A intolerância contra expressões religiosas e culturais de segmentos representativos do Brasil como indígenas e negros remonta a escravização destes povos na história do país. Ela se estendeu pelos períodos do Império e da República respaldada pelos aparatos jurídicos, médicos e policiais. Outras religiões que aqui aportaram através de movimentos migratórios e fluxos culturais também sofreram discriminação pelo seu potencial de novidade e estilo. Porém a Constituição de 1988, no pós-ditadura, se debruçou sobre a questão da pluralidade e propiciou nos anos seguintes movimentos de mobilização para a reparação e restituição de direitos destes grupos da nossa população, inclusive os religiosos.

Infelizmente a partir dos anos 2000, como prenúncio da onda de ultraconservadorismo e intolerância que varreu vários países, assistiu-se no Brasil com perplexidade a escalada de violência aberta e vilipêndio religioso movidos por grupos de traficantes que se diziam evangélicos contra as comunidades de terreiros de Candomblé e Umbanda. Depredações, incêndios, humilhações ao obrigar adeptos e sacerdotisas a quebrarem objetos sagrados e abandonarem seus centros e terreiros, foi a tônica do que aconteceu e continua acontecendo.

Ainda sem resolução desta questão dramática, chamo atenção, em fatos recentíssimos, para o que intuo ser uma nova modalidade de intolerância que se coloca ao dispor da estratégia política de correntes de extrema direita para seus projetos de poder. Eis os fatos: o presbiteriano vereador do PTB de Belo Horizonte Ciro Pereira fez uma postagem em sua rede social onde dizia: “engana-se quem pensa que não existe uma guerra espiritual acontecendo. Lula busca as forças ocultas africanas, foi ungido e benzido por várias entidades”. E concluía dizendo: “ a guerra começou e eu luto pela minha família e pelo futuro de minha pátria”. Em seguida, a deputada estadual pelo Partido Social Cristão de Pernambuco Clarissa Tercio, da Assembleia de Deus, postou uma foto de Lula ladeado por suas ialorixás paramentadas com suas roupas religiosas, todos de máscara anti-covid, com a seguinte legenda: “Lula recebe benção de Zé Pelintra para vencer a eleição de 2022”, seguido de um comentário da vereadora: “Já o meu presidente Jair Messias Bolsonaro vai ao culto receber a benção do Deus todo poderoso”.

Aqui, uma ignominiosa e inaceitável “demonização” das religiões afro-brasileiras é estendida a Lula pela ameaça que sua candidatura significa para os planos continuístas de Bolsonaro; como se a agenda do ex-presidente com lideranças do Candomblé e Umbanda fosse prova já dada de que ambos estariam urdindo “feitiços” maléficos contra a nação.

A desqualificação não cessa, nem mesmo quando a relação estabelecida por Lula foi com evangélicos pentecostais, como no caso do seu encontro com o deputado federal pastor sargento Isidório da Assembleia de Deus na Bahia, quando recebeu uma Bíblia com um adendo da “Harpa Pentecostal com 600 hinos de cânticos e louvores”. Contrapondo-se a este fato, a vereadora de Fortaleza pelo Partido Social Cristão, também assembleiana, Priscila Costa postou no seu Instagran: “Semana passada foi a unção do Zé Pelintra, essa semana é a Bíblia PTcostal”.

Mas a associação entre estigmatização religiosa e política não ficou confinada na já histórica discriminação e preconceito para com as religiões de matriz africana no Brasil, nem na concorrência inter-pentecostal. Como reação à demora, por parte do Presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o Senador Davi Alcolumbre, para pautar a sessão de sabatina do candidato ao Supremo Tribunal Federal e ex-AGU e ex-Ministro da Justiça, o “terrivelmente envagélico” André Mendonça, Alcolumbre viu sua pertença ao judaísmo exposta de forma acusatória pela mídia digital bolsonarista. Várias postagens foram expedidas onde, ao lado das fotos de Alcolumbre e Mendonça, vinham os seguintes dizeres: “Um judeu contra um evangélico: Davi Alcolumbre não quer um evangélico no Supremo Federal”.

Além do evidente caráter difamatório que busca relacionar pertencimento religioso a uma identidade pérfida que este artifício visa construir, há um propósito maior que penso deva ser enfatizado. Embutido na prática de intolerância religiosa, o que está por trás desses ataques é o interesse de manutenção e ampliação de um projeto autoritário de poder. Trata-se, portanto, de uma instrumentalização da religião, onde um argumento religioso-dogmático é invocado contra aquilo que possa significar obstáculo para essa vontade de poder, atribuindo-lhe uma intenção malévola. De acordo com a ocasião podem ser escolhidos para encarnar esse papel maligno os afroreligiosos e os judeus, como nos exemplos citados acima, mas nada assegura que esta pecha não seja jogada contra xamãs indígenas, católicos da “teologia da libertação”, new agers ou muçulmanos.

Diante da aproximação das eleições presidenciais de 2022, com a perda crescente de popularidade de Bolsonaro, e o avanço de sua ação tóxica de afrontar as instituições democráticas da república, a estratégia (que começa a se esboçar nos “gabinetes do ódio” e redes de expansão de fake news) de intolerância religiosa como forma de atingir adversários políticos pode recrudescer. Projetos políticos que articulam o pluralismo cultural, religioso, étnico começam a ser rotulados como provindos de religiões do “mal” e por isso ditos “anti-evangélicos”. Não é por outra que Bolsonaro e seus partidários vêm levantando o argumento de uma inexistente “cristofobia” para justificar, como nos exemplos acima, uma confrontação política na forma de “guerra espiritual”.

Anteriormente outras manipulações a partir de uma moral religiosa reacionária foram assacadas contra grupos de gênero, orientação sexual etc. Estou falando das investidas obscurantistas contra os LGBTQIA+, contra a prática de aborto legal, fruto de estupro ou contra terapêuticas científicas para combater a pandemia da Covid. Da mesma forma, correntes políticas progressistas, como o PT, PSOL e aliados nos movimentos sociais foram acusadas por este discurso religioso moralista de incentivar o homossexualismo nas crianças, o aborto, o uso de drogas e a doutrinação comunista. 

É fato que os segmentos cristãos (neo) pentecostais que sustentavam esse discurso, como a IURD e congêneres fazem de longa data da “guerra religiosa” contra as religiões afro-brasileiras um de seus pilares identitários. Porém, a intolerância religiosa como máquina de guerra eleitoral e partidária não foi até agora utilizada explicitamente pelo bolsonarismo.

À exemplo de movimentos sociais e identitários ameaçados pelo avanço da extrema direita, faz-se mister que também do campo religioso brasileiro na sua pluralidade e dentro de sua presença pública, surjam ações no sentido de rechaçar no nascedouro estas intimidações de fundo político através de forma religiosa.

Em outros episódios de intolerância religiosa tout court, como a que se passou no Rio de Janeiro em 2015, quando uma criança, ao sair de uma casa de Candomblé vestindo branco levou pedradas, uma resposta eficaz foi promovida por uma coalisão de diferentes lideranças religiosas. Esta iniciativa corporificada pelo Comitê de Combate à Intolerância Religiosa propiciou uma cena emblemática, que reuniu a menina vítima, o babalawo Ivanir dos Santos e o Cardeal Dom Orani Tempesta. O encontro selou o propósito comum de reafirmar a paz entre as religiões e condenar a agressão a praticantes de religiões diferentes, pelo fato destes professarem suas crenças. 

Então é disso que se trata agora, impedir a escalada que se anuncia da intolerância religiosa à serviço de uma estratégia política (eleitoral para 2022 ou para justificar tentativas golpistas). É preciso que os homens e mulheres religiosos/as de “boa vontade” articulem a CNBB, a Confederação Israelita, as igrejas protestantes do CONIC, Federações Umbandistas e casas do “povo de santo”, as entidades espíritas-kardecistas, religiões orientais, neo-esotéricas, espiritualidades indígenas para defender o convívio pacífico entre as religiões, seu direito de cidadania a uma intervenção pública respeitando as mediações das regras institucionais do Estado democrático, mas sobretudo para evitar a possibilidade crescente de instrumentalização da religião para fins de estratégias autoritárias de poder. 

Já se assistiu ao longo da história, no medievo e no renascimento, “guerras santas”, “caça às bruxas”, “tribunais de inquisição”, quando estruturas de poder sob roupagem religiosa tidas como inquestionáveis reforçavam sua dominação política na perseguição a formas diferentes de organizar o imaginário e o simbolismo. Mas em plena modernidade do Estado Democrático de Direito e Laico, que no seu pacto jurídico-político e na universalidade de sua Constituição assegura um tratamento equânime para todas religiões e formas de pensamento, não se pode aceitar que uma dogmática sacralizada se imponha como critério de verdade e deliberação no debate da sociedade brasileira sobre os seus rumos.

Marcelo Camurça é antropólogo, Conselheiro do ISER, membro da Comissão de Laicidade e Democracia da Associação Brasileira de Antropologia e do Comitê de Respeito à Diversidade Religiosa da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora/MG.

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil