Partido Liberal endossa, em suas redes sociais, a candidatura de Bruno Reis, vice-prefeito de Antônio Carlos Magalhães Neto à prefeitura de Salvador.
Mais disputa pelo topo
Além de Câmara e Santana, tentaram presidir a Frente Parlamentar Evangélica, no início da legislatura Glaustin Da Fokus (PSC/GO), Cezinha de Madureira (PSD/SP) e Sóstenes Cavalcante (DEM/RJ).
Da Fokus está em seu primeiro mandato, e não discursou nenhuma vez em plenário desde a posse. Pastor da Assembleia de Deus, ganhou a confiança da alta cúpula da igreja em Goiás quando recebeu apoio para as eleições de 2018 e se elegeu com mais de 100 mil votos. Com atuação parlamentar tímida em relação às pautas que o ajudaram na campanha (conservadorismo nos costumes), destaca-se o requerimento para uma explicação da Netflix sobre o especial de Natal da produtora Porta dos Fundos. No filme, Jesus é uma pessoa gay.
Cezinha de Madureira (PSD/SP) leva no nome o ministério que pavimentou a sua trajetória política. Já foi apresentador de TV e radialista de programas religiosos. Na comemoração do 90º aniversário do ministério, foi ao plenário da Câmara agradecer ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que “tirou minutos da sua agenda para estar conosco, parabenizando o trabalho da Assembleia de Deus Madureira”. Sua ligação com a igreja é forte: em entrevistas e perfis, afirma que o bispo Samuel Ferreira, presidente da Assembleia de Deus, é seu pai adotivo.
Assim como Silas Câmara, Cezinha de Madureira evidencia nos seus projetos de lei as suas credenciais religiosas e profissionais. Ele já propôs que o pagamento da concessão radiodifusão sonora e de sons e imagens fosse parcelado e uma isenção de taxa para “estações retransmissoras auxiliares para cobertura de áreas de sombra das estações de televisão digital”. Em 2020, durante a pandemia, apresentou PL 4331/2020, que pretendia incluir as atividades religiosas no rol de serviços e atividades essenciais. Mais recentemente, seu PL 4188/2020 “dispõe sobre as Garantias e Direitos Fundamentais ao Livre Exercício da Crença e dos Cultos Religiosos”. Na justificativa, o parlamentar afirma que o texto “dará as mesmas oportunidades às demais religiões, seja de matriz africana, islâmica, protestante, evangélica, budista, hinduísta”.
Outro postulante à presidência da Frente Parlamentar Evangélica nesta legislatura, Sóstenes Cavalcante (DEM/RJ) foi o que mais rivalizou com Silas Câmara na disputa. Na época, a Folha de S. Paulo noticiou um racha na Frente, com reclamação de Sóstenes sobre a movimentação capitaneada por Cezinha de Madureira, com apoio de David Soares (DEM/SP), Gilberto Abramo (Republicanos/MG), Márcio Marinho (Republicanos/BA), Vavá Martins (Republicanos/PA) e Vinicius Carvalho (Republicanos/SP), todos nomes identificados no levantamento do Religião e Poder como focos de articulação política dos evangélicos na Câmara dos Deputados.
O núcleo de articulação evangélica, como define a plataforma Religião e Poder, é composto por um número pequeno de parlamentares em relação ao total dos que as subscrevem. Em geral, esses parlamentares integram os “quadros orgânicos” da frente, ocupando diretorias e outras funções de destaque, além de ser aqueles que comumente se pronunciam em nome dela no Parlamento, em eventos públicos e nas diferentes mídias.
Sobre a movimentação, Sóstenes afirmou: “Não poderia mudar no meio, deveria valer então só para o próximo”, disse à repórter Angela Boldrini. A mudança “no meio” se referia à possibilidade de reeleição de um presidente na frente na mesma legislatura. Com a reeleição de Silas Câmara, Sóstenes amargou a derrota frente ao grupo, mas seguiu na defesa de pautas evangélicas.
Com atuação parlamentar ativa na atual legislatura, Sóstenes discursa mais do que a média dos colegas da articulação política evangélica. Em 2019, apresentou mais de uma proposta legislativa por dia. No mesmo ano, bradou contra a Netflix pelo especial de Natal. “Eu não gostaria de vê-los fazendo esse tipo de afronta a Maomé, porque eles veriam a reação do mundo islâmico”, disse no plenário. Também no plenário, Sóstenes defendeu que “família é instituída como está na nossa Constituição de forma muito clara: pai e mãe e sua prole” e que “não existe outro modelo”.
Sóstenes é pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, afilhado político e amigo pessoal do pastor Silas Malafaia, que preside a igreja e é um dos principais nomes religiosos que defendem as pautas conservadoras e bradam contra a chamada “ideologia de gênero”. A aproximação e influência ficam evidentes na atuação parlamentar do deputado.
É de autoria do parlamentar o PL 3453/2019, que pretende aumentar a pena dos crimes de homicídio e lesão corporal quando cometidos em função da vítima ser transgênero ou em decorrência da sua orientação sexual, e, ao mesmo tempo, o PL 2639/2019, que “estabelece o sexo biológico como critério exclusivo para a definição do gênero em competições esportivas oficiais no Brasil”. Ele também assina o PL 246/2019, o Escola sem Partido.
Quem é quem
Os outros nomes que viabilizaram a reeleição de Silas Câmara à presidência da Frente Parlamentar Evangélica são David Soares (DEM/SP), Gilberto Abramo (Republicanos/MG), Márcio Marinho (Republicanos/BA), Vavá Martins (Republicanos/PA) e Vinicius Carvalho (Republicanos/SP).
Um dos parlamentares que auxiliaram Cezinha de Madureira na condução da reeleição de Silas Câmara é Vinicius Carvalho (Republicanos/SP), deputado federal no seu terceiro mandato. É pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, radialista e foi executivo da Record TV. Sua formação como advogado especialista em direito do consumidor fica evidente nas pautas que apresenta: na atual legislatura, até então, priorizou pautas de direito do consumidor.
Gilberto Abramo (Republicanos/MG) e Márcio Marinho (Republicanos/BA) também são outros dois parlamentares ligados à Igreja Universal. Abramo está no seu primeiro mandato, e até então tem priorizado pautas referentes às questões locais do estado que o elegeu, como ações após rompimento de barragens.
Márcio Marinho, por outro lado, está no seu quarto mandato e é bispo da Universal. A atuação de Marinho na igreja é tão forte que, ano passado, ele foi representá-la em viagem a São Tomé e Príncipe, em meio aos protestos contra a permanência da Universal no país após a divulgação de mensagens em que um pastor da congregação denunciava desvio do dízimo e, principalmente, crimes contra os são-tomenses. De acordo com a BBC, Marinho viajou ao país africano com intuito de se encontrar com autoridades locais. Meses depois, afirmou que a viagem foi feita com recursos próprios. Na mesma entrevista, reafirmou sua presença na base do presidente Jair Bolsonaro: “O governo Bolsonaro corresponde a um sentimento tanto dos católicos, como dos evangélicos. (…) Ele é a favor do fortalecimento da instituição chamada família, que sempre acaba sendo desgastada por várias questões que nós respeitamos.”
Companheiro de partido da dupla, Vavá Martins (Republicanos/PA) está no seu primeiro mandato como deputado federal e pretende interrompê-lo: é candidato à Prefeitura de Belém no pleito de 2020, e tem como vice na sua chapa um sargento da Polícia Militar. Martins iniciou sua trajetória como pastor na Igreja Universal do Reino de Deus e já foi apresentador de TV de programas religiosos.
Apesar de ter iniciado em uma denominação específica, Martins atualmente se diz um pastor “interdenominacional”, citando que prega na Assembleia de Deus, na Igreja Quadrangular e, também, na Igreja Universal. A fala foi publicada em um vídeo no último dia 17 de setembro, onde Martins reage a um vídeo, não divulgado, em que, diz, tentam ofendê-lo chamando de pastor.
No Congresso, apresentou apenas três projetos em 2020. Um deles deseja instituir o “Dia Nacional do Jejum Oração, Adoração e Celebração coletiva a Deus pela Nação Brasileira”. Na sua campanha à Prefeitura da capital paraense, suas principais bandeiras são as mesmas da corrida para a Câmara dos Deputados: a defesa do meio ambiente e a “luta contra a corrupção”. “Para mim, Deus, pátria e família são inegociáveis. Eu sou pastor com muito orgulho, honra e alegria. Me chama de pastor, mas não me chama de corrupto”, afirmou na mesma publicação.
Já David Soares é filho do pastor e missionário R. R. Soares, fundador e líder da Igreja Internacional da Graça de Deus. No início deste ano, David pediu na Câmara que houvesse, em agosto, uma sessão solene em homenagem aos 40 anos da igreja fundada pelo pai. Ele também é coautor do PL 1995/2020, que define templos religiosos como “atividade essencial para efeito de políticas públicas no âmbito do Poder Executivo”.
Mas a proposta legislativa mais visada de David veio à tona no último mês, quando apresentou nova ementa ao PL 1581/2020, em um texto que previa anistia retroativa a impostos previdenciários devidos das igrejas. Na justificativa, o deputado, que assina a emenda com o deputado Luis Miranda (DEM/DF), argumenta que o objetivo é tornar “a lei ainda mais clara e com isso reduzir a judicialização e até mesmo o gasto equivocado de horas de trabalho do fisco com entidades religiosas”, uma vez que o perdão tributário e a legislação atual a que estão submetidas “permitem interpretações distorcidas por parte dos órgãos do fisco”.
O texto foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, mas com recomendação de derrubada por parlamentares. A bancada evangélica afirmou que já tem votos suficientes para a ação.
Oposição evangélica
A única membro da oposição do governo no núcleo de articulação evangélica é Rejane Dias (PT/PI), que está em seu segundo mandato. Ela é evangélica da Igreja Batista, Dias tem como principais pautas em seus discursos e projetos a educação e a defesa dos direitos de pessoas com deficiência. Não há registros na atual legislatura de embates da parlamentar com a bancada do Partido dos Trabalhadores, exceto pelo dia 08/05/2019. Na ocasião, o partido orientou pela obstrução da votação que adiaria por duas sessões a discussão do PLP 55/2019. O texto, de Clarissa Garotinho (PROS/RJ), previa que convênios destinados a associações beneficentes e entidades religiosas de qualquer culto, como as Santas Casas de Misericórdia, fossem renovados pelo prazo de 15 anos.
Contrária à orientação de bancada, Rejane Dias votou pelo não adiamento. A parlamentar justificou: “Esse projeto é muito importante para igrejas, para as Santas Casas de Misericórdia e para as entidades beneficentes, pois vai dar benefícios fiscais. Como sei da relevância desse projeto para as igrejas, voto a favor dele”.
“Esse projeto é muito importante para igrejas, para as Santas Casas de Misericórdia e para as entidades beneficentes, pois vai dar benefícios fiscais. Como sei da relevância desse projeto para as igrejas, voto a favor dele.”
Rejane Dias (PT/PI)
Em 2019, foi Rejane quem propôs a sessão solene em homenagem ao Dia do Evangélico na Câmara dos Deputados. Na ocasião, a parlamentar discursou e afirmou, entre outras falas dignas de um culto, que “feliz é a nação cujo Deus é o Senhor”. Saudou Silas Câmara e sua ação na liderança da Frente Parlamentar Evangélica: “Todos convivem, mesmo sendo de denominações diferentes”.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil