Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 06 mar 2024

As discussões públicas sobre a existência de uma nova direita carecem, em parte, de uma visão da participação de atores religiosos numa perspectiva de longa duração. Ideias e comportamentos comuns neste espectro nem sempre são uma novidade. Há fatores globais recentes importantes para entender como certas ideias encontram maior ou menor eco no público da nova direita. Porém, nesse conjunto de lideranças e organizações que despontaram na cena política brasileira, sobretudo a partir de 2013, está a presença de atores religiosos fundamentais para se entender a história política recente do Brasil. Embora o que se convencionou chamar de “nova direita” seja um fenômeno de qualidade internacional.

Há uma tradição conservadora no Brasil que se realiza especialmente no âmbito do Catolicismo. Para Georg Wink (2023), o ano de 1922 é o que poderíamos chamar de data de nascimento dessa direita religiosa, católica, que foi capaz de produzir uma série de intelectuais importantes. Nesse espaço de sociabilidade intelectual fermentaram ideias que persistem hoje nos discursos das direitas religiosas e seculares no Brasil. Este é o ano da fundação do Centro Dom Vital, pelo ativista católico Jackson de Figueiredo. 

Figueiredo pertence a uma linhagem autoritária e espiritualista, tendo como referência o filósofo cearense Raymundo de Farias Brito. Este recusava toda tradição de pensamento materialista do positivismo, e para quem a verdade só poderia ser acessada em concretude pela via espiritual. Já a política deveria ser orientada pela moral organizada e administrada pela razão. Ele cria a primeira organização de pressão política do laicato católico, arquétipo de muitas outras que surgiriam ao longo dos séculos XX e XXI.  Jackson Figueiredo foi também umas das referências do pensamento integralista, como indicam Gilberto Vasconcellos (1979) e Hélgio Trindade (1979).

O Centro Dom Vital passa a ser irradiador de um pensamento católico autoritário, antiliberal e antissocialista, que postula uma revolução espiritual, e considera as questões sociais secundariamente. Após o precoce falecimento de Jackson Figueiredo, o centro terá em Alceu Amoroso Lima seu líder. Sob sua administração, a instituição inverte seu trajeto na rota do autoritarismo religioso, alguns personagens se afastam e fundam novos movimentos com o caráter integrista acentuado, como Gustavo Corção, do movimento Permânencia; José Pedro Galvão de Sousa, de Hora Presente e Plinio Corrêa de Oliveira, da Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, a TFP. Todos com amplo espaço nas mídias da época, Corção e Corrêa de Oliveira com colunas fixas em O Globo e Folha de São Paulo, respectivamente. 

Os movimentos criados pelos dois últimos são ainda atuantes na cena política, embora não com o mesmo formato. No caso da TFP, com um novo nome imposto por disputas de liderança interna, denominando-se atualmente Instituto Plinio Corrêa de Oliveira.

Embora as análises historiográficas sobre esses movimentos ainda não tenham suficientemente elucidado o que há de continuidade entre as ideias gestadas nestes ambientes e as que hoje ganharam cidadania nos meios conservadores brasileiros, há uma relação direta de antecipação de alguns temas. 

Um exemplo é o conhecido “marxismo cultural”, teoria apresentada por Michael Minnicino em artigo de 1992, The New Dark Age: The Frankfurt School and ‘political Correctness’ e difundido no Brasil por Olavo de Carvalho, que sustenta a ideia de uma mudança estratégica do marxismo clássico que visaria a penetração nos espaços culturais. 

No entanto, essa ideia já era apresentada pela TFP, na obra La Iglesia del silencio en Chile, de 1976. Ao tratar das novas realidades do comunismo na época, dizia de Gramsci que “muitos sustentam que seriam as suas doutrinas as que poderiam dar uma resposta ao fracasso das revoluções no Ocidente”. (p. 5). Em entrevista para o Correio do Povo de abril de 1975, José Pedro Galvão de Sousa, líder do movimento e da revista Hora Presente, denunciava a existência da chamada “revolução cultural” nos mesmos termos. 

Outra ideia fundamental das novas direitas e que encontra correspondência nas direitas católicas do século passado é a da primazia das pautas morais. Divórcio, casamento homossexual, aborto eram os temas recorrentes de campanhas da TFP, como O amanhã de nossos filhos, criada no início da década de 1990. Ela tinha o intuito de pressionar em favor da moralidade católica por meio de campanhas que atingiam a opinião pública, abaixo-assinados. Com o advento da internet, encontrou espaço tanto para a disseminação deste conjunto de ideias quanto para sua própria sobrevivência.

A internet foi, sem dúvidas, responsável por nutrir os novos grupos das velhas direitas católicas, que atravessam a virada do século reduzidas praticamente a uma existência virtual. É o mesmo espaço que gestaria o neoconservadorismo que hoje ocupa comodamente o espaço público.

A observação das formas pelas quais se organizam os movimentos e agremiações do neoconservadorismo católico atual, como o Centro Dom Bosco, deixa exposta a persistência de uma tradição conservadora católica. Esta, a despeito de um período de dormição entre a morte de seu último nome de alcance midiático, Plinio Corrêa de Oliveira (1995), e a decisiva atuação de Olavo de Carvalho, responsável pela ascensão deste novo perfil conservador, remasterizou ideias e práticas de penetração no espaço público já existentes há, pelo menos, 60 anos. 

A nova direita, em alguns aspectos, não é tão inédita quanto possa parecer. Olavo de Carvalho teria sido apenas o responsável por consolidar uma tendência que fora semeada décadas antes por intelectuais conservadores católicos ao dialogar com eles e ao apropriar-se de seus projetos.

A gramática das novas direitas no Brasil atual é alimentada por elementos forjados no interior da direita católica. Desde a concepção de resgate de uma “civilização cristã”, até as pautas morais como o aborto, passando por uma compreensão ampla e fluida do que é o comunismo, as heranças são muitas, duráveis e perceptíveis a olho nu. 

A importância das direitas católicas se revela em sua capacidade de fazer com que suas ideias persistam no tempo. Intelectuais e movimentos conservadores católicos no Brasil foram responsáveis não apenas por criar e alimentar um patrimônio de ideias hoje apropriadas pela chamada nova direita, mas contribuíram na constituição de uma direita religiosa a nível global, como aponta o historiador norte-americano Benjamin Cowan (2021). 

As importantes movimentações da organização brasileira TFP pela Europa, interferindo nos debates sobre direitos sexuais e reprodutivos, confirmam uma certa fecundidade de suas ideias. Também reafirmam a sua capacidade, a despeito do tempo, de frear reformas da ordem social e de romper fronteiras em sua tentativa de estabelecer uma moralidade cristã integrista como norma social. 

Víctor Almeida Gama é  doutorando em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Imagem de capa gerada por inteligência artificial com o prompt “justice symbol with rosary beads, ultrarrealistic, 4k”, com o modelo SDXL.

Referências

COWAN, Benjamin. Moral majorities across the Américas: Brazil, United States, and the creation of the religious right. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2021.

MINNICINO, Michal. The New Dark Age: The Frankfurt School and ‘political Correctness’. Fidelio Maganzine, nº 1, 1991-1992, pp. 4-27. 

SOCIEDAD COLOMBIANA DE DEFENSA DE LA TRADICIÓN, FAMÍLIA Y PROPIEDAD. La Iglesia del silencio en Chile: un tema de meditación para los católicos latinoamericanos. TFP: Bogotá, 1976. 

SOUSA, José Pedro Galvão de. Professor denuncia “Revolução Cultural”. Correio do Povo: Porto Alegre, 20 abr. 1975.

TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. Difel: São Paulo, 1979.

VASCONCELLOS, Gilberto. A ideologia curupira: análise do discurso integralista. Brasiliense: São Paulo, 1979. WINK, Georg. Conservadorismo brasileiro e a nova direita. Belo Horizonte: Estúdio Livre, 2023.