Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 25 out 2022

Setores católicos vêm exercendo uma influência ‘discreta’ o suficiente para perdermos de vista a importância de parte do catolicismo na consolidação de uma agenda reacionária, neoliberal e antidemocrática

No dia 4 de dezembro de 2021 o nome de André Mendonça foi aprovado pelo senado para uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal), sendo o ato de nomeação associado principalmente a declaração dada por Jair Messias Bolsonaro no dia 10 de julho de 2019, onde afirmou que indicaria para a vaga no STF um ministro “terrivelmente evangélico”. É interessante observar que além da presença de ministros com uma identidade religiosa não constituir uma novidade, como levantado pelo jornal O Estado de S. Paulo, André Mendonça não é o primeiro evangélico a assumir tal posição. A reivindicação pela participação de um representante do campo evangélico na mais alta corte exemplifica o que Joanildo Burity vem denominando como “minoritização”, ou seja, como esse processo em que um novo ator político (evangélico-pentecostal) exige participação e reconhecimento diante de uma ordem hegemonicamente ocupada por católicos.

No entanto, me chama a atenção a problematização em torno da presença de um ator religioso no judiciário estar direcionada quase exclusivamente a presença de atores evangélicos, circulando e preocupando com menos intensidade a presença de atores advindos de outras religiões, mais especificamente, a católica. Enquanto tentavam compreender a trajetória de Mendonça para justificar tal preocupação, pouco se falou sobre outra figura cotada naquele momento para ocupar o cargo no STF: Ives Gandra Martins Filho, ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho) e ligado ao Opus Dei. Segundo reportagem, Gandra Filho é “terrivelmente católico” e vem buscando uma vaga no STF desde o período em que Michel Temer esteve à frente da presidência.

Na coletânea “Tratado de Direito Constitucional”, Gandra Filho defendeu que “os filhos obedeçam aos pais e a mulher ao marido”, o divórcio como “contrário à lei natural”, o matrimônio como “indissolúvel” e representativo da “unidade – um homem com uma mulher”, já que segundo ele “não há que se falar, pois, em matrimônio entre dois homens ou duas mulheres, como não se pode falar em casamento de uma mulher com seu cachorro ou de um homem com seu cavalo”. Em 2017, Gandra Filho recebeu o apoio a nomeação para ocupar o cargo de Teori Zavascki no STF do presidente da bancada evangélico do Congresso, deputado federal João Campos (PRB-GO), do presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), cardeal Sergio da Rocha, dos arcebispos dom Odilo Scherer e dom Orani Tempesta, de Robson Rodovalho, presidente da Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil, e de Cláudio Geribelo, presidente da Conferência Nacional das Igrejas Evangélicas do Brasil.

Segundo o presidente da CNBB, Ives Gandra representa “um referencial seguro para a interpretação e a aplicação da Constituição, assegurando os direitos fundamentais da pessoa humana”. No entanto, o conservadorismo (reacionário) de Gandra Filho não alcança somente ao campo dos costumes e das moralidades. Como ex-presidente do TST, defendeu a reforma trabalhista e que a retomada dos empregos dependeria do corte de direitos dos trabalhadores. Nesse sentido, é importante termos claro que o “terrivelmente evangélico”, mobilizado não como categoria de acusação, mas como nível de comprometimento com dada agenda, esteve sempre acompanhado, durante a indicação de Bolsonaro, de um “terrivelmente católico”.

Chamo a atenção que ao considerar os evangélicos a face mais visível do conservadorismo religioso contemporâneo, deixamos de levar em conta que a força dessa tendência reverbera em uma tradição que é católica. A presunção de uma ameaça evangélica a um Estado que outras religiões pouco influenciam nas questões de ordem pública é enganosa, sendo essa percepção possível dada a naturalização histórica, cultural e jurídica (oficializada e legitimada) do catolicismo e da Igreja Católica no país. Em 2008, no segundo mandato de Lula, foi assinado e ratificado um acordo entre o Brasil e a Santa Sé, como expressão da diretriz doutrinária estabelecida pelo Vaticano de convocar fiéis a assumirem uma cidadania religiosa ativa (Vaggione, 2018).

O catolicismo, como um fenômeno de longa duração na sociedade brasileira, vai se metamorfoseando com o passar do tempo a fim de preservar a sua capacidade de influenciar na formulação e definição de direitos e políticas públicas. Grupos católicos sempre estiveram presentes na administração dos tribunais de justiça, em posições importantes na estrutura burocrática e econômica, estabelecendo como centro de gravidade a união entre clérigos e elites leigas, desempenhando um papel significativo na mediação da relação entre a comunidade e o Estado no país. No entanto, as análises sobre conservadorismo religioso, ao enfatizarem a atuação dos evangélicos, perdem de vista o que vem ocorrendo no campo do catolicismo – e, mais especificamente, para uma contemporização interna de suas práticas, alianças e estratégias. Assim como o protestantismo, o catolicismo não se define em uma religião de traço homogêneo, consistindo o catolicismo conservador um campo amplo, diverso, e com uma rede de articulação consolidada e em expansão.

Apesar de o catolicismo estar submetido à sua lógica hierárquica-eclesiástica, não é possível definir o catolicismo pelo seu corpus institucional. No âmbito do catolicismo co-habitam muitos catolicismos que podem ser identificados segundo suas vertentes teológicas – ficando, após o Concílio Vaticano 2, evidentes expressões como os carismáticos, os tradicionalistas e o militantismo católico. Ao olharmos para o catolicismo de forma restrita ao âmbito da hierarquia católica (ou de espaços que adquiriram notoriedade no avanço de uma agenda conservadora e reacionária como o Centro Dom Bosco), perdemos de vista um catolicismo leigo e com forte capacidade de articulação com outros campos (religiosos ou não). Alinhados à agenda política da hierarquia católica – ainda que não subordinados a ela – promovem o conservadorismo (reacionário) religioso para além dos “espaços religiosos oficiais”, mas também em universidades, organizações, associações, e, principalmente, nos tribunais.

Ana Carolina de Oliveira Marsicano é doutoranda em sociologia pelo PPGS/UFPE (Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco) e integrante do Laberp/Fundaj/UFPE (Laboratório de Estudos de Religião e Política).