Diante do barulho quase ensurdecedor do discurso de ódio, a força das mulheres faz florescer outro futuro possível, na trilha das demandas por políticas de enfrentamento dos extremismos que ameaçam a vida no Brasil empreendidas pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

Atualizado em: 12/04/2023 às 08h04

Com os olhos fixos no relógio, um homem tenta manter-se incógnito no ponto de encontro. A hora marcada deveria ser respeitada à risca. O pacto já havia sido desenhado, se até a hora limite ela não tivesse chegado as instruções eram apenas uma ordem: fuja. Ele porém não estava sozinho, acompanhado de sua bebê de apenas nove meses, a tensão do pai e do marido se conjugam na espera dolorosa. 

Esta é parte da história de Eliana Rolemberg. Ela nunca chegou ao ponto de encontro, fora presa antes de conseguir encontrar com seu marido e sua filha. O ano era 1970 e Eliana fora presa pela Operação Bandeirantes, uma organização do governo militar que atuava nas margens da lei e cujas ações não deixavam rastros de burocracia. 

Por 20 dias Eliana Rollemberg desapareceu do mapa. Ninguém sabia onde ela estava. Não havia registro, denúncia, julgamento ou condenação, apenas tortura. Eliana, que tinha estudado sociologia na PUC-SP, trabalhava com formação popular e foi justamente por isso que foi presa, em posse de um material que denunciava os horrores da tortura do regime de excessão que se intensificaram a partir de 1968, mas que faziam parte do sistema de extermínio da oposição desde os primeiros dias do golpe em 1964. 

Com olhos doces que destoam do relato, Eliana me conta sobre o horror que viveu naqueles dias, lembra da luta e da solidariedade. Foi na cela que conheceu Damaris Lucena, companheira de luta da vanguarda popular revolucionária; e foi esta mulher que – quando conseguiu sua liberdade – denunciou o horror que Eliana e tantos outros viviam. 

Somente ali – com a incorporação da Operação Bandeirantes ao DOI-CODI – é que Eliana entra no sistema e passa pelos trâmites burocráticos. Porém, apenas no final de 1971 é que ela será julgada e finalmente libertada. Na alegria do reencontro com sua filha, se dá conta de uma nova dor, o bebê que deixou com 9 meses já tem agora quase 3 anos. Se por um lado há o alívio do encontro, a alegria dela ter sido mantida em segurança por seu irmão e por seu marido, por outro, existe o sofrimento de todas as primeiras vezes que ela não testemunhou. 

O extermínio de tudo que poderia ameaçar o sistema político civil militar era parte do modus operandi do regime de exceção. A perseguição do pensamento e da crítica se tornaram elementos de destruição e morte. Eliana Rolemberg vinha de uma tradição católica, porém, se aproximara dos metodistas na universidade. Quando lhe pergunto sobre o papel da religião naquele momento histórico ela me responde com convicção que, se por um lado houve uma enorme parcela das igrejas – católicas e evangélicas – que apoiaram o regime, vários indivíduos entenderam que seu papel naquele momento era o de produzir denúncia. 

Além disso, explica, foi ali, na prisão, em conjunto com tantos outros irmãos e irmãs de luta de diferentes credos que ela começou a entender o que era o ecumenismo. O inimigo comum – o ódio e o extermínio perpetrado pelo regime militar – os unira e as diferenças já não pareciam tão importantes.

Esse texto começa na ditadura civil-militar instaurada em 1964 mas não termina ali. O convite que recebi para a escrita deste breve texto, diz respeito a tecer, em uma colcha de retalhos, as múltiplas formas que a narrativa do ódio pode assumir tanto no passado quanto no presente – ou em um passado recentíssimo. 

Cerca de 45 anos separam Eliana Rolemberg e sua história das narrativas de duas mulheres vítimas de perseguição no momento presente. 

Nossa segunda história começa em um incêndio, um incêndio criminoso que atingiu o terreiro de candomblé Kwe Cejá Gbé, em Duque de Caxias. O fogo consumiu grande parte do lugar, destruindo e violando a sacralidade do espaço. A denúncia de intolerância religiosa foi feita na delegacia, as ameaças de grupos evangélicos conservadores tinham se tornado rotineiras, porém, em 2014 era ainda mais difícil do que é hoje enquadrar determinados crimes em função da porosidade das interpretações. 

O incêndio foi o ponto de ampliação de uma luta cada vez mais presente com foco no diálogo inter-religioso e no ecumenismo. Neste local encontramos Lusmarina Campos, pastora luterana, teóloga ecofeminista, militante de direitos humanos. Diante do horror produzido pelo ódio fundamentalista cristão ela profere uma frase que rasga a realidade em duas: “se em nome de Jesus eles destroem, em nome de Jesus reconstruímos”. 

A pastora chegou no Brasil há pouco mais de dois anos quando o incêndio ocorreu. Regressara de um período de quase 15 anos, nos quais pastoreou na Suíça, e já encontrou no país um conservadorismo crescente, um fundamentalismo cuja violência escalonava e um avanço sistemático da extrema-direita e suas pautas morais conservadoras. 

Naquele momento, com aquela frase e toda mobilização ecumênica que protagonizou, a vida de Lusmarina começou a mudar. Ameaças começaram a se tornar frequentes. Lideranças mais conservadoras dentro da Igreja se uniram a movimentos violentos e o medo tornou-se um companheiro mais assíduo do que o desejado. 

Nada disso a impediu, todavia, de avançar em sua luta pela descriminalização do aborto e outras pautas de ampliação de direitos. Em 2018, convidada a integrar a audiência do STF sobre aborto, representando o Instituto de Estudos da Religião (ISER), Lusmarina Campos denúncia a manipulação do texto bíblico e o perigo de permitir que – em um Estado laico – a Bíblia legisle sobre a vida das pessoas. 

Enquanto conversamos, ela sorri e me explica que sabia exatamente o que ela estava fazendo nestes dois momentos chaves; sabia o que representavam e como poderiam se voltar contra ela. Durante os últimos seis anos o recrudescimento do extremismo, da violência na sociedade e o avanço do conservadorismo autoritário foram letais para muitos indivíduos. Para essa pastora se traduziram no medo de se locomover na cidade e ser atacada; no horror de ter que defender-se de vilipêndios e calúnias daqueles que invalidam sua forma de Cristianismo. 

Anteriormente perguntei a Eliana Rolemberg se é mais difícil ser militante sendo mulher; ao que ela me respondeu que acreditava que sim, que é absolutamente assustador ser mulher e estar rodeada por torturadores – todos homens – que atacam sua condição de mulher. E prosseguiu dizendo o quanto as mulheres precisam lutar para alcançar o mínimo de direitos. 

Fiz uma pergunta parecida à pastora Lusmarina, sobre o que é ser mulher cristã atravessada pela violência do fundamentalismo crescente dos últimos dez anos. Diante de tudo isso ela me olhou e explicou que, quando Lutero foi convidado a se retratar, ele respondeu que não poderia, e usou uma fórmula como “este é o meu lugar”, “here I stand”, e que, de forma similar, também ela não voltaria atrás: “neste lugar me finco”, ela afirmou, “daqui não me retiro”, disse sorrindo a despeito do horror que viveu e ainda vive.  

Simony dos Anjos nasceu em Osasco e a fé cristã foi um elemento crucial da sua formação. Membro da Igreja Presbiteriana Independente, Simony era ativa em sua presença eclesiástica. Quando perguntei a ela sobre como o passado recente do Brasil a atravessou, ela relembra do período violento em que a ex-presidente Dilma Rousseff foi atacada de diversas formas, sobretudo em sua condição de mulher. 

Nesse momento, diante de uma Bancada Evangélica defensora do impeachment criminoso e grávida de uma menina, Simony percebeu as limitações de um discurso teológico que a abraçasse. Aquela teologia que a formara, eurocêntrica, cis-heteronormativa, não dava mais conta de falar sobre seus sofrimentos como mulher negra, periférica e cristã. É nesse momento que se dá o encontro de Simony com coletivos cristãos feministas.

Sua militância não passou despercebida pelos movimentos ultraconservadores. Simony dos Anjos recebeu uma chuva de ataques intensificados pela articulação de políticos como a deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC) que convocou seus seguidores para atacá-la virtualmente. 

Ao longo dos últimos anos tornou-se rotineiro receber ameaças e ataques, o medo por si mesma e por sua família acaba se transformando em um sentimento frequente. Campagnolo também é cristã, presbiteriana, como Simony dos Anjos. O que apenas demonstra que há muitas possibilidades de articulação do ódio a partir da vivência religiosa. 

O discurso de ódio assumiu múltiplas formas com o avanço do conservadorismo da ultradireita e a perseguição. Ainda que as condições históricas tenham se alterado e não estejamos diante de um simples paralelo histórico possível, por outro lado é possível defendermos que os discursos de ódio continuam sendo armas letais de invalidação do discurso que ameaça o poder hegemônico. Desacreditar a militância continua sendo uma estratégia vil de silenciamento, o medo continua sendo um aliado poderoso daqueles que se encontram em locais de dominância. 

Simony e eu encerramos a conversa falando novamente sobre o papel da mulher cristã em um Brasil cada vez mais conservador e violento. Com olhos fortes ela me disse que uma das coisas mais bonitas de sua caminhada é ser um espaço de acolhimento para outras mulheres, cujas dores estavam escondidas por debaixo do discurso teológico hegemônico. A força dessas alianças em todos os tempos históricos demonstram que é no diálogo que um outro caminho possível desponta. 

Diante do barulho quase ensurdecedor do discurso de ódio, a força dessas mulheres faz florescer outro futuro possível, na trilha das demandas por políticas de enfrentamento dos extremismos que ameaçam a vida no Brasil. Elas nos relembram que – como cantou Elis Regina – “uma dor assim pungente não há de ser inutilmente, a esperança dança na corda bamba de sombrinha” (versos de João Bosco e Aldir Blanc). 

Agnes Alencar é carioca, mestre em história social da cultura, doutoranda em Ciência da Religião, pesquisadora do ISER e ciclista. Cristã feminista, atualmente estuda teologia na EST, produz o EBDcast, faz parte da diretoria do O Reino em Pessoa e produz conteúdo nas redes.

Foto: Kilomba produções – (Mulheres de punho cerrado durante ato no Rio de Janeiro contra as violências do Estado brasileiro).

Saiba mais:

Entrevista com Eliana Rolemberg pelo Coletivo Memória e Utopia 

Sobre a participação da Pastora Lusmarina Garcia na reconstrução de terreiros destruídos 

Sobre a participação da Pastora Lusmarina Garcia na audiência pública do STF

Entrevista com Simony dos Anjos, pelo portal Catarinas

Sobre o Grupo de Trabalho para o enfrentamento do ódio e dos extremismos pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania