Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 10 mar 2023

O “Primeiro Relatório de Islamofobia no Brasil” aponta que as maiores vítimas de violência da comunidade muçulmana no Brasil são as mulheres que usam lenço (conhecido como “hijab”). Essas agressões acontecem, geralmente, em espaço público, mas também no trabalho, na escola/universidade, e com uma grande incidência, também, dentro das suas famílias, quando essas jovens resolvem se reverter (converter) ao Islam. De acordo com o Relatório a discordância das famílias em relação a escolha religiosa da filha aparece em torno de 50%

Os resultados disso são sempre em forma de sofrimento psicológico, abandono da vestimenta e outras formas de tentativa de proteção. É possível observar que o conflito familiar se dá por alguns fatores: desde a associação da religião ao terrorismo; ao estereótipo de que a religião oprime as mulheres; à divergência religiosa de alguns evangélicos, sendo essa a religião que se destaca no Relatório como a sendo a mais intolerante com os muçulmanos, assim como, a mídia, de modo geral, é apontada como divulgadora de informações equivocadas sobre o Islam e sobre os muçulmanos, e isso reverbera no cotidiano, principalmente das mulheres. 

É possível, ainda, observar que após o 11 de Setembro de 2001 houve um crescimento do que chamamos de “arabofobia”, sobrenomes árabes em aeroportos passaram a chamar atenção ou o simples fato de se parecer árabe já era motivo para uma revista mais demorada, principalmente em relação aos homens. Esses são alguns dos dados que são possíveis destacar do Relatório.

As religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islam tem base comum, quando se referem a alguns profetas e mensageiros como Noé, Abraão, Moisés. O Islam tem como um dos seis pilares da fé – acreditar em todos os livros sagrados anteriores ao Alcorão, sendo esse o livro que fecha as mensagens enviadas por Deus. Moisés e Jesus, por exemplo, são mais citados no Alcorão que o profeta Muhammad

Alguns aspectos da crença podem divergir, mas isso não significa que o diálogo não seja possível. Quando lemos sobre aversão de evangélicos, nossa primeira impressão é que esses não tenham conhecimento como Jesus é tratado na religião islâmica. As religiões “do livro” têm fontes inesgotáveis, mas também, apresentam divergências de interpretação, o que para o Islam é bem-vinda, pois na concepção islâmica – Allah sabe mais – e o diálogo vai sempre enriquecer, pois não há compulsão na religião. 

Cabe dizer que o uso do lenço era adotado por todas as religiões monoteístas. Sabe-se que mulheres judias deixam de usar o lenço quando migram para Europa no século 9 e passam a adotar a peruca, no entanto, as judias ortodoxas fazem uso do lenço/peruca quando se casam. Essa forma de usar não é instituída pelo profeta Moisés, mas sim, uma leitura que alguns que professam a religião judaica compreendem como sendo modéstia para as mulheres. A Halachá (Lei Judaica) sugere cobrir o cabelo, mas não todo o corpo. A população brasileira que vive sob forte presença do catolicismo sabe que mulheres até bem pouco tempo cobriam a cabeça para irem à igreja. Existem aquelas que ainda fazem. 

Se o cobrir-se sempre esteve presente nas mulheres religiosas, hoje em dia, o véu se tornou fonte de punição para os legisladores europeus e motivo deliberado para agressões/exclusão diversas no Brasil. Uma amiga brasileira muçulmana que mora na França me relatou que mulheres que nasceram na religião islâmica são “mais aceitas” como religiosas, que as que se tornaram muçulmanas, como ela, essas são consideradas radicais, extremistas, pois no entendimento dos franceses não haveria necessidade de se cobrirem, como fazem as nascidas. 

Hijab não se trata apenas de um lenço na cabeça, mas de uma vestimenta larga, quase sempre um vestido chamado de abaya – largo e comprido. Quando uma mulher usa o hijab, ela demonstra a sua devoção a Deus, obediência à recomendação feita no Alcorão. 

Ó profeta! Diz a tuas filhas e às mulheres dos crentes que (quando saírem) se cubram com suas `jalabib`, isto é mais conveniente para que  se  distingam  das  demais  mulheres  e  não  sejam  molestadas,  porque Deus é Indulgente e Misericordioso (Alcorão, surata 33, versículo 59)

No Brasil, o que vemos acontecer é uma onda de intolerância religiosa e/ou Islamofobia, como as próprias interlocutoras apontam na pesquisa. Há um medo generalizado dos muçulmanos e das práticas islâmicas, sem o devido conhecimento. Falta sobretudo, neste caso, a desconstrução sobre o que se pensa ou se sabe sobre a religião islâmica e os muçulmanos – árabes, africanos, etc. Necessário a revisão de livros didáticos, trabalho esse que vem sendo realizado pela doutoranda Ashjan Sadique Adi, do mesmo modo, ter a dimensão que a islamofobia causa sofrimento psicológico como demonstra o Relatório de Islamofobia e a tese de doutorado de Camila Motta Paiva. Esses trabalhos sobre minha orientação são esforços de buscar desconstruir o que está cristalizado na mente dos brasileiros quando ouvem sobre Islam/árabes/mulheres de véu/saúde mental. 

A necessidade de políticas públicas e a ampliação no atendimento de muçulmanas em espaços educacionais e de saúde são fundamentais como gestão do cuidado e do ensino. As questões que envolvem migração de palestinos, sírios e mais recentemente de afegãos exige do governo federal e de suas instâncias compreensão profunda dessa população que é atravessada pela religião, como sinal diacrítico e sustentador de sua identidade. Não só carregam uma religião, mas hábitos alimentares, de higiene, de comportamento diferentes da população brasileira.  Como atender a essas demandas, se ainda consideramos o seu maior sinal diacrítico – hijab – apenas como elemento de opressão? 

Por fim, alerto que o não registro da violência sofrida joga para debaixo do tapete as violências ocorridas e que só ganharam projeção a partir da pesquisa quantitativa/qualitativa que coordeno como bolsista produtividade CNPq – “Narrativas Islamofóbicas no Brasil (2020-22)”, que resultou no “I Relatório de Islamofobia”, e se soma a outra pesquisa, também com bolsa produtividade, “Islamofobia: um problema de raça, classe e gênero (2023-26). Mostrar os dados é o primeiro passo para contribuir para a valorização das mulheres que optaram por usar suas vestimentas religiosas no Brasil e de certa forma propor uma mudança de olhar da sociedade brasileira, fazendo o que todas desejam: normalizem o fato de existirem mulheres que usam hijab. 

Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, docente associada no Departamento de Psicologia da USP/RP e dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e Antropologia/USP. Coordenadora do Gracias – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes, pós-doc da Universidade de Oxford. Escreve a convite do Iser (Instituto de Estudos da Religião). Email: franci@ffclrp.usp.br

Saiba mais

BARBOSA, Francirosy C. (coord). I Relatório de Islamofobia no Brasil. São Bernardo do Campo: Ambigrama, 2022. Disponível em https://www.ambigrama.com.br/_files/ugd/ffe057_6fb8d4497c4748f8961c92a546c5b3fc.pdf. Acesso 2 fev 2023.

PAIVA, Camila Motta. Corpo, mente e coração: saúde mental de mulheres muçulmanas brasileiras. Tese de doutorado, Programa de Pós em Psicologia, FFCLRP, USP, 2022 (em breve disponível em Teses USP).